Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 7
I was in the darkness so darkness I became.


Notas iniciais do capítulo

Oi oi! Tudo certinho? Espero que tudo esteja bem desde o último capítulo e peço desculpas pelo que o conteúdo possa ter causado. Espero que tudo esteja bem no geral também.
Então amigos.... o motivo pelo qual esse daqui atrasou é muito bom kkkkkkkkkk: eu não queria postar ele. O relendo, fiquei com a impressão de que não estava muito bom (eu escrevi essa desgraça há MIL ANOS ATRÁS e só agora notei). Mesmo assim, fiz só algumas alteraçõezinhas de última hora e trago ele aqui celebrando um acontecimento: a Isabelle e o Alexander se encontrando numa corrida (?) lá. Esse aqui tem babado confusão e gritaria como sempre daquele jeito meio triste e dark que é a vibe da história. Parece doidão também, mas pedirei CALMA pois mais pra frente volto em algumas coisas que ficaram abertas. Vou mencionar aqui um TRIGGER WARNING pra menção à estupro, agressão, abuso sexual e violência, assuntos que são abordados não de forma explícita. O título vem da musiquinha Cosmic Love, da Florence. Como sempre, vou deixar outro avisozinho de trigger warning aqui e, por favor, prestem atenção!!!
*Trigger Warning* O capítulo contém menções a assassinato, assédio, conteúdo sexual, estupro e violência.



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A qualquer coisa que Cato queria ultrapassou as expectativas.

Era dia de programação obrigatória, e, por causa disso, como medida de segurança, todos estavam em seus distritos, confinados para receber o conteúdo da Capital. No meio tempo, Clove estava excelente arrancando informações das pessoas da Capital apresentadas por seu cliente. Cato era a ponte perfeita entre o Distrito 2 e todo o resto de Panem. 

Naquele dia, no entanto, eles esqueceram sobre os levantes no Distrito 7 e Snow mandando os Pacificadores interditarem as florestas, esqueceram sobre aquela gracinha com os vestidos de casamento da Everdeen (para começo de conversa, eles tinham decidido que um casamento ia ser uma boa ideia), esqueceram sobre o Distrito 12 se desfalecendo sob as mãos de Romulus Thread. O país inteiro deveria estar focado na surpresa que Snow teria preparado.

Clove adentrou a casa dele para encontrá-lo destruindo um boneco no seu quartinho especial. Ela parou na porta e absorveu o ambiente. Cato podia dizer que odiava a Academia o quanto quisesse. Para Clove, aquele quarto se parecia muito com ela.

— Oi – como quase sempre, ele foi quem falou primeiro, a observando pelo espelho com um sorriso.

— Oi.

— Wade passou aqui.

Cato guardou sua espada de escolha de volta em uma das estantes e caminhou na direção dela. Dessa vez, ele se limitou a apertar seus dedos brevemente enquanto passava ao seu lado, aéreo e conformado do jeito que era mau presságio.

Clove não ia poder consertar ele hoje.

Ela deixou que ele se afastasse pra cozinha e passou um tempo encarando seu reflexo, sempre diferente a cada vez que ela voltava da Capital. Clove quase ficou presa encarando sua roupa sofisticada e escura, no melhor estilo dominatrix, tudo para combinar com seu namorado. Ela tinha passado muito tempo querendo tudo aquilo, o reconhecimento, os olhares invejosos, a glória.

Agora tudo aquilo a enojava, não passava de um mero suborno que sequer resgatava um pouquinho que fosse de sua dignidade. Ela só queria desviar os olhos de sua figura.

Clove mal reconheceu seus olhos injetados. Seu corpo sempre cansado de uma ressaca eterna parecia pesado demais. Seus pulsos estavam muito machucados por causa daquele que agora sem cerimônias podia ser chamado de seu dono. Naevio tinha começado a mostrar suas garras e elas faziam uns estragos bons. Entre os momentos que eles passavam entre os lençóis, Clove contava seus ferimentos novos e escutava quase letargicamente o homem perguntar cada vez mais sobre Cato, sobre o que eles conversavam no tempo que passavam juntos, sobre ele sendo “apaixonado” por ela, sobre por que ele aparecia tanto em seu apartamento.

Com seus olhos cansados e seus pulsos feridos, Clove só podia jurar que não tinha nada com seu parceiro de treino e desconversar sempre que o casal do 12 aparecia nos interrogatórios sutis de Naevio. Clove sabia que alguma coisa estava errada, ela sentia em cada um de seus ossos antes de dormir. E mesmo assim, mesmo sabendo que alguma coisa viria para compensar sua desobediência, Clove havia decidido rumar diretamente para a casa dele assim que colocou os pés no Distrito 2 porque... Como não o fazer?  

Seu corpo estava danificado demais para nomear a sensação que começava a crescer dentro dela, mas se espalhava por todo ele como uma infecção. Clove só podia esperar que fosse ser abençoada com um choque-séptico a qualquer momento.

Ela inspirou profundamente. Tudo parecia pior quando ela voltava para casa. As marcas eram mais roxas, os ossos eram mais evidentes sob a pele, os pesadelos duravam mais. Na Capital, a única coisa na sua cabeça era sobreviver os dias estipulados para voltar pra casa. Ela não pensava muito quando estava lá, ela traçava automaticamente estratégias para sair inteira, trabalhava com uma versão aprimorada do instinto animal de sobrevivência.

Em casa, ela conseguia ver mais, ver mais de perto. Em casa, ela sentia vergonha.

Clove se lembrou das suas conversas cada vez mais tensas com Snow e sobre o que estava ouvindo sobre os outros distritos sendo lentamente desarmados, envenenados e sufocados por Pacificadores inventando leis e por desaparecimentos estranhos.

Ela pensou que devia ter se contentado com o tédio.

Semana anterior àquela, um deslizamento na Nêmeses tinha matado sete pedreiros. Todo mundo estava falando que não tinha relação com o Snow, porque a Nêmeses era a Nêmeses e aquele tipo de coisa acontecia o tempo todo. No entanto, se olhando naquele espelho na casa de Cato, vendo de perto os tons de azul marcando os pulsos de quem deveria ser a queridinha do presidente, Clove poderia apostar sua vida que absolutamente tudo que vinha acontecendo tinha toda a relação com o Snow.

Aquele não era o tempo certo para ser uma Vitoriosa em Panem.

E, pela primeira vez de muitas, Clove desejou não ter se envolvido com aquela história de levante. Ela desejou ter prestado mais atenção em como falava com as pessoas da Capital e desejou que Cato pudesse ser mais discreto em suas reuniões com Lyme. Ela desejou...

— Clove? – ela ouviu Cato gritar de outro cômodo, interrompendo seus pensamentos.

— O quê?

— Você me ouviu? O Wade veio aqui.

Ela se arrastou pela casa e o encontrou na cozinha, comendo uma barra de proteína.

— Pra quê?

— Para achar um jeito de te foder, claro – aquelas piadas eram mais engraçadas quando ela não estava impossivelmente desgastada exatamente porque alguém tinha achado um jeito de foder ela. Mas Cato estava num daqueles dias que estava um pouco fora de órbita, então nem reparou na ausência da risada dela. Ou não deu sinal de tê-lo feito. – Acho que ele queria ver a programação aqui. Ele estava esperando por um convite. Esperando ele ficou.

Clove se sentou no sofá e relutantemente ligou a televisão. Ainda faltava muito pro anúncio, mas agora eles eram quase obrigados a ver todo e qualquer conteúdo da Capital. A saga com o vestido de Katniss continuava a toda.

— Eu vou pra casa. Tomar um banho – ela se levantou, um pouquinho tonta como sempre vivia agora.

— Casa? Sua casa é exatamente que nem essa, por que você não fica aqui? – Cato perguntou, com ares de confusão.

— Como você coloca, eu estou acabada, acho que...  

— Tira um cochilo aí no sofá – ele tentou de novo. – A gente pode encher a cara depois que você acordar.

— Não tem mais espaço na minha cara.

Cato voltou com aquela expressão estranha dele, a olhando como se ela fosse a Gaia e estivesse com febre. Ela não conseguiu arranjar gás suficiente para ficar com raiva dele ou para sentir qualquer outra coisa. Ela soltou o ar pela boca e começou a se justificar.

— Eu tive uma semana ruim. Ele está a dois passos de destruir meus pulsos e eu não durmo há três dias porque eu estou sempre de ressaca. Eu vou melhorar se beber uma água e conseguir dormir, ok?

— Gastaram muito construindo seu corpo, não destrói ele rápido assim – Cato ainda tinha um mantra ou dois da Academia na cabeça, prontos pra serem mecanicamente repetidos. Quando ele reparou no seu tom sério, tratou de rir para fazê-la ver que sua intenção era fazer a frase soar como uma espécie de ironia. Clove só suspirou um sorriso pra aquela confusão que era ele. – Fica aí. Você dorme, eu acho alguém pra fazer uma comida decente pra você.

Normalmente, convencer Cato não tomava muita energia dela. Naquele dia, ela nem quis tentar.

— Aí a gente assiste o anúncio pra ver qual vestido a Everdeen vai usar? – Clove falou, forçando uma voz manhosa.

— O que você quiser, princesa.

Clove ensaiou um sorriso irônico e subiu para o quarto dele. Ela já estava banhada e deitada em sua cama quando Cato voltou a aparecer. Ele sentou lá na cama e em silêncio começou a fazer uma espécie de exame nela. Seus pulsos, seu pescoço, suas costas, encostando em tudo como se estivesse com medo de ela quebrar bem ali na frente dele. Clove não se moveu até ele começar a mexer em seu cabelo muito gentilmente.

— Eu pensei que você fosse arranjar alguém pra fazer alguma comida pra mim, aberração.

Ainda sem uma palavra, ele saiu do quarto de novo. Clove conseguiu dormir.

[...]                           

Ela teve um pesadelo com a garota do 6 da sua edição sendo assassinada no banheiro da casa de Cato. Toda vez que acordava desses sonhos, com suas costas ensopadas e seu rosto pálido, Clove nunca se sentia assustada, nunca ficava enojada; ela sentia cada parte do seu corpo ser consumida com ódio. O tipo de ódio que não cabia mais a ela, o tipo de ódio que impulsiona sentimentos e destrói a perfeição. Ódio de sua fraqueza, ódio de todos aqueles tributos que viviam cercando sua cabeça, ódio de Snow e Naevio.

Clove, por impulso, fechou as mãos ao redor de seu pescoço, como se esperasse encontrar algo além de seus próprios dedos lá.

Ela continuou na cama, deitada de lado, quase ficando sem ar a cada vez que se lembrava de suas reuniões com Snow, contando as marcas azuis em seu braço. Não havia nada que ela odiava mais que estupidez. Toda vez que sua mente viajava refazendo seus passos atrás de uma justificativa, um erro que a tivesse colocado naquela situação, ela se observava cometer seu pior pecado: Clove era incorrigivelmente presunçosa. Ela devia ter se comportado melhor. Se ela tivesse feito tudo certo, o velho não teria colocado ninguém para domar ela daquele jeito. Se ele não desconfiasse de nada, Clove ainda estaria bem.

De repente, passando os olhos pelo ambiente, ela sentiu que uma parcela grande da culpa de tudo era de Cato. Ela odiava aquele quarto ridículo dele, todo pessoal, todo confortável, tudo pra parecer que ele era melhor que ela, que ele conseguia dormir, que conseguia viver além dos Jogos.

Se ele nunca tivesse a confrontado sobre o levante, ela nunca teria sido obrigada a provar pra ele que era melhor e nunca teria se envolvido com tudo aquilo.

Em retrospecto, se Cato não tivesse matado a porra do pai dele, ele não teria ido pros Jogos tão cedo e ela também não precisaria ter ido no ano exato em que o homem da Capital tinha ficado famoso. Ela iria ser respeitada, seus pulsos não estariam machucados, ela não estaria molhando seu travesseiro com lágrimas, nada daquilo estaria acontecendo.  

Se Cato simplesmente não existisse, Snow não teria colocado o homem da Capital no jogo porque ela jamais ficaria perto dele, ele jamais poderia ser mencionado nas insinuações ameaçadoras do presidente, o homem jamais teria sentido a necessidade de marcá-la como propriedade dele.

Tudo era culpa de Cato e seus olhos azuis ridículos, seu complexo de grandeza e sua fé louca.

O tipo de ódio que queimou em suas órbitas a deixou sem ar.

Quando eles comeram em silêncio na sala, antes da programação obrigatória, Clove mal conseguia esperar ele virar de costas para sussurrar “eu te odeio, eu te odeio, eu te odeio” como um mantra. Uma maldição.

— Melhor? – ele perguntou, sem escutá-la, tão melhor que ela, tão superior.

— Quantos clientes você já pegou?

Todo insultado, todo confuso, ele ergueu os olhos para ela lentamente, as piscinas azuis parecendo levemente agitadas. Comumente, aviso prévio de que ela devia desistir do que quer que estivesse planejando porque ele não ia ceder. Clove não se importou.

— O quê? – Cato grunhiu.

— Eu peguei trinta e sete, mas você tem um ano a mais que eu e aguenta mais, então, o quê, uns setenta?

Clove, um pouquinho de nada histérica, observou Cato respirar pesadamente enquanto a encarava com... horror, com contrariedade? Como se não acreditasse... na pessoa dela existindo?

Clove não sabia nomear como Cato a encarava às vezes.

— Eu não fico contando, Clove – ele decretou, entredentes.

— Sério? – cinismo pingava de sua simples palavra.

— Sério – a simples palavra dele era feita de pedra; não devia ser mais contestada.

Ninguém conseguia fugir do veneno dela, no entanto. A voz dela ecoava e ecoava, o tempo todo montando armadilhas novas na cabeça de suas vítimas, preparando o terreno para algum tipo de destruição. Ele cerrou ainda mais os dentes.

Cato não queria cair em nenhuma armadilha naquele dia. Não em uma dela, porque a do Snow seria com certeza boa o suficiente. Ele ignorou sua respiração entrecortada, seus olhos com esperança queimando a pele dela tamanha raiva que irradiava deles, ignorou seus punhos se fechando.

Ele se levantou para levar os pratos para a cozinha e Clove não pôde esperar ele se afastar para voltar com seus sussurrinhos.

— Adivinha. Eu também te odeio – ele latiu.

— Filho da puta.

— Vadia.

Clove devia ter perdido o gás – ou o concedido a vitória –, porque o deixou com a última palavra. Ele observou a neve no quintal e desejou que ela tivesse ido embora. Ele quebrou um copo na pia e se odiou por tê-la pedido para ficar. Ele voltou a se sentar do lado dela para ouvir o presidente recapitular os princípios do Massacre Quaternário.

No primeiro, cada distrito escolheu quais crianças deveriam ser mandadas pra arena, o que não era incomum ao 2. Quando um tributo do 7 venceu em vez dos carreiristas, foi obviamente um vexame. No segundo, foi a vez dos quarenta e oito tributos e um vencedor do 12, Haymitch em pessoa.

Cato sentiu Clove soltar a respiração e murchar, como se tudo estivesse perdido. Ele se sentiu enrijecer, sentar na beira do sofá e apoiar o cotovelo nos joelhos em expectativa.

— E agora nós temos a honra de realizar o terceiro Massacre Quaternário. No aniversário de setenta e cinco anos, para que os rebeldes não se esqueçam de que até mesmo o mais forte dentre eles não pode superar o poder da Capital, o tributo masculino e o tributo feminino serão coletados a partir do rol de Vitoriosos vivos.

Qualquer racionalidade parou de existir. Nada mais passou pelo campo do pensamento. A razão foi abolida.

Vinte segundos se arrastaram até a coisa ser entendida; antes de Cato começar a rir e Clove correr de volta para sua casa. Atravessando a neve, ela ainda conseguia ouvir a risada descontrolada e insana dele. Na sua casa, suas mãos tremendo e derrubando garrafas enquanto ela tentava meramente entornar um pouco de álcool em seu sistema, ela ainda conseguia ouvir.

Não, não, não, não, não.

Mais dez minutos se passaram antes de Clove ter um ataque de pânico e sentir suas vias respiratórias se fechando. Ela tropeçou pela escada e vomitou suas tripas fora, seu rosto todo molhado com lágrimas que ela sequer tinha sentido cair. Ela encheu a pia de água e mergulhou sua cabeça lá.

Dois minutos.

Quando ela emergiu, seus pulmões queimando e sua roupa encharcada, ela passou meia hora encarando o vazio, sem se mover. Ela ouviu a risada de Cato. Imaginou se ele fecharia as mãos ao redor de seu pescoço, bem rápido, só pra que depois pudesse abraçar ela até seus ossos doerem. Depois, Clove gastou toda sua força e toda sua garganta destruindo o banheiro da sua casa.

No meio tempo, Cato não conseguia parar de rir. Ele engasgou com rum porque não conseguia parar de rir. Ele cortou seu próprio rosto tentando cortar objetos porque não conseguia parar de rir. Tudo estava doendo porque ele não conseguia parar de rir.

Quando tudo estava destruído, ele finalmente parou. A casa caiu em um silêncio mórbido e insuportável; logo, a única coisa que combinava com ele era a sua companheira mais fiel. Então, como um fantasma, ele abriu a porta que dava para o quintal e, olhos vidrados na neve, sentiu pequenas linhas de água salgada cortarem seu rosto e tremores esquisitos sacudirem seu corpo a cada vez que mais lágrimas se espremiam para fora de seus olhos. Como o animal que ele tinha sido nos seus Jogos, Cato gritou.

Duas horas se passaram.

Porque Clove se recuperava mais rápido, ela voltou para a casa dele, os mesmos pulsos roxos, uns novos cortes marcando sua pele, álcool nublando seus olhos como uma doença fatal. Um tremor novo subiu por sua espinha quando ela não encontrou Cato sentado nos degraus do quintal. Cambaleante, ela retornou para dentro da casa, tropeçando em todo o estrago que ele tinha feito.

— Cato! – ela se ouviu gritar. E de novo e de novo, até que ele surgiu de dentro de um quarto que nunca era usado.

— Já? Não aguentou de saudade? – ele rosnou.

Clove absorveu os cortes no rosto dele, o sangue marcando suas mãos, seus olhos injetados e antes de perceber que devia estar em um estado parecido, sentiu vontade de vomitar de novo.

— O que é, Clove? Fala logo. O que vai ser agora? Você sente muito? Você não me odeia, porra? Vai se foder.

Ela não tinha mais voz. Clove ficou parada lá, sua respiração entrecortada como se ela tivesse acabado de subir o Voivode correndo. Cato a olhou de volta de braços cruzados, sua figura ofegante impossivelmente imponente, impossivelmente destruída. Era a vez dele de ficar com raiva da existência dela, ela sabia. Clove quase quis que ele gritasse com ela, atribuísse culpa a alguém, quebrasse alguma coisa na sua frente. Tirasse aquela coisa que cortava seu coração dos olhos e a substituísse por ódio.

Quando ele voltou a falar primeiro que ela, no entanto, não saiu nada que ela estava esperando.

— Você não vai voltar. 

Podia ser entendido como a tentativa vazia e ríspida dele de confortá-la. Um pouquinho que fosse, Clove o odiou ainda mais. Ela engoliu o amargor.

— Eu vou achar alguém para se voluntariar – Clove finalmente desentalou, puxando o pé pra longe de um caco de vidro do tamanho de sua mão. – Pra você.

— Aham, foda-se, que seja – ele dispensou. – Não importa, Clove.

— Não, Cato, por favor, escuta! – era uma súplica. De olhos selvagens como se ele estivesse desistindo dela bem ali, Clove sentiu sua garganta se apertar e tentou atravessar a distância entre eles. Ela quase escorregou na água caída de algum vaso de flores, quase se cortou com lascas de madeira e vidro. – Você não pode voltar pra lá. Você não, você não dá certo lá, eu vou dar um...

— Para com essa porra! Sossega! – Cato se afastou dela e começou a subir as escadas, passando freneticamente as mãos pelo cabelo. No corredor, quando ele passou pelo quarto, Clove o empurrou para dentro. Sentado na cama, Cato sentiu seus punhos se fecharem, seus dentes cerrarem e imaginou se Clove era burra o bastante para se trancar num quarto com ele naquelas circunstâncias.

Mas tudo doía e tudo estava confuso, então ele só observou enquanto uma Clove levemente borrada saía do quarto e voltava com um aparelho de som. Enquanto uma música impossivelmente alta tocava – aquilo era o namorado dela?—, ela se sentou ao seu lado, olhos vermelhos e vagos.

— Eu vou arranjar o Wade. Se você for chamado, ele se voluntaria. Não se atreva a se voluntariar em nenhuma circunstância. Você dá um jeito de ser meu mentor. Se certifica de que a história com o você sabe quem continua e tudo deve funcionar. Está me ouvindo?

Ele estava ouvindo perfeitamente bem.

Alguma coisa muito estranha aconteceu com o peito de Cato enquanto ele assistia Clove falar todas aquelas coisas vagas, delirantes. Ele se apertou, se comprimiu. Do nada, suas mãos se levantaram e traçaram movimentos nas suas bochechas, tocaram os lábios dela, seguiram o arco do seu nariz.

— Sai – ela mandou, sem se mexer (se ela não estivesse daquele jeito, ela ia ficar parada e deixar ele fazer aquelas coisas?). – Você está todo cortado.

Contudo, Cato continuou tocando seu rosto como se sequer houvesse a escutado.

— Você não vai voltar – ele repetiu, seus dedos traçando padrões nas sardas dela. Clove tinha olhos que não podiam possivelmente pertencer à raça humana. As cores indefiníveis, o formato, aquele sempre presente ar de vigilância, tudo denotava selvageria, contrastava muito com o resto dela.

— Que seja.

Ele sabia que não sabia fazer nada além de ser egoísta. Por causa disso, ele sabia que voltar pra Capital e assistir de novo Clove assassinando e estando a dois passos de ser assassinada iria destruí-lo. Naquela altura, ele não podia se dar ao luxo de passar outros dez dias sem dormir, dez dias sem duas horas sóbrio, dez dias sem conseguir respirar direito, como se uma faca estivesse contra seu pescoço o tempo todo.

Por que porra ele se importava daquele tanto com ela? Que diabo era aquilo?  

— Porra nenhuma. A gente troca. Você fica de mentora, eu vou – era uma ordem. Clove fez uma expressão de desprezo porque coitado dele.

— Eu ia te matar. Eu sou uma mentora muito ruim.

Ele deu de ombros e abaixou as mãos do rosto dela, todo conformado, se virando para frente. Cato não se importando em morrer não era novidade para ela. Não era pra ninguém, nunca era para os Vitoriosos. Mas alguma coisa a respeito dele era distinta. Clove encarou seu perfil por uns segundos. Ele não era um sobrevivente que nem ela; Cato sabia fazer mais que sobreviver. Era quase como se a vida dele valesse um pouco mais.

Suspirando, ela tirou os sapatos e subiu pra cabeceira da cama.

— A gente começa o treino de verdade amanhã – ela disse, puxando as cobertas e se enrolando nelas. – Vem. Mas não chega perto, você derrubou rum na sua roupa.

Durante a madrugada, Clove chorou mais um pouco, embalada no cheiro forte de álcool que tomava o quarto, presa pelo braço pesado de Cato. Ela não tinha certeza do porquê. Ela não tinha certeza se era por causa da possibilidade de um retorno à arena. Ela conseguiria passar por mais uma edição dos Jogos, disso ela quase tinha certeza. O problema era que Clove tinha entendido perfeitamente bem que aquele era o jeito que o Snow tinha dado de acabar de uma vez com qualquer ideia de rebelião. Logo, Katniss teria que morrer. Com ela, todos os Vitoriosos que suscitavam alguma ideia de resistência. E, daquele jeito, toda fraca e desesperada e controlada por uma pessoa da Capital, ela não era exatamente um perigo.

Enquanto soluçava desesperadamente, ela se lembrou do deslizamento na Nêmeses, do acontecimento com o Haymitch e os outros, da conversa com a Lyme, de Attico e Iana.

Clove sabia bem quem tinha mais chance de voltar para a arena. Com isso, ela não se atreveu a olhar para Cato e sufocou o grito que subiu por sua garganta.


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Notas finais do capítulo

Ai eu gosto tanto deles, gente... Você já pensou, a Clove dizendo que vai achar alguém pra se voluntariar pro Cato não voltar pra arena????? POWERFUL
Tem um negócio que eu provavelmente deveria ter mencionado no começo da história, mas..... ainda vale, né? Acho que meio que deu pra perceber que do que a gente fala de verdade é da relação Cato + Clove, certo? Coisas acontecem e tudo mais, mas na verdade o babado aqui é ver como eles estão se desenvolvendo e amadurecendo Enquanto Pessoas, o que justifica minha displicência em detalhar algumas outras coisas até agora. De qualquer forma, esse capítulo marca um ciclozinho sendo fechado, pois agora as coisas ficarão babadeiras e serão mais bem explicadas & detalhadas (mas não muito pois doida e não entendo nada dessa coisa de guerra) kkkkkkkkk então, bebês, voltem pro próximo pois tb confusão e guardem na cabeça que eles dois são os últimos vencedores do distrito etc...... Beijão e obrigada por ler ♥



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