Glory and Gore escrita por Iulia


Capítulo 1
I've come to burn your kingdom down.


Notas iniciais do capítulo

GENTE DO CÉU!!! Quê que cê põe em nota inicial de capítulo mesmo hein???
Oi! Voltei né! Porque eu nunca vou embora de verdade desse site, eu acho, não até todas as pessoas com conta aqui voltarem a escrever sobre Cato e Clove. A última história que eu postei aqui foi lá no comecinho de 2016 e eu pensei que já tinha dado pra mim e pros meus filhos Clato até que. PLAU. Quem é que ganhou as edições dos Jogos antes da Katniss? Por que o Cato e a Clove não podiam ser mais velhos e irem mais cedo pros Jogos, em edições diferentes? Será que tem alguma história sobre isso? Basicamente, eu estava assistindo Em Chamas e pensando que seria tudo ter meus favs ali no meio daqueles rolos. Então eu simplesmente coloquei eles no meio e aqui está esta humilde historinha, que começou ser escrita lá em setembro (outubro talvez?) do ano passado e que arrancou meu couro demais pra criar forma. Mas é minha história preferida de todas que eu já escrevi e eu tô orgulhosona desse trem aqui, sério. A bicha é PESADA.
E por isso, pelo meu amor por esta história, estou #receosa de estar voltando pra cá para receber o flop, considerando as 750282 Everllarks que dominam a categoria de Jogos Vorazes. Mas tal qual a diva pop que eu deveria ser, eu adoro uma fuleiragem e uma palhaçada, de forma que vim postar SIM porque nada mais importa se não for minha opinião e minha opinião é que vocês precisam prestar atenção em Clato. Eu queria que a Suzanne Collins me desse os direitos deles que eu ia pegar e pagar os atores pra fazer de novo a cena que a Clove morre para que todos vissem que tinha algum caroço naquele angu. Eu também ia lançar 671 livros sobre eles e é isto. Vão ser o tema do meu TCC, também. E eu amo estar de volta em 2012.
Creio que é isto. Se não tiver 57 comentários até a próxima postagem fanfic DELETADA. Brincadeira (eu sempre quis fazer isso enquanto eu escrevia as outras 937 histórias sobre Clato). Mas assim. Se vocês vão ler esse trem, por favor, comentem, pra eu não ter que parar de postar e fingir que isso aqui nunca aconteceu.
Agradecimentos novamente à Clarinha, que foi a primeira pessoa a ler este capítulo. Seria a única, talvez, se não fosse Alice, outro anjinho precioso.
Ah. O título do capítulo vem de Seven Devils, uma musiquinha da Florence and The Machine.
*Trigger Warning* Esse capítulo irá conter menções à prostituição.



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Fechando a porta atrás de si com toda a força que tinha, a garota derrubou a bolsa pesada no assoalho de madeira. Ficou parada uns segundos no hall de entrada, absorvendo o ar morno do ambiente, esperando que seu nariz parasse de doer pelo frio, que seu pulmão sossegasse.

Ela respirou fundo e trincou os dentes. Era uma espécie de ritual que costumava anteceder lutas.

Alguma coisa a impediu de falar qualquer palavra para o garoto sentado na porta que dava para os fundos, ainda que aquela fosse a casa dele e ela fosse tecnicamente a visita que devia se anunciar. O fato de que ele estava ali que nem um louco, tentando arranjar uma hipotermia e enchendo sua cozinha de frio e neve, impulsionou uma raiva adormecida dentro de si.

— Oi – ele tomou a iniciativa de dizer, ainda sem se virar para vê-la.

A simples palavra bastou para fazer o copo transbordar.

— Que porra foi aquela? – Clove cuspiu, tentada a puxar a jaqueta de Cato e obrigá-lo a olhar pra ela de verdade. Contudo, ela tinha muita ciência de que a força dele ia dominar a dela em segundos. Ela se contentou em pairar de pé exatamente ao seu lado, chutando sua perna de leve ao fazê-lo. – Eu vou ficar com pena da sua cara ridícula se o seu showzinho causar mais alguma merda, seu filho da puta.

Ela esperou, parada naquela pose de poder. Então ouviu um suspiro vindo dele, como se ele fosse começar a rir.

— Você viu a cara deles?

Clove sabia que ele não tinha sido feito pros Jogos desde que matou seu primeiro tributo, quase três anos atrás. Ela viu a névoa estranha que se espalhou nos seus olhos, ela ouviu as risadas estranhas que ele soltava às vezes.

Mas isso de agora era diferente.

— Seneca Crane já está morto, Cato.

— Que ruim para ele.

Clove adorava as gracinhas que vinham dele.

Eles sustentaram o contato visual por uns segundos. Cato ergueu as sobrancelhas e riu na cara dela, daquele jeito de quem lança um desafio que sabe que a outra pessoa não vai aceitar. No entanto, uma mudança leve na sua expressão facial o fez reconsiderar.

Era estranhamento. Porque Clove, Clove, estava achando ele estranho, ele mudou o tom de voz.

— Você não é burra, todo mundo sabia que isso ia acontecer.

Ela não podia dizer que estava surpresa ou confusa pelo quão simplório – ou perturbado – o pensamento de Cato era. Alguma outra coisa atravessou a mente de Clove enquanto ela bateu a porta da cozinha atrás deles e se sentou ao seu lado. Talvez o rastro de uma solidariedade que ela não sabia como ter. Talvez preocupação. Talvez alguma outra coisa.

— Eu não sou mesmo. Nem você devia ser desse tanto.

— Fala o que você tem pra falar – ele quase ordenou num tom impaciente, de novo sem olhar para ela, escolhendo encarar aquela neve opressora, poderosa, que cobria e dominava tudo.

— Você é esperto o bastante pra saber que o Crane ia ser morto rápido desse jeito, mas não consegue saber que você também vai ser se não calar a porra da boca?

— Você está muito tensa.

E foi isso. Sem mais palavras, sem outra explicação. Tudo recaía sobre ela sendo paranoica.

Depois de alguns segundos naquele silencioso placar empatado, Clove foi obrigada a pensar em um ataque novo. Ela ponderou sobre o que o perturbaria mais, no quê o deixaria com raiva o bastante para abandonar aquela encenaçãozinha de tranquilidade, de consternação. Não combinava com ele.

— Você estava tentando cometer suicídio – ela atestou.

 A reação grandiosa que ela queria não veio, no entanto. Cato ficou lá em silêncio, olhando pra ela como se não pudesse acreditar no quão ridícula ela era, aquele sorriso de quem está se divertindo à custa dos outros pairando em suas feições.

— Eu estava passado, Clove – seu tom era suave, despreocupado, do jeito que ela odiava.  – Nossos tributos morreram, a onda de sorte do 2 acabou, eu passei um pouco da linha.

— Todo mundo viu você sabotando o Bac, melhora suas historinhas.

— Bom, mas ele foi comido vivo por mutações. Eu fiquei triste, eu ainda tenho um coração, bebê, eu precisava de alguma alegria. 

Bebê. Clove sentiu seus pensamentos ficarem borrados, sentiu a raiva esquentar suas bochechas. Aquele tom trivial dele, o jeito que ele mudava as expressões faciais para combinar com cada provocação, era tudo que mais dava nos seus nervos.

Foda-se.

Se era assim que ele ia jogar pelo resto da vida dele, então ela não tinha mais nada a ver. Ela nunca tinha tido nada a ver com a pessoa dele pra começo de conversa; com aquelas gracinhas dele de agora, como se ele pudesse se dar ao luxo de bancar o louco, ela tinha menos ainda.

— Me avisa na próxima. Eu torço com você pra um Pacificador estourar seus miolos de uma vez.

Ela estava entrando de volta na casa quando ouviu ele dizer, como se sequer se importasse se ela fosse ouvir, uma daquelas verdades absolutas dele:

— Você só está amargurada porque fracassou no seu primeiro ano. Haymitch tirou dois vivos de lá, ele merece os parabéns.

A fala ficou suspensa no ar por um tempo, sendo assimilada. Então, ela disse:

— E você merece ir se foder.

Cato riu sozinho mais um pouco.

Ele observou as montanhas atrás do distrito, as florestas, a neve igual à que tinha coberto a arena dos seus Jogos. A dor que o frio causava no seu corpo era a mesma, mas parecia diferente lá, do lado de fora. Do lado de fora, ele até gostava dela.

Então as cenas voltaram, mas só como borrões, algumas cores contrastadas contra o branco. A neve acumulada entre os degraus podia estar manchada de sangue, que nem tinha ficado lá dentro, um vermelho impossível. As pontas dos seus dedos podiam estar roxas, naquele tom que implicava só uma linha fina entre a vida e a morte.

Um barulho súbito. Seu coração disparou pelos nano segundos que precisou para reconhecer o ruído. Alguém tinha corrido as mãos pelo aparador na sala e derrubado os vasos.

— Aonde você está indo?

Ela tinha ficado irritada.

Cato só suspirou um riso, como sempre. Talvez fosse melhor que ela fosse embora mesmo.

Ele ainda não conseguia ser muito gentil com ela. Não depois de ter sido seu mentor nos Jogos, não depois de ter voltado e a avisado pra não cometer o mesmo erro. Ele estava lá o tempo todo; nas suas cerimônias, na sua turnê, nos seus trabalhos na Capital, vendo tudo.

E mesmo que ele a ouvisse à noite, mesmo que fosse ele quem tinha que ficar lá, ser obrigado a juntar tudo pra tentar consertar ela, ela nem sequer admitia o erro. Nem sequer parecia arrependida.

Tomava muita energia dele não acabar com aquilo de uma vez e simplesmente fechar as mãos ao redor do pescoço dela. Ele iria logo em seguida. Ia ser o fim da história.

Mas nada era tão simples assim. Era tudo diferente do que ele tinha pensado. Ser um dos queridinhos da Capital envolvia mais do que a onipotência que eles prometiam. Envolvia muito mais.

De volta à realidade, a possibilidade de que Clove tivesse feito uma bolsa só para atravessar a rua e dar uma bronca ridícula nele era ainda mais ridícula. Era nula.

— Pra sua casa? Pra você poder surtar a noite toda e não deixar ninguém dormir?

Ela não parou. Ela não pertencia naquela bagunça. A voz dele saiu mais suave:

— Eu estou acabado, eu realmente preciso dormir.

Cato chegou muito perto enquanto ela pegava a bolsa do chão. Uma memória foi resgatada dos dias antes dos Jogos, quando eles eram parceiros de treino. Ele se lembrava da obsessão estranha que ela destinava a ele. Ele suspeitava que fosse alguma coisa na sua aura de poder, no jeito que ela se arrepiava sempre que ele começava a falar sobre destruição, mas sempre pedia pra ele falar mais. Eles costumavam fazer tudo que o outro mandava, por diferentes motivos, mas com o mesmo brilho de admiração doentia nos olhos.

De um jeito estranho, eles ainda funcionavam assim. O que mais eles podiam fazer?

— Vamos assistir a entrevista, ok? – ele continuou, depois de longos segundos sustentando seu olhar, tomando a bolsa das suas mãos.

Ela ficou; eles não falaram uma palavra a noite inteira, nem mesmo quando o casal do 12 apareceu e os dois franziram o nariz pra expressão devotada do menino, nem mesmo quando a reprise mostrou Bac trair Diana e a deixar morrer, nem quando Bac implorou para Katniss matá-lo.

Cato limpou a bagunça que ela tinha feito com os vasos de porcelana, despejou algumas barras de proteína no espaço entre os dois no sofá e depois eles subiram para o quarto dele, acordando tacitamente.

Ele queria que os resquícios daquelas coisas que eles faziam lá na Academia anos atrás estivessem mortos para que ele pudesse ir em frente e odiar ela em paz. Mas toda vez que ele a via em carne e osso, longe das reprises dos seus Jogos, longe dos eventos televisionados pela Capital, ele via que os resquícios ainda estavam lá, manchando tudo, fazendo ele sentir coisas que não eram muito distantes do ódio, mas que não cabiam na definição oficial da palavra.

Não havia nada em seu pescoço além de marcas roxas descendo por sua extensão. Cato tentou se lembrar quantas eram de sua autoria, de lá da Capital. Ele não se lembrava muito bem – precisava de muito álcool pra passar por aqueles períodos lá – mas alguém que tinha o mesmo cheiro dela tinha cravado os dentes no seu ombro e entoado “eu te odeio eu te odeio eu te odeio” o tempo todo enquanto eles estavam deitados em alguma cama.

Virado para o teto, não se atrevendo a olhar para Clove, Cato pensou na Capital; na sua vitória, nos amantes do 12, em Clove atravessando o estômago do garoto do 7 e sendo levada pelo aerodeslizador segundos antes de desmaiar por conta de uma hemorragia. Então, ele encheu sua cabeça com promessas de destruição e vingança.

[...]

No outro dia, Cato sentiu raiva muito cedo. Tudo estava normal, morno, dormente. Mas quando ele sorriu pra Clove sentada no seu sofá, quando ele sentiu alguma coisa calorosa a vendo parada lá, toda encolhida como nunca ficava antes dos Jogos, ele sentiu raiva. Depois de tudo, ele ainda se prestar a não só se importar com a existência dela, mas também a sentir coisas por conta dessa existência era o cúmulo.

Ela sorriu de volta.

— Dois dias de folga? Os negócios esfriaram?

Ele estava sempre se dizendo pra não tocar nesse assunto. O que a Clove fazia na Capital não era problema dele, que nem o que ele fazia não era problema de ninguém. Algumas vezes, no entanto, ele conseguia ver (às vezes, ela mostrava pra ele) as marcas que eles deixavam nela e tudo que ele queria era gritar “eu te avisei” até que ela finalmente admitisse que não achava tudo aquilo normal, que tinha sido enganada também.

No final, ele tinha medo de que ela não tivesse sido, porque quem Clove seria se soubesse o que os Jogos eram o tempo todo e ainda assim tivesse decidido ir?

— Eu tenho um fixo agora – Cato a ouviu dizer, enquanto pegava uma maçã.

— Tem, é? O que isso significa?

— Significa que eu vou ser a namorada dele.

Cato jurou que tinha escutado uma risadinha escapar por entre as palavras dela.

— É melhor? Pra você?

— Depende. Quer dizer, se ele quiser acreditar nisso também, então...

— Ele vai te tratar que nem a namorada dele – ele completou, voltando pra sala. Diferente do que esperava, ele não a encontrou em uma de suas posições descontraídas, relaxadas; ela meramente assentia à suas palavras, seus olhos presos na televisão desligada. Ele ficou um pouco surpreso. Cato não tinha muita ideia de quem Clove era mesmo, na verdade. – Você acha que é pior? Sério?

Não mexe com isso, não mexe com isso, não mexe com isso.

— Cato, eu fui vendida. Ele não vai só me foder e me deixar em paz, eu estou presa nessa merda pro resto da minha vida.

Cato sentiu a familiar urgência de se afastar e parar de ouvir àquilo. Não tinha nada que ele pudesse fazer. Já estava ruim do jeito que estava. Se ele fosse começar a associar Clove, aquela Clove ali na sua frente, com as pessoas da Capital, aquelas mesmas pessoas que encostavam nele...

— Você sabe o tipo de esquisito que você pega, pelo menos você vai se livrar dos outros. Vai ser só um – ele se flagrou voltando a falar, uma pressão esquisita no fundo do seu estômago. – Ele é muito ruim com você?

— Até agora, não.

— Então qual é o problema? Aproveita a folga. Você vai se livrar do elemento surpresa.

— O problema é que ele vai me beijar e talvez ele vá me pedir pra morar com ele e casar e tudo. Ele vai querer que eu me apaixone por ele – Clove latiu repentinamente, olhando pra ele com acusação. Segundos depois, encarando sua ainda confusa expressão, ela continuou, cheia de ares de frustração: – Porra, Cato, soma dois mais dois.

Como cortesia, Cato então tentou somar dois mais dois. Ele puxou as memórias dos últimos dias deles como mentores e da vez que ela voltou de uma “reunião” com uma raiva esquisita que ultimamente não combinava com ela. Ele se lembrou dela entrando subitamente em seu quarto e quase o forçando a tirar suas roupas. Ele se lembrou dela na noite anterior, montando bolsas de roupa só pra avisá-lo pra ser mais discreto nas suas comemorações com Haymitch Abernathy, vendo suicídio em uns falatórios de bêbado feitos na frente de Pacificadores.

E ali ao vivo, ela assumindo que ele devia deduzir algo daquele gênero logo de cara, esperando que ele tomasse a coisa toda como natural, tarefa impossível não fossem todos aqueles anos a estudando à exaustão como concorrente e seu tempo extra de experiência com a Capital.

— Você não está mais autorizada a me ver – ele resumiu neutramente, cruzando os braços numa percepção estranha da realidade, quase como se suas palavras não tivessem nenhuma relação com ela.

— É. Eu imagino que...

— Isso é besteira, não precisa. Eu vou parar de te foder, eles não vão...

— Eles vão sim. Esse negócio é pra desviar a atenção dos 12. Todo mundo vai estar prestando atenção em mim, se der certo. Não ia pegar bem voltar pra cá toda hora ou ficar aparecendo no seu apartamento lá.

Aí a coisa bateu.

Cato ficou lá, parado. Ele mal escutava nada que ela dizia, mal enxergava sua linguagem corporal toda objetiva, metódica, com ares de obviedade. Ele se desligou.

— Você ia ficar achando que eu decidi bancar a vadia e simplesmente parar de falar com você por causa da coisa com o Haymitch, então... Aviso prévio.

— Ok.

O silêncio quase comprimiu a casa, quase tornou a mera gravidade impossivelmente pesada. 

Clove inconscientemente evitou respirar; ela observou Cato se desencostar do batente da porta e andar de volta pra cozinha, correndo a mão pelos cabelos.

— Quando você volta pra lá? – ele perguntou, o tom de voz grave.

— Semana que vem. Pra entreter todo mundo antes da turnê começar. Sua agenda deve estar cheia, também.

— Sabe de uma coisa, Clove, eu nunca pensei que você fosse desse tipo – Cato rompeu, mal esperando ela fechar a boca após a fala anterior. Ela sabia que aquela reação dele de “beleza, então” estava muito fora do esperado, afinal. Ele estava sumido pra dentro da cozinha, mas ela ouviu aquele riso estranho, descontrolado, nas suas palavras.

— De que tipo? – Clove perguntou, em parte porque queria mesmo saber, em parte porque queria que ele acabasse logo com aquilo e reagisse apropriadamente de uma vez.

— A porra de um cara rico te manda não olhar mais na minha cara e você obedece? Você é mesmo do 2? Que porra é essa?

— Vivendo e aprendendo – ela retrucou, calculadamente. Essa era a coisa com Clove: ela sempre queria provocar qualquer pessoa ou coisa, causar o máximo de estrago possível, porque, afinal, era tudo ou nada. 

— Se você tivesse me ouvido, isso não estaria acontecendo. Se você não fosse a porra de uma vadia teimosa, ninguém teria te comprado, ninguém ia te fazer sangrar que nem aquele menino do 1 fez...

A coisa toda – a coisa toda do seu aliado do Distrito 1 cortando sua perna nas últimas horas da sua edição dos Jogos – tinha sido aparentemente muito traumática para Cato. Não havia mais sequer uma cicatriz porque a Capital gostava de perfeição, mas ele sempre traçava o exato formato da ferida quando encostava na sua pele.

— É a sua cara, essas coisas. Claro que você ia ser comprada por algum rico esquisito que ouviu sobre suas performances excelentes. A bonequinha do Distrito 2, toda empenhada.

— O que eu posso dizer? – Clove não se preocupou em esconder seu sorriso leve de escárnio. Cato era limitado e aquilo era um pouquinho engraçado. Tudo tinha a ver com ciúmes. Dela com seus clientes, dela com a vitória, dela com a atenção.

— Você podia ter parado de dizer que dá o melhor de si pra todo cliente, sua vadia.

Mas, às vezes, as coisas perdiam a graça. E Clove precisava colocar limites nas gracinhas dele.

— Cato, presta atenção no que você fala – ela avisou, sua voz uma espécie de sibilo. Ela não se importava muito com as acusações ridículas que ele vivia fazendo, porque ele era fraco e ela até conseguia entender que pra ele, pro garoto de ouro do distrito, ver ela com outras pessoas e com seu título de Vitorioso mais recente devia ser complicado.

Ela achava divertido o atormentar daquele jeito porque ele se atormentava muito fácil.

Mas Cato havia vindo da mesma Academia que ela. Ele podia não ter o mesmo talento verbal dela, a mesma capacidade de falar macio, mas, no final, a arte de atormentar era componente básico de formação. Ele era pouco refinado nela, no entanto, sabia perfeitamente fazer um estrago ou dois. Intencionalmente ou não, ele sabia como acessar os pontos fracos.

Clove inconscientemente se encolheu. Só um pouquinho. Cato reconsiderou sua fala e ficou calado por uns segundos só olhando para ela, acalmando sua respiração. Porque ela se recuperava mais rápido que ele, foi ela, que sequer se deu ao trabalho de interpretar seu olhar, que voltou a falar:

— Você sabe que não adianta nada fazer drama.

Para Clove, a coisa com Cato era que ele parecia sentir mais que todo mundo.

Ela assistiu com uma expressão que não podia ser nada além de desprezo ele se afastar como se alguém houvesse socado seu peito. Seus olhos reviraram. Teatro era a coisa dele.

— Você está pouco se fodendo pra essa merda, não é, você saiu da sua casa nesse tempo pra jogar na minha cara que você é doente e que tem um namorado rico novo.

Ela continuou sentada no sofá, estudando a vermelhidão no rosto do garoto à sua frente, apreciando o fato de que ele não tinha se lançado na tarefa de destruir objetos ao seu redor ainda. Imaginando se ele realmente era ingênuo daquele jeito ou se era só burrice.

— Eu vou te ajudar a fazer a conta: duas pessoas saíram dos Jogos, o Snow não gostou. Ele já matou o Crane e isso nem tem uma semana. Ele quer uma distração, eu sou a última Vitoriosa dele e tem esse novo cara rico que é um cantor. Já que você é um gênio e já deixou claro que adorou o casalzinho saindo de lá, ser vista com você seria antítese pro pessoal da Capital e pro Snow e ele ia pensar em traição. Mesmo se eu não fosse tão boa no que faço, mesmo que as pessoas não estivessem fazendo fila pra me comprar, eu ainda teria que fazer isso.

Alguma coisa na voz macia dela, nas suas palavras duras e impessoais parecendo seda quando saíam da sua boca, fez o rosto de Cato se avermelhar ainda mais. Ele balbuciou alguma coisa, sacudiu a cabeça e adentrou a cozinha de novo.

Clove imaginou se ele estava se afastando porque estava com medo do que aconteceria se ele se aproximasse. Ele não ia encostar nela, mas o medo dele de o fazer era de outro mundo.

Ela suspirou e fechou os olhos por um segundo.

O que ela podia fazer? Sua cortesia de avisá-lo antes não era boa o bastante? Cato conseguia ser a pessoa mais dramática do mundo. Clove realmente não o entendia às vezes, não conseguia seguir sua linha de raciocínio. Ele era todo cheio de emoções e de rompantes, de raiva e de uma paixão perigosa.

Ele era cheio de tudo que Clove mais odiava.

Ela mal conseguia nomear aquele tanto de sentimento que ele parecia ter, aquela confusão inquieta da qual ele nunca saía, como se a cada segundo o mundo dele se despedaçasse outra vez. Ela simplesmente não conseguia, simplesmente não era capaz de entender – ou dar— o que ele queria.

Por algum motivo, agora aquilo a incomodava.

Quando ela deu por si, havia o seguido para fora da casa, de novo na neve. Ela sentiu a substância que mais odiava no mundo alcançar um ponto pouco antes do seu joelho assim que desceu os degraus. O fato de que ele estava perto de alcançar a floresta atrás da Aldeia quase a fez rir. Parado lá, deixando todo mundo saber que ele tinha ficado louco por causa da arena, por causa de uma coisa para a qual ele havia treinado a vida toda. Que cena.

— Clove, não me testa. Volta pra dentro – Cato falou, muito baixo, enquanto ela ainda estava um pouco longe dele, mas perto o suficiente para que pudesse ouvir suas palavras quase rosnadas.

Era culpa dele. Ele que tinha se amigado com os outros distritos, ele que tinha definido que eles agora ficavam em lados diferentes. Se toda essa coisa sequer importava, era culpa dele. 

— Me desculpa.

Alguma força voltou a comprimir o espaço.

Ela parou no meio de uma respiração, seu coração pulou uma batida e, por um segundo, tudo congelou, se compactou. Clove se encheu de uma surpresa impresumível ao ouvir as palavras escorregarem pelos seus lábios, se encheu de ultraje. Desorientação a fez ficar parada encarando as costas de Cato, tentando achar razões para ter dito aquilo. Ela não se atreveu a falar mais nada.

A garota viu o movimento sutil que o corpo dele fez, de certo sendo tão pego de surpresa quanto ela. Ele também não se mexeu. Se todo mundo ficasse quieto, talvez alguma força fosse tomar as palavras de volta, fingir que elas nunca haviam sido ditas.

Clove, por que você ficou fraca assim? Não se atreva, não se atreva, não se atreva.

Uns cinco minutos se arrastaram lentamente, como se os ponteiros de um relógio invisível e onipotente houvessem sido congelados. Cato não se mexeu e Clove torceu para que fosse porque ele tinha decidido ignorar aquela demonstração ridícula de covardia dela e não porque ele estava refletindo sobre ela.  

A gravidade, a existência das coisas, a lei do espaço entre os corpos, tudo era excruciantemente pesado.

Ainda aturdida, em sinal de derrota encarando a neve cobrindo seus pés, Clove voltou pra dentro, pegou sua bolsa e foi para sua casa do outro lado da rua.

Ela jogou umas facas nos alvos que ficavam num quarto, rasgou uns bonecos, empurrou o acontecimento para o fundo de sua mente.

Mais tarde, ela recebeu uma ligação do seu novo namorado, Naevio, um cantor cuja explosão de fama coincidiu de ter sido próxima do período em que ela havia vencido seus Jogos. Ela passou duas horas rindo e flertando, agindo como se estivesse lenta e naturalmente se apaixonando; fingindo tão bem que ninguém poderia imaginar que ela sequer se achava capaz de tal ato.

Durante a noite, ela assistiu de novo a septuagésima quarta edição dos Jogos Vorazes. Tomou notas sobre Marvel e Rue, pensando intricadamente sobre aquela garota, Katniss Everdeen, estudando ela e todos que cabiam na parte apresentada do seu universo.

Ela tinha descoberto quais seriam os materiais perfeitos para construir uma armadilha.

Clove não sabia o que ia precisar para ofuscar toda aquela história com os tordos e com a irmã e o menino padeiro. Mas ia precisar de muito, ia precisar de um tipo de força que rivalizasse com a dela. Ia precisar de um tipo de força que fosse humana.

E esse tipo de força, Clove pensou, eu não tenho.

E além do mais, ela refletiu, enquanto observava a garota levar três dedos até os lábios e os estender no ar, ela não estava interessada de verdade em ofuscar Katniss Everdeen e sua história com os tordos.


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Notas finais do capítulo

AAAAAAAAAAAAAAAAAAA Eles são TUDO né, não?
E aí, bebês? O que vocês acharam deste comeback?
Eu já criei cem mil personalidades pra esses dois personagens, mas essa daqui pareceu bem estruturadinha pra vocês? Esse capítulo aqui foi mais um menos um prólogo, mas deu pra aparecer um pouquinho da vibe da história. Ninguém aqui tá muito doidão que nem em Linhas Borradas, mas já dá pra ver uns negocinhos estranhos, que vão aparecendo como consequências da vida dedicada aos Jogos. Quê mais pra dizer? Estou NERVOSA porque essa historinha é muito muito importante pra mim. O medo da exposição é real.
Ah. Um negócio massa: a maioria das ideias pra essa fic surgiram durante minhas aulas de Psicanálise. Então acho que um agradecimento ao meu professor, também.
Espero que vocês tenham gostado e COMENTEM pois quero biscoito.



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