Um Verão em Boulder City escrita por Carol Coelho


Capítulo 4
Moças Molhadas


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♥



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O consultório branco, estéril e tedioso é tudo o que há na minha glamourosa tarde de sexta feira em Boulder City. Folheio por uma revista de decoração de forma distraída enquanto Abigail tamborila impacientemente os dedos no apoio de braço da cadeira.

— A senhora quer parar? — pergunto, pousando minha não sobre a dela, a fazendo parar com o barulho infernal. — Obrigada.

— Bem, desculpe. Esse lugar é péssimo, Nessa — ela comenta, parecendo uma criança.

— Preferia estar cutucando terra né? — indago brincando enquanto viro mais uma página.

— Sim — ela responde curta. Após uma pequena pausa, acrescenta: — Bem, estou sossegada. Você está também. Eu acho que esse é o momento em que você me conta o real motivo de seus pais terem te enviado para cá.

Com um suspiro, fecho a revista e a coloco de volta em seu lugar na mesinha de centro. A sala de espera está vazia, exceto por nós, a atendente no balcão e uma mãe com seu filhinho adormecido.

— O que minha mãe te disse? — pergunto de forma evasiva.

— Que você tinha aprontado e que eles iam estar ocupados por bastante tempo durante o verão. Não iam conseguir conversar com você para te corrigir ou algo assim — disse, sem me olhar.

Bufei de indignação. Esconder o real motivo atrás de uma desculpa que os faça parecerem razoáveis na sua decisão era tão típico.

— E então pediram para a senhora se fingir de doente para que isso pudesse ocupar minha cabeça durante o verão todo e eu não tivesse tempo para bolar um plano e escapar do futuro que eles planejaram para mim? — perguntei sem pausas. Eu estava furiosa.

— Então é sobre decisões? — Abigail se virou para mim com intensa curiosidade. — Só para você saber, eles não me pediram...

— Abigail Johnson? — uma enfermeira pergunta, levantando os olhos do formulário que tem nas mãos para olhar ao redor da sala com O Sorriso Boulder City.

Nos levantamos e a seguimos. Eu estava aliviada por poder me esquivar um pouco mais dessa conversa com a vovó.

— Não pense que escapou, ein mocinha — ela comenta, me empurrando de leve com o ombro. Sorrio e a empurro de volta.

Dobramos um corredor e entramos em uma sala à esquerda. A enfermeira entregou os papéis que tinha em mãos para o médico e saiu fechando a porta.

— Senhora Abigail Johson — o médico diz de forma lenta, folheando os papeis. — Os resultados dos seus últimos exames foram... surpreendentes — comenta, olhando para minha avó.

— O mês passado já se foi, doutor. Sou uma nova pessoa — minha avó diz em seu típico bom humor.

— Ela ainda sobe em escadas o tempo todo? — o doutor pergunta para mim.

— Sempre que ela pode — respondo sorrindo.

— Então talvez a senhora não seja uma nova pessoa tanto assim — o médico brincou. — Mas, claro, vou pedir novamente sua bateria de exames mensais, mas nada com o que se preocupar, viu? — ele disse, agora me olhando. — Só coisas de velho.

Minha avó bufou ao meu lado e cruzou os braços, arrancando risadas de mim e do doutor.

— Tem comido certinho? — perguntou, anotando algo em sua ficha.

— Sim, senhor. E dormido e me exercitado — Abigail tratou de completar antes que ele pudesse pedir.

— Certo. E dores? Tem sentido?

— Só a de sempre, na lombar — respondeu.

O médico resmungou algo em consentimento, escrevendo coisas freneticamente no papel. Ele parou por alguns segundos e digitou algo no computador, mas logo retornou aos papéis.

— Vamos medir a pressão? — perguntou se levantando e pegando o aparelho de pressão em uma gaveta.

Ele de ajoelhou com uma pompa exageradamente cômica na frente de vovó, que lhe estendeu o braço em seu melhor estilo lady, entrando na brincadeira e me fazendo rir. O doutor ajeitou o aparelho em seu braço e tomou a pressão em poucos segundos. Retornou para a mesa e anotou em sua folha antes de indicar a balança para vovó.

— Tudo normal por aqui. Peso e altura?

Abigail se levantou da cadeira e subiu na balança, fechando os olhos dramaticamente para fazer graça. Sua altura foi medida e todas as informações meticulosamente anotadas na folha do médico.

— Ganhou setecentas gramas e meio centímetro — anunciou. — Já é uma garota grande. Aqui estão as guias dos exames — entregou alguns papéis para Abigail, que os guardou em sua sacola. — E os remédios continuam os mesmos, nenhuma melhora, nenhuma piora. A farmácia do hospital vai entregá-los na sua casa ao longo da próxima semana. Posso fazer mais alguma coisa pela senhora?

— Acho que é só isso, doutor — Abigail disse. — Muito obrigada.

Nos levantamos todos juntos. O médico abriu a porta para nós e nos cumprimentou com apertos de mão.

— Vejo a senhora no próximo mês — falou com um sorriso.

— Se Deus quiser, doutor — falou ao se afastar.

— Tchau — foi tudo o que eu disse ao sair da sala.

Passamos na recepção antes de sair para que todos os exames fossem marcados. Ao pisar fora do consultório, percebemos que era melhor nos apressarmos pois o céu estava se fechando com uma velocidade surpreendente. Vinha uma chuva das bravas por aí.

— É só chuva de verão, Nessa — Abigail disse após minha sugestão para que esperemos um pouco na clínica. — Não dá em nada — desconsiderou. — Ficar é bobagem, vamos logo.

Dando de ombros, eu a segui pela rua. Andamos em uma velocidade surpreendente pelo centro da cidadela. Todos os cidadãos de Boulder City corriam para suas casas pois sabiam que um toró se aproximava. Como eu havia previsto, não conseguimos escapar a tempo.

— Ah, merda — exclamo quando a chuva começa a cair.

Ainda estamos à algumas ruas de distância de casa, mais precisamente na grande avenida onde se encontram a maioria dos comércios.

— Rápido, para a padaria! — vovó fala, praticamente correndo à minha frente na direção do estabelecimento que era o mais próximo em um vigor extraordinário.

Não tenho nem tempo de protestar, apenas a sigo porta adentro.

Nem preciso olhar ao redor para saber se o rapaz está lá. É claro que está. Ele sempre está quando eu estou parecendo recém saída de uma zona de guerra.

— Boa tarde, Don! — Abigail cumprimenta o corpulento dono da padaria.

— Ora ora, velha Abby — Don responde.

— E essa chuva, ein? — perguntou Abigail, embarcando na típica conversa de quem não tem o que conversar.

— Do nada não é? Pegou todo mundo desprevenido — comentou Don, indicando os banquinhos próximos ao balcão para que nós nos sentássemos.

Por mais que isso fosse humilhação demais a segui passivamente, sem ter como escapar, afinal o que eu diria na minha justificativa? "Não quero sentar porque eu passei muita vergonha na frente do menino que trabalha aqui" não ia colar nem aqui nem na ponte que caiu. Apenas aceitei a situação: eu estava encharcada, eu estava uma bagunça e eu estava na frente do menino lindinho novamente.

Bufei e olhei pelo vidro. Maldita hora. Minha avó estava empenhada em uma conversa com Don sobre o clima louco de Boulder City de uns anos para cá enquanto eu olhava a chuva cair, desesperançosa de tudo na vida.

— Luke Collins— ouvi uma voz à minha esquerda.

— Como? — virei meu corpo no banquinho. O rapaz me olhava, escorado pelo cotovelo no balcão.

— Eu me chamo Luke Collins — esclareceu. — Não me apresentei ontem.

— É um prazer, Luke Collins— respondi, erguendo as sobrancelhas. Antes que eu pudesse falar mais alguma coisa, Abigail me interrompeu.

— Você quer comer alguma coisa, minha querida?

— Eu só quero um suco — falei. — De laranja.

— É pra já — Luke disse, se afastando na direção do espremedor ao lado da pia.

Era estranho associá-lo a um nome quando eu já havia me acostumado com a ideia de que ele seria para sempre o rapaz bonitinho que trabalha na padaria. Quando ele terminou com o suco, o depositou à minha frente junto com um sachê de açúcar.

— Obrigada — agradeci.

— Pega umas toalhas — pediu Don. — Onde já se viu deixar as moças molhadas assim?

Eu, que havia tomado um longo gole de suco, me engasguei perante essa frase com um explícito duplo sentido, provavelmente não intencional. Mal consegui conter a risada que brotou do âmago do meu ser. Automaticamente olhei para Luke que estava vermelho, segurando o riso provavelmente mais pela minha reação do que pela frase de Don.

— Toalhas — resmungou se virando e sumindo pela porta da cozinha.

Minha avó e Don me encaravam como se estivessem preocupados com minha saúde mental. Claramente só eu e Luke haviamos entendido o duplo sentido não tão explícito na frase de Don. Para disfarçar, tomei um gole do meu suco, dessa vez sem engasgar. Luke retornou com duas toalhas brancas, depositando uma ao meu lado no balcão e entregando a outra na mão de minha avó.

— Muito grata — agradeceu Abigail.

Sequei o rosto e o cabelo, me sentindo aliviada. Infelizmente, o vestido que eu havia escolhido para usar naquele dia estava encharcado, sem a mínima possibilidade de secar em um futuro próximo. Basicamente, eu estava ilhada na padaria com o rapaz bonito (a.k.a Luke), minha avó e o Don. Era um pesadelo. Foquei todos os meus pensamentos no meu desejo de que essa chuva passasse logo para que eu pudesse ir para casa e tirar essa roupa molhada. Tomei mais um gole do meu suco, secando meu cabelo de forma distraída.

— As moças ainda estão molhadas? — Luke pergunta baixo, para que só eu ouvisse.

— Ridículo — acuso com um sorriso de canto, me virando para ele.

Estico a toalha sobre o balcão e apoio os cotovelos na borda, tentando resgatar do fundo de minha cabeça tudo o que eu sei sobre flertes. Nunca fui boa com essas coisas. Meu antigo namorado era muito direto, o que facilitava muito para mim. Luke não parecia ser desse tipo, então não sabia o que fazer ou o que falar. Felizmente, Luke me poupou desse trabalho.

— Eu nunca tinha te visto por aqui — ele comentou displicente enquanto secava um copo de forma compenetrada com o quadril apoiado na pia.

— Não sou daqui — respondi. — Quer dizer, eu nasci aqui, mas fui criada em Bakersville. Estou só de passagem.

Disse, revelando meu segredo mais profundo: eu era de fato uma bouldercitizien.

— Califórnia — ele disse, erguendo o copo à altura dos olhos para verificá-lo na busca de manchas em uma análise exagerada. — O que te trouxe aos confins de Nevada?

— O carro do meu pai — repliquei brincando, em uma tentativa de desviar do assunto.

— Engraçadinha — Luke me olhou por cima da borda do copo antes de colocá-lo por fim na prateleira atrás de si.

Torci para que ele não fizesse mais perguntas nessa direção. Não queria abordar assim no duro todos os motivos que me levaram até ali. Na verade, não planejava falar sobre aquilo com ele e ponto.

— E as senhoritas estarão presentes hoje a noite, certo? — a pergunta alta de Don me tirou do meu devaneio.

— Onde? — indaguei, me virando para Don e vovó.

— No aniversário da cidade — Luke respondeu, fazendo-me olhá-lo novamente. — É uma festa na pracinha do centro. Comida, fogos, discurso de políticos. Absolutamente imperdível.

— Exato — concordou Don, coçando sua barriga, sem identificar o sarcasmo na voz de Luke. — Vamos contribuir com alguns quitutes esse ano.

Desviei minha atenção para meu suco novamente enquanto Don e vovó se envolviam em sua conversa sobre malditos cafés da tarde novamente.

— Você vai? — Luke perguntou, como quem não quer nada, olhando para os pratos que secava agora. — Na festa?

Seus olhos esverdeados se ergueram para mim com um ponto de interrogação estampado entre eles. Suspirei e fingi ponderar por alguns segundos.

— É, acho que posso arrumar um horário na minha agenda essa noite para dar um pulinho nessa festa aí — falei.

— Seria uma honra enorme para essa cidade, senhorita — ele disse, pousando a mão sobre o peito em uma pose exagerada. Sua mão molhada ficou desenhada sobre o avental marrom que ele usava.

Terminei meu suco. Trocamos um olhar intenso quando ele veio retirar meu copo. Um olhar que foi interrompido pela minha inorpoturna porém amada vózinha.

— Vamos andando, Nessa? A chuva parou.

— Claro — respondi lentamente, sem desgrudar meus olhos de Luke.

— Te vejo hoje a noite então? — perguntou em um tom baixo.

Demorei alguns segundos antes de responder só porque estava divertido manter aquela tensão pairando entre nós, com minha avó e Don completamente alheios ao que estava acontecendo.

— Vê sim.


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Notas finais do capítulo

iiih o que dizer da tensão que brotou entre esses dois einnn? Ashdiashdiua, espero que tenham gostado, até o próximo capítulo ♥