Odindóttir escrita por Shalashaska


Capítulo 8
VIII




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The curse ruled from the underground down by the shore
And their hope grew with a hunger to live unlike before
The curse ruled from the underground down by the shore
And their hope grew with a hunger to live unlike before

Tell me now of the very souls that look alike, look alike
Do you know the stranglehold covering their eyes?
If I call on every soul in the land, on the moon
Tell me if I'll ever know a blessing in disguise

 

Agnes Obel, "The Curse"

Os mortos permaneceram em Muspell, porque seria uma crueldade sem tamanho que Hela trouxesse-os andando milhas e milhas e ainda assim sem vida. Era fora da natureza que homens, mulheres e animais pudessem respirar sem o sopro da vida em si e ao menos isso Odin conseguiu convencer sua Executora a fazer à despeito de seus argumentos sobre demonstração de soberania. O Pai de Todos revelou à filha e ao seu povo somente a parte em que a völva profetizara sobre Surtur e o Ragnarok, o que fez a vitória sobre Muspell ser ainda mais doce para aqueles que sobreviveram. Eles conseguiram, então. Evitaram o fim de tudo.

O exército pareceu mais aliviado no regresso, bem como as Valquírias. Existiam novas recrutas entre elas, portanto o peso de uma guerra contra o reino de fogo foi algo que abalou o espírito guerreiro das iniciantes. A glória, porém, compensava tudo. Era uma honra lutar ao lado de Odin e Hela, era uma honra maior ainda saber que evitaram um perigo para todo o reino. Eles foram recebidos de forma calorosa. Todas as promessas de festa grandiosas foram cumpridas nos dias que se seguiram: banquetes, música, bebida. Os soldados mostravam um aos outros as cicatrizes e espólios de guerra, como dentes de demônios ou frascos de sangue de elfo de luz. Muitos deles aumentaram as próprias histórias para impressionar ainda mais os cidadãos do reino, alguns ainda falaram sobre ver a serpente Nidhogg ou Jörmundgandr, a serpente dos mundos. Hela ouvia isso tudo com verdadeiro deleite, pois mesmo que muitos pontos não fossem verdade, o folclore das noites de festa em Asgard se espalharia por muitos anos vindouros e todos se lembrariam com real orgulho da Executora de Odin. Crianças queriam pegasus, karves flutuantes, lobos. Todos queriam alimentar Fenrir, os guerreiros da corte brincavam com sua força e elaboravam desafios para a fera, que nem uma única vez avançou sobre os conterrâneos de sua domadora em solo asgardiano.

Frigga parecia ainda mais feliz que a própria filha e o marido. Mostrou a eles as reformas no palácio, no encarregamento de ouro de Alfheim para Asgard, nas pinturas e esculturas de pai e filha na guerra. O teto foi colorido pela cor vermelha e dourado, Odin empunhava Gungnir e Hela, suas lâminas. Eram cenas de pai e filha lado a lado conquistando mundos. As figuras brilhavam em puro esplendor de vitória, ainda mais belos e gloriosos que os originais.

Mas o espírito de Odin estava dividido. Huggin e Munin remoíam pensamentos e memórias em seus ouvidos, crocitavam baixo enquanto o Pai de Todos divagava no trono. Ele não contou para ninguém sobre as revelações da völva acerca da localização da Joia da Alma, tampouco sobre Hela ser um dos sinais do fim, Ragnarok. Era verdade que sua sede pelas Joias do Infinito estava ainda acesa em sua garganta, doendo e gritando que fosse atrás de guerra. Ele tomou a decisão de permanecer ali, com seu povo e sua família, ao menos pelos anos seguintes. Tinha muito tempo em sua vida e tinha muito sangue nas próprias mãos. Poderia parar. Descansar. Amar sua esposa, cuidar de sua filha. Proteger seu povo. No entanto, proteger seu povo significava eliminar suas ameaças que o cercavam e isso incluía Hela.

Sua garotinha.

Foram meses de silêncio, alegria, tormento. Ele buscava na sabedoria de fontes e livros o que fazer naquela situação, sem encontrar saídas. Não fazer nada foi difícil nos primeiros dias, pois Odin era um homem de ação. Ao decorrer das semanas, isso pareceu uma resposta plausível. Frigga e Hela riam nos jantares, compareciam em eventos à sua homenagem, eram felizes. Ele poderia guardar as palavras da völva para si, poderia… Esquecer. 

Ainda desejava as Jóias para si, pois com elas poderia ser um deus onisciente, onipotente. Era uma alternativa para evitar que Asgard ruísse como seus piores pesadelos, uma alternativa para manter Hela no caminho certo - e viva. Era tolice, sabia disso. Era tremenda arrogância querer tudo para si, um povo glorioso, um legado sólido, poder imensurável e uma família. Mas, ah! Odin era um rei orgulhoso e desejava com ardor.

Talvez esse tenha sido seu erro. Passou toda a sua fome para sua filha, que tinha presas afiadas demais.

 

Hela apreciou a estação quente e florida na companhia da mãe. Haviam acabado de voltar da inauguração de Bifrost, a Ponte de Arco-Íris, que seria o transporte entre mundos. Finalmente foi concluída depois de anos, já que o trabalho dos anões foi somada com a abundância de ouro de Alfheim. Ficou pronta e seu guardião foi escolhido, Heimdall.

A iluminação do sol era ainda mais dourada perto de Frigga, que contava as peripécias de Hela quando criança como se aquilo tivesse acabado de acontecer. Dizia isso porque suspeitava que estava grávida mais uma vez e teve um sonho em que seu filho seria tão iluminado quanto o verão. Um irmão ou irmã para a princesa. Devido a isso rememorava a infância da primogênita com imensa saudade, enfatizando como a filha era graciosa.

— Oh, mãe! — Ela balançava a cabeça, achando graça. As duas caminhavam no jardim, Fenrir as acompanhava. Frigga até mesmo colocou uma  coleira de flores no pobre animal, que nada fez em resposta. — Os mortais agora me chamam de Deusa da Morte.

— Eu sei, minha filha. Mas o que é a morte, senão inverno? Tudo sempre volta a florescer. E você sempre será minha princesa.

— Oh, mãe. — As duas se abraçaram com carinho e Hela disse, muito baixo: — Eu sou a aniquilação.

 

A natureza de Hela começou a sentir-se enclausurada. Nem as tardes com Freya a entretinham, treinando as Valquírias novatas e observando suas expressões de dor quando tatuavam o símbolo sagrado em seus antebraços. Caçar com Fenrir era quase entediante, pois nenhum bicho tinha verdadeiras chances contra o imenso lobo. Ela sentia falta do som das espadas se chocando, do aroma do fogo, da morte em sua pele. Ao matar faisões ou javalis, ela deslizava as mãos no corpo do animal, sentindo a vida se esvair pelos seus dedos. Ela lembrava da sensação, do gosto.

A Executora tentou evitar essa sede, essa fome que crescia a cada dia. É claro que ainda ardia para encontrar todas as Joias do Infinito igual ao inicialmente proposto por seu rei, porém as visões de mundo de Odin haviam mudado nos últimos meses e isso afetava o trabalho de sua Executora. Eram projetos de integração cultural entre os povos Alfheim, Vanaheim e Asgard, equipamentos importados por Nidavellir e, é claro, as manutenções de Bifrost. Ela questionava seu pai, mas ele sabia sair de cena e apresentar certas tarefas para Hela que a deixavam ocupada. Suspeitava que era algo a ver com a völva, embora não tivesse certeza. De qualquer modo, considerava inteligente seu pai solidificar as políticas do reino, admirava sua lábia, no entanto não se permitia ter com uma missão importante como aquela incompleta e não aceitava as respostas vagas dele.

Ao fim de meses, ela estava catatônica.

Parecia que não comia ou dormia. Caçava diariamente para aplacar a fome de Fenrir e mesmo aquilo não o deixava satisfeito, muito menos ela. Foi em uma dessas ocasiões, nos campos distantes do palácio de Asgard, que decidiu invocar os mortos. Asgard nem sempre foi um palácio dourado. Era uma vila com uma fogueira no meio, construções de pedras e toras. Rudimentar, supersticioso e sagrado. Existiam ainda alguns monumentos distantes, esquecidos. Seu pai os mostrava para relembrar a história de seus antepassados e ali havia um cemitério em ruínas do antigo povoado asgardiano.

Se fez luz verde na floresta, os mortos acordaram. Disseram logo o que a guerreira queria saber para que então pudessem voltar ao seu sono de direito. E aquele conhecimento só fez a sede de Hela aumentar.

— Pai, — Ela disse ao voltar para o palácio. — Eu agora sei.

— O quê? — O rei respondeu com muita cautela.

— O meu destino.

Silêncio.

— Continue, minha filha.

— Os mortos disseram, meu pai. O caminho para a Joia da Alma.

A viagem foi planejada por semanas, mais semanas do que seria necessário. Odin se desculpava como apenas sendo cauteloso, também repetia que Frigga estava grávida e precisava de todo o cuidado possível. Eram desculpas plausíveis, porém. Nenhum detalhe foi compartilhado com a corte asgardiana, nem mesmo o exército foi convocado. Seria uma missão liderada pelo Pai de Todos, sua Executora, Freya e as Valquírias. Existia o receio de que as informações sobre o paradeiro da Joia da Alma vazassem, que algum tolo fizesse um mapa que caísse em mãos mortais. De fato, um tolo fez um mapa que se perdeu e, ao fim de muitas eras depois, um Titã Louco conseguiu a Joia.

O nome do lugar era Volmir.


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Notas finais do capítulo

*Jörmundgandr é a serpente que circunda o mundo.
*Titã Louco é uma referência ao Thanos, que é comumente chamado por esse epíteto e que por fim pegou a Joia da Alma.
*Volmir é o planeta onde fica essa Joia do Infinito e não faz parte da mitologia nórdica. Aparece em Vingadores: Guerra Infinita, de 2018.



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