Gentileza, bullying e batata frita escrita por LiKaHua


Capítulo 5
5. Confiança


Notas iniciais do capítulo

Olá! Este é o penúltimo capítulo do conto, no fim ele vai acabar com seis capítulos mesmo. Mas já quero muito agradecer vocês pelo apoio até aqui. Espero que gostem e me desculpem a demora em postar, eu ando um pouco atarefada. O último capítulo vai demorar um pouco porque tenho que atualizar a outra história.

Boa leitura!



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 Levou uma longa meditação e ponderação emocional para saber se eu teria coragem de ir para escola depois de todo o vexame do dia anterior, principalmente porque sabia que minhas fotos constrangedoras estavam circulando em todos os celulares e fóruns da escola naquele momento.

            Ainda assim, aquém de toda a apreensão e o cansaço espiritual que sentia, desci pronto para o café da manhã com os cadernos pesando na mochila de lona preta que usava. Minha mãe estava vestida no seu impecável terninho de diretora de revista enquanto caminhava de um lado para outro com o telefone entre o ombro e o queixo, as mãos ocupadas com canecas e frigideiras sobre o fogo médio.

— Bom dia, querido! — Cumprimentou-me com um sorriso ignorando a pessoa no telefone.

— Bom dia. — Tomei meu lugar à mesa. — As fotos atrasaram de novo?

— Dá para saber só pela minha expressão quando acontece, né? — Revirou os olhos. — Só me avisar quando precisar de uma desculpa, eu trabalho com mestres no assunto!

— Vou me lembrar disso. — Sorri.

            Ela revirou os olhos provavelmente cansada com quem estava tentando dobrar seu humor e deu um fora, fazendo um breve discurso sobre responsabilidade e comprometimento no trabalho que eu já havia ouvido tantas vezes que estava familiarizado com boa parte dele. Por fim, deixou o celular sobre o balcão e sentou ao meu lado à mesa.

— Então, como foi que conseguimos esse ferimento aí na cabeça?

— Ah... isso... — tentei pensar rápido em uma desculpa. — Alguém achou que era uma boa ideia colocar uma lata de lixo em cima da porta quando só falta eu entrar na sala.

— Jake... — Suspirou.

— É sério, mãe, já falamos sobre isso.

— Não me lembro de ter concordado que continuasse passando por isso. — Protestou. — Há outros colégios.

— O que a faz achar que em outro colégio vai ser diferente? — Irritei-me. — Há idiotas em todos os lugares se não te informaram isso. Eu vou ser gordo em qualquer escola que for e eles vão me mandar morrer em todas elas, todos os dias!

— Que disse?! — Seus olhos estavam esgazeados, o lábio inferior dela começou a tremer. Merda! — Repita o que acabou de dizer, Jacob Anthony Mattews! Como assim “te mandam morrer”?

— Esquece isso. — Baixei a cabeça para a refeição mesmo sabendo que era impossível fugir do assunto.

— Não, nada disso, pode ir falando já! — A voz de mamãe era tão trêmula quanto seu lábio inferior e, eu sabia, logo ela começaria a chorar. — Isso é verdade?

— A senhora realmente não precisa saber todas as etapas diárias do bullying, mãe... — Suspirei. — Eles me disseram isso várias vezes, mas não, eu não vou mudar de escola porque não resolve as coisas. O problema são eles, não eu, não vou mudar de escola e começar tudo de novo do zero para ter problemas duplicados.

            Ela ficou em silêncio por um tempo, sabia que ia fazer com que se atrasasse, mas não consegui tirá-la das suas reflexões, lágrimas encheram seus olhos e logo escorreram pelo rosto borrando a maquiagem e pingando a mistura sobre as torradas no prato.

— Mãe... olha, eu sinto muito, não quis falar desse jeito, eu...

— Você não vai fazer isso, não é? — Cortou-me, um desespero inflamado em seus olhos aquosos. — Jake, você...

— Claro que não. — Acalmei-a, segurando suas mãos trêmulas entre as minhas. — Nunca dou ouvidos ao que eles dizem, mãe. Se fosse assim já tinha ficado anoréxico ou bulimico há tempos. Acho que eu sou melhor que isso, a senhora me criou bem.

— Não importa o que digam, Jake, a aparência não importa. Ela passa. É o seu coração que vale e o seu, meu filho, é o coração mais lindo que existe. — Disse ela, um sorriso triste e aliviado ornando o rosto que ainda conservava a beleza juvenil. — Você é inteligente, corajoso e muito doce, ninguém pode tirar isso de você, meu amor. Sabe — fungou —, você se parece muito com o seu pai.

            Sorri lutando contra as lágrimas. Eu sabia que tinha um pouco do meu pai, embora ele fosse alto e muito atlético, não tinha muita certeza de quando comecei a ganhar peso, penso que tenha sido no começo do secundário, mas não importa muito, era como eu era, afinal. Olhando minha mãe ali, chorando, atrasada para o trabalho, mas ainda assim preocupada comigo e sorrindo encorajadoramente, me sentia envergonhado de todas as vezes que eu sequer cogitara a ideia de deixá-la sozinha.

*

            Olhei para o prédio da escola por um bom tempo pensando se teria coragem o bastante para entrar, contudo, por mais contraditório que possa parecer, as palavras da minha mãe logo cedo me fizeram sentir muito mais forte, evoquei comigo as lembranças mais fortes que tinha do meu pai, mesmo durante seu árduo tratamento, quando ele não parecia mais o homem forte e garboso, mas estava magro, careca e fraco demais para me erguer, nunca deixava de sorrir, de dizer coisas sábias e de, em todo aquele sofrimento e dores horríveis, ele foi mais forte do que eu jamais conseguiria.

— Bom dia, Jake! — A voz de Louise vinda por trás de mim fez-me sobressaltar.

— B-bom dia. — Balbuciei encarando-a ainda incrédulo.

— Parece preocupado. — Observou ela analisando minha expressão. — Pensando em matar aula?

— Na verdade... — Hesitei, não sabia se conseguiria dizer a ela o que aconteceria quando atravessasse as portas da escola.

— Vamos ter uma aula de inglês muito interessante hoje. — Ela sorriu como que encorajando-me.

— E eu preciso de uma ficha de inscrição para o jornal, não é? — Sorri de volta, de repente me sentindo mais tranquilo.

— Esse é o espírito!

            Lá no fundo do meu estômago havia borboletas voando desenfreadamente e suas asas pareciam lâminas cortando as paredes de carne e músculos, era certo que Louise não havia recebido ainda uma das fotos ou que não checara o fórum da escola, só então me dei conta que estava mais preocupado com o que ela diria do que todos os outros, não tinha me dado conta de como levava a opinião dela em consideração até aquele instante.

            O clima na escola parecia completamente normal, quando passamos ninguém ergueu os olhos na minha direção, não havia cochichos nem risinhos, Rogers estava parado junto ao seu armário com a cara fechada e seus amigos idiotas estavam do mesmo modo quietos demais para tecer qualquer comentário irônico. Me sentia de tal modo chocado que até para o teto olhei com medo de que a pegadinha caísse sobre minha cabeça a qualquer momento.

            Abri o armário e tudo estava normal. Sem tinta, sem fotos constrangedoras, sem meias sujas, sem bichos, todos os meus livros intactos como os deixara no dia anterior. Olhei para Louise que parecia estranhamente contente e digo estranhamente porque ela costumava ser particularmente séria e quase nunca era dada a sorrisos. Quando entrei na sala de inglês, Demeter me lançou um meio sorriso e quase congelei no lugar, Louise me deu um leve empurrão até a mesa da senhora Eagle, onde consegui balbuciar o pedido do formulário para entrada no clube de jornalismo, mas como fiz isso continua sendo um mistério para mim mesmo hoje.

— Não subestime os integrantes do clube de jornalismo, Jake. — Sussurrou Louise para mim quando entreguei o formulário preenchido à professora. — Nós somos realmente muito bons em divulgar notícias e hackear celulares.

            Mas antes que pudesse responder a professora mandou que nos sentássemos e iniciou a aula, só então entendi o que havia acontecido na escola, após o incidente no banheiro, Louise cumprira sua palavra de não espalhar o ocorrido para ninguém e não falar com o diretor, mas fizera sua parte hackeando os celulares de Rogers antes que ele pudesse espalhar as fotos que tirara de mim por toda a escola. Como ela fizera isso? Não tenho a menor ideia, mas senti meu coração palpitar nesse momento, não somente de gratidão pela atitude dela, mas de esperança para todo o meu mundo.

            Por um momento senti que era como se eu estivesse usando Louise ao convidá-la para o baile, ela era a chave para minha paz até a formatura, mas depois de tudo aquilo — tão repentino e tão incrível — apercebi-me com um desejo real de ir ao baile tendo ela por companhia mesmo que soubesse que eram poucas as possibilidades. Lutando contra as lágrimas de emoção, ergui o olhar em sua direção e percebi que ela me observava, ofereceu-me um sorriso singelo e voltou a prestar atenção na aula em seguida.

Possibilidades poucas, sim, mas existentes.

*

            A sala do clube de jornalismo da escola parecia um setor publicitário. As paredes eram pintadas de verde musgo, mas quase não dava para ver uma vez que era abarrotada de quadros de aviso cheios de papéis pregados com tachinhas coloridas. As mesas eram agrupadas em fileiras duplas no meio da sala, abarrotadas de computadores, post-its e papéis com rabiscos e marca texto. Impressoras trabalhavam freneticamente nos fundos da sala enquanto pessoas gritavam ordens e pediam documentos, outros digitavam freneticamente parecendo excitados demais com o trabalho, uma música baixa soava do rádio da escola por duas caixas de som no alto da parede esquerda e direita dos fundos, no lado esquerdo, abaixo de uma enorme parte de vidro na parede, ficava um aparador com uma máquina de café, potes de balas e biscoitos e duas portinhas fechadas abaixo que não sei o que guardavam. Ao lado dele ficava um filtro de água, me peguei completamente surpreso com o ambiente e Louise parece ter percebido.

— Bem vindo ao clube de jornalismo! — Saudou-me ela apontando para o caos organizado de alunos.

— Parece outro mundo aqui. — Sorri. — Um outro mundo muito divertido.

— Você vai ver que é mesmo! — Riu ela. — Vou deixar as apresentações para mais tarde, agora tenho um trabalhinho para você.

            Ela me guiou até um dos computadores vazios na mesa e me entregou um maço de papéis presos por um grampo mol azul no topo, ao que parecia era um conjunto de matérias e estatísticas sobre violência na escola.

— Faça um artigo de três colunas sobre isso, pode citar pessoas reais usando pseudônimos e abreviações — deu-me uma piscadela — não se incomode em ser muito formal, um pouco de emoção é sempre válida por aqui!

Assenti, ela deu um tapinha solidário no meu ombro e virou-se para sair, mas parou e voltou-se novamente para mim ainda sorrindo:

— Ah, e Jake, bem vindo à bordo!

            Uma onda de calmaria e alegria percorreu cada molécula do meu corpo nesse instante, mais que prontamente me pus a ler os papéis que ela me passou e formular o artigo que deveria sair no jornal do dia seguinte, me ocupar com aquele trabalho não apenas me livrou dos encontros nada agradáveis com Jason, Rogers e com a educação física da qual agora eu tinha direito a mudar de horário, mas me serviu como um bem vindo ocupante de mente, enquanto eu discorria sobre o que sofri a vida inteira pela minha aparência e dava voz ao que tantas outras pessoas passavam todos os dias me sentia bem, útil, esperançoso. Pela primeira vez em muito tempo eu tinha um momento de paz.

            Mas meu artigo não era a coisa mais comentada ali dentro e sim uma foto muito interessante de Lester Rogers usando um avental xadrez rosa e branco e luvas de borracha azuis, nunca fiquei sabendo quem tirou aquela foto ou como, mas sem dúvida ela arrumaria muita encrenca. Foi uma das lições que aprendi aquele dia: tudo que fazemos volta para nós, o bom e o ruim. A foto de Rogers foi publicada na primeira página com a legenda “Rapaz prendado” e uma pequena coluna muito interessante escrita por Daisy Wellis a co-editora do jornal que pareceu se divertir enormemente não em humilhar Lester, porque nada na sua nota expressava isso, mas em cutucá-lo de modo que ele pensasse duas vezes antes de intimidar alguém novamente.

            Para minha surpresa, descobri que a hacker do jornal era Ellis Francewell, uma garota do primeiro ano tão boa com computadores e celulares que ninguém com juízo perfeito ia querer como inimiga. Ela era a “mascote” do clube por ser a mais jovem entre eles, não era apenas muito esperta e inteligente, mas oferecia todo o suporte gráfico do jornal e a diagramação, além de contribuir com boa parte das matérias centrais. O jornal era bem diversificado, tinha matérias sérias, fofocas, resenhas e indicações de livros, novidades do mundo pop, colunas de histórias, entrevistas e até um espaço de reclamações sobre professores. Senti-me meio idiota por me isolar de tal forma no meu planeta que nunca o lera antes.

            No fim do dia, quando saí da escola, levava comigo um sentimento de prazer nunca antes experimentado, fui capaz de me testar novamente, fora algo ainda maior que o dia da peça de teatro, a melhor parte sem dúvidas fora sair em um horário que não tinha mais ninguém por lá, Jason estava ocupado com o treino de basquete e Lester já havia ido embora. Nenhum deles sabia que eu havia entrado no clube de jornalismo, me sentia ainda mais satisfeito por isso, para ajudar ainda mais, Louise me instruíra a assinar meu artigo apenas com as iniciais. O crepúsculo parecia mais bonito, acredito que o mundo parece melhor quando você se sente bem consigo mesmo.

            O meu prazo estava no fim, o baile era dali a alguns dias o que significava que eu tinha de agir o quanto antes. Aproveitei as últimas horas do dia e fui pelo centro até uma floricultura, não entendia muito de flores de modo que levou uma longa conversa com a vendedora gentil que me instruiu a comprar um buquê de rosas vermelhas, mas achei que rosas não combinavam com Louise, ela tinha um ar tão... vívido e forte, acabei escolhendo um delicado buquê de frésias azuis, o significado dessa flor, segundo me disse a vendedora, é confiança, calma e essência da amizade. Além de ser linda, não era convencional como a rosa e não expressava algo supérfluo ou passageiro. Me custaram um pouco mais caro, mas valeu muito a pena.

            No caminho até a casa de Louise sentia meus pés e mãos dormentes e formigando, meu estômago dava voltas e me lembrei que, com o trabalho no jornal, não me empanturrara de comida como costumava fazer ao longo do dia, estava enjoado e meu coração batia tão forte que pensava sair do peito a qualquer instante. Tentei ardentemente ser otimista, mas ficava mais difícil conforme a casa dela se aproximava, ensaiei na mente as palavras que diria a ela e mesmo meu sorriso diante da sua recusa. Louise morava num sobrado branco cujo teto se inclinava reto para a direita a perder-se no sobreteto que ficava no andar térreo. Uma varanda sobressaía no primeiro andar sustentada por duas finas pilastras gregas e, sob ela, estava estacionado o carro que ela dirigia para a escola. Na sacada havia uma porta de madeira e vidro onde cortinas brancas confundiam-se com as paredes, ao lado, uma janela solitária.

            No andar de baixo, uma janela projetava-se na parede direita externa, toda a esquadria da casa era branca tornando-a muito discreta e delicada, um pequeno caminhozinho cercado por um discreto gramado com uma fileira de pequenas árvores podadas e uma única conífera em frente a janela levava à porta. Do outro lado, três coníferas se enfileiravam e, por trás dela, havia outro carro estacionado. O telhado da casa dela era triangular, com exceção do teto superior da frente que era inclinado mais como um trapézio. Estava suando em bicas quando forcei meus pés a caminharem pela pequena trilha de cimento até a porta e bati a porta quatro vezes.

— Jake? — Louise olhou-me surpresa quando abriu a porta vestindo confortavelmente um conjunto de moletom azul.

— L-Louise... sinto muito incomodá-la em casa... — Balbuciei gritando mentalmente para me manter calmo, respirei fundo antes de continuar. — Isso é pra você.

— Nossa, Jake, são lindas! — Ela sorriu. — Obrigada.

— Sei que está em cima da hora e vou entender se você disser não... mas eu ficaria muito honrado se você me acompanhasse ao baile de inverno nesse fim de semana.

            Quando dei por mim, as palavras haviam desatado como uma manada de búfalos sobre ela, fechei os olhos esperando a recusa, mas o que senti foram dois bracinhos enroscando-se em volta de mim quando Louise me abraçou.

— Claro que sim! Eu adoraria! — Sua voz soou como um sonho distante. — Você é tão gentil, Jake!

— S-sério? — Olhei-a, incrédulo. — É sério mesmo? Você vai?

— Claro que vou! Como poderia não ir depois desse convite tão doce? — Riu ela. — Estarei esperando você às sete aqui em casa!

— Às sete! — Quase gritei. — Certo, às sete! Estarei aqui às sete!

— Não precisa ficar nervoso, Jake. — Sorriu ela. — Apenas seja você mesmo.

Não me lembro como voltei para casa, não me lembro de absolutamente nada do percurso, tudo que consigo lembrar hoje é que sorri como um idiota por muito, muito tempo.


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