Com amor, Lutávio escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 17
Non ti scordar di me


Notas iniciais do capítulo

Capítulo levemente inspirado em "Cinco Minutos" de José de Alencar.



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15 de setembro

Amado Luccino,

Já faz um tempo desde que nos despedimos no Vale do Café e a saudade não para de crescer em mim. Quando penso que esta guerra está apenas para começar, só o que me acalma é que já lutei uma batalha imensamente maior, aquela que travei contra mim mesmo, e nada existe maior do que isso que possa derrubar-me, pois aí sei que posso esperar por você. É bom saber que existe um lugar para onde voltar. Uma parte dos meus colegas de farda teme por nosso destino nessas trincheiras. Outros se entregam pela falta de um futuro que os aguarda. Às vezes, quando se torna deveras difícil, fico a dizer teu nome no meu pensamento, e logo a minha voz se torna a tua. Assim, durmo numa paz incômoda, conformada, porém anestesiante. Dê-me notícias suas. Espero conseguir lê-las a tempo. Também quero notícias dos outros. Não te demores. Nem se esqueça de mim.

Amor,

Otávio.

 

11 de outubro

Querido Otávio,

Tudo dorme: menos teu nome. Os tempos estão duros aqui fora. A guerra e o medo são os piores artefatos humanos já criados. Vivo aflito com você, com coronel Brandão, com Randolfo e todos os outros. Por aqui, tudo parou. Mesmo a oficina não tem se agitado como antes. As pessoas não saem de casa agora, portanto, menos carros e carroças para consertar. Mas não quero preocupar-te: estamos bem. Uma tia de Brandão apareceu no Vale do Café depois de ter perdido o marido nesta guerra. Ela está enlutada e, quando conversamos, me pergunta se já amei alguma mulher na vida, pois o amor “é o que vale à pena”. Tricôs de viúva, você deve saber. Ela parece um tanto desmemoriada, porque sempre me pergunta as mesmas coisas, mas Mariana e ela dão-se bem. Cordélia, como se chama a tia, tem boa memória para o passado, ou mesmo ela pode estar se agarrando nele para sobreviver à perda. Mariana gosta de ouvir suas histórias. Sobre você, penso que temos um passado muito feliz para lembrar e um futuro onde te aguardo na mesma estação, no mesmo trem, e com o mesmo afeto que o tempo e a guerra não cessarão. Quando estiver difícil, lembre-se que estarei sempre pensando em você da mesma maneira, sem este fantasma terrível da violência pairando sobre nossas cabeças. Já existiu vida antes do ódio. Sobretudo, não é possível que o amor tenha vindo antes do rancor.

Ternura,

Luccino.

 

25 de outubro

Amado Luccino,

Soube da tia de Brandão um pouco antes de sua carta ter chegado. Meu amado, posso ver a sombra de preocupação que esconde o teu rosto. Por Deus que as circunstâncias externas te impediram de ver o que estou vendo. Enfim, o acidente com o carro serviu de algo, assim me sinto menos culpado. Porque, sem hesitar, o que você veria aqui levaria a tua bondade, e eu não me perdoaria por isso. Não posso escrever muito por agora.

...

Retorno à sua carta um tanto afoito, cansado e desiludido. Parece que será interminável. Meus colegas estão morrendo. Tenho medo. Jamais havia temido o dia seguinte. Mas tenho a sensação que, ao invés do tempo avançar, a cada dia que se dobra é um que se esgota para minha vida. Perdoe-me pela melancolia. Sinto falta do teu corpo sobre o meu. De confundirmos as pernas e os ares. De sentir tua pele macia sobre a minha. Faltam as coisas bonitas, sobretudo, falta você.

Sempre,

Otávio.

 

22 de novembro

Querido Otávio,

Não me imagina a angústia da última carta. Aqui, no Vale, todos estamos numa berlinda. Não sabemos o resultado desse confronto. Elisabeta está sendo perseguida depois de ter publicado algumas matérias criticando opositores. Eu apenas gostaria de retornar ao antigo Vale. No entanto, ainda há espaço para o companheirismo, para a fraternidade. Ajudamos as famílias mais prejudicadas pela guerra e isso tem nos ajudado a ter algum propósito. Noite passada, lembrei-me de nosso “casamento” e senti enorme vontade de visitar o chalé onde passamos os primeiros dias de “casados”. “Primo” Otávio, a sua presença estava ali sem dúvida alguma. Os lençóis é que mudaram. Havia cheiros intrusos no nosso santuário. Mas ali estava você. Na volta, foi como se você me acompanhasse, braços dados, mas ao chegar à oficina não me aguentei e chorei o tanto que pude. Ah, Otávio. Tenho inventado meios e meios de enfrentar a tua falta. Sabe o que mais me incomoda? Parece-me que os furtos da guerra não são importantes para o mundo. Parece-me que o mundo continuaria girando mesmo com tal injustiça de ter você longe de mim. Ou continuaria parado. De toda forma, os pássaros ainda cantam. Pobres... E as árvores sacolejam. E o sol nasce no dia seguinte. Não é admirável que ainda tenhamos algumas certezas mesmo neste período de trevas? Espero que estejas bem.

Com amor,

Luccino.

 

30 de dezembro

 Querido Otávio,

Onde você está? O que a guerra tem feito contigo? Não tenho recebido notícias suas. Mariana e Lídia também não tem recebido notícias. Estamos aflitos. Reunimo-nos para comer, para juntarmos as poucas alegrias que temos, mas ao olharmos para as cadeiras ao lado, vazias, percebemos o desprazer e a injustiça de termos comida em nossa mesa sem saber o que vocês estão comendo, vivendo, de quais formas estão lutando pela sobrevivência. Por favor, dê-me notícias assim que puder. Tivemos de nos esconder, porque os opositores de Elisabeta queriam prejudicá-la através de seus amigos e família. Mas estamos seguros. Vez em quando, de onde estamos, dá para ouvir explosões ao longe. Será que, ao retornarmos, receberemos do destino o mesmo tanto que deixamos, ou sempre haverá algo para trás? Amado Otávio, quero que sinta o meu beijo e o meu amor, que só cresce, que só se expande. O verdadeiro amor jamais quer tomar o ser amado. Cresço na tua presença e mais ainda na tua falta. E logo, quando olhar para os lados, verei o teu andar lento e exaurido cada vez para perto de mim, onde você sempre soube que pode fazer morada. Hoje fui visitar o túmulo de papai e havia uma semente dormindo no concreto. Quando cheguei em casa, plantei-a no quintal. Caso você não a veja crescer, cuidarei de cada ramo para que possamos comer dos seus frutos. Juntos. Talvez suspeites, mas sou incapaz de amar-te menos. Amo-te muito mais agora. Você é forte. Onde estiver... Orgulho-me de ti. Sei que retornará para amar-me baixinho aquele amor que não se diz o nome.

Saudade,

Luccino.

 

11 de março

Amado Otávio,

Onde está você? Ontem, chorei a noite inteira pensando que a guerra pode ter levado você. Brandão e Randolfo mandaram notícias para Mariana e Lídia, sem saber onde você está. Disseram coisas terríveis... Queria ter ido com você. Assim, eu não estaria agora pensando em mil tragédias. A vida não pode ter feito isso comigo. Será que você continua recebendo essas palavras? Atualizei o endereço para o lugar mais próximo de onde Brandão e Randolfo estão. Será que estou falando sozinho em uma caverna cheia de ecos? Espero não me iludir pensando que um dos ecos seja a sua voz, quando são apenas um retorno do meu desespero. Ah, Otávio. Espero mesmo que toda essa aflição termine o quanto antes. Não se esqueça de mim e, uma vez mais, não te demores. Perdão pelo último rabisco. Estou forçando tanto o papel que derramei um pouco de tinta. Eu sei que você ainda vive, meu amado. Porque aqui, em mim, você ainda está palpitando. O tempo para os amantes não age muito bem, não é? Devo saber que tudo isto não passa de uma prova. Que logo nos encontraremos. Que nas madrugadas eu despertarei com medo, mas terei teu rosto sereno dormindo ao meu lado, na paz e no desarme de quem se entregou por inteiro, de quem baixou todas as suas armas. Metade do mundo dorme, a outra metade peleja. No meio, estou eu.

Amor,

Luccino.

 

20 de agosto

Meu doce Luccino,

Enfim posso dar notícias. Enfim posso descansar com um pouco de paz. Esta guerra está acabando, meu amor! É um alívio poder contar com essa perspectiva. Mas, por acaso, você tem notícias de Randolfo e Brandão? Não sei nada sobre eles desde muito tempo. E mal posso imaginar a sua aflição ao se deparar com minha mudez. Creio que tenha me mandado algumas cartas, mas acho que se perderam pelo caminho, ou foram para o lugar errado. Talvez, anos depois, alguém possa encontrá-las, quando estivermos velhos ou mortos, para que então eu saiba as exatas palavras do teu sofrimento. Lembro-me dos teus olhos, da tua boca, lembro-me do teu cheio e de teus suspiros. Acredite que isso me salvou nos momentos difíceis. E agora entendo o motivo de Cordélia se prender em seu passado. Mas olhe, isso só é possível quando temos algo bom de recordação, o que felizmente é o meu caso. Confesso, amado, que retornarei um tanto manco e com algumas cicatrizes, mas rezo e agradeço por minha sanidade não ter sido levada. Foi por pouco. Vi colegas enlouquecerem. E matei. Tão logo este inferno acabar e nós poderemos ser felizes novamente. Nossa casa, nossa vida, nossas plantas. Tudo irá crescer conosco. Por aqui, sinto devagar que marchamos para a vitória. A leveza é possível, ainda que amena. No entanto, não podemos baixar a guarda. Mas esqueçamos disso por um momento... Para mim, nós dois estamos fazendo uma caminhada pelo parque neste exato instante, e você me conta mais um rebuliço de Manuela Benedito, a filha de Mariana e Brandão. Eu rio. Você me olha. Só nós entendemos aquele olhar. O resto do mundo mal sabe dos segredos destes dois amantes. Que se olham e se percebem (e quando puderes ver, repare). Que se ouvem e se escutam (e quando puderes ouvir, atente-se). Que se tocam e se sentem (e quando, enfim, puderes me tocar, te demores nisso). Sempre morei em você, e você há de saber. Deixei-te com certezas. Esta distância tentou pregar mil peças. Mas agora volto e digo sim a tudo. Volto, porque amo-te.

Com mil e uma saudades,

Otávio.

P.S.: Non ti scordar di me...


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Notas finais do capítulo

Bom feriado, pessoal! Beijos :)



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