Sobre um amor estranho escrita por Tamires Vargas


Capítulo 4
Sobre ajustes


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Ele olha fixamente. O queixo apoiado na mão, um sorriso desenhado delicadamente na face. Os lábios se repuxam, mas logo se retraem como se ele os estivesse impedindo de sorrir plenamente. Fica ali, olhando meus movimentos, acompanhando-os com a cabeça. Uma expressão de satisfação.

“Gostei.”

Ignoro. Esse risinho de aprovação me irrita. Logo vão começar as piadinhas estúpidas e ele vai se tornar o ser mais detestável da terra em cinco segundos.

“Deveria usar mais branco, te deixa mais...” Faz três círculos no ar e para. “iluminada.”

Viro o rosto antes que meu olhar de desprezo se fixe naquela cara idiota. Respiro. Relembro o que fazia antes e volto a preparar o café da manhã. Acuso a mim mesma pela tolice de querer vestir um vestido branco. Nunca é uma boa ideia resgatar roupas do fundo do armário. Melhor eu me desfazer do resto antes que ele descubra a gaveta de peças que deveriam estar no lixo.

“Não sabia que você tinha roupas que não fossem preta ou cinza. Nem algo tão... feminino.”

“Não se preocupe, vai pro lixo hoje mesmo!”

O sorriso se desfaz. Seu rosto assume um quê de decepção.

“Por quê?”

“Porque não tem nada a ver comigo.” Coloco os pratos no balcão. “Pensei em usar para ver como me sentia e agora tenho certeza de que ficará melhor no lixo do que em mim.”

Sirvo o café evitando seu olhar e antes de sentar pego o açúcar. O silêncio começa a pesar enquanto eu falsamente me concentro adoçar minha bebida. Percebo-o com a boca levemente aberta como quem quer argumentar, mas as palavras ainda não lhe socorreram.

“Não vai levar minha opinião em conta?”

“Não.” Encaro-o para deixar claro o meu veredito.

Péssima ideia. Longe de qualquer tipo de posse, todo o rosto dele mostra uma tristeza típica de quem perde abruptamente o que admira. Sem deboche, mais uma vez. E eu me sinto um pouco cruel e egoísta por sempre pensar que ele nunca é atingido por nada. Que tudo não passa de uma brincadeira para ele e que “sim” e “não”, “frieza” e “ternura” não fazem a menor diferença nas palavras que digo.

“Eu me sinto estranha. Não acho que as outras cores mostrem o que eu sou.”

“Fria.”

“Sim. Fria.”

Sustento o olhar em desafio. Sinto uma leve irritação transparecer em meu rosto. Normalmente, não me importo que ele me chame assim, já ouvi isso várias vezes, mas essa me incomoda. Talvez a falta de sorriso na fala ou de expressão, algo de um desgosto que vem se acumulando e envelhecendo.

“A cor da minhas roupas importa tanto?”

“A minha opinião não vale nada? A forma que eu te vejo também não?”

“Está tornando isso uma discussão desnecessária.”

“Estou te mostrando que me incomoda seu desprezo por tudo.”

O silêncio nos aconchega como dois estranhos dividindo o mesmo espaço e o ar entre nós fica pesado e seco. Empurro o café pela garganta, fingindo saboreá-lo. Na minha cabeça, as palavras dele ressoam, o tom gelado me inquieta. Quero ignorar como sempre faço, mas meu coração acelera como se me alertasse sobre uma grande imprudência.

“Ok.” Respiro. Não sei o que dizer. Torço para que ele despeje as palavras para que eu não tenha que alinhar meus pensamentos para falar.

Espero. Nada. A fumaça do café dele diminui pouco a pouco. Os olhos continuam em mim. O rosto, impassível. Espero. A covardia se torna nítida em mim. Não quero dar o primeiro passo rumo ao desconhecido. Ainda não aprendi a lidar com essa seriedade dele.

“Minha opinião importa?” Diz devagar tanto que parecia querer colocar sílaba por sílaba em meus ouvidos.

“Nunca pensei nisso...” Verdade. Sempre estive no controle de meus relacionamentos. Tudo era do jeito que eu queria. “Você sabe que nunca me importei com a opinião dos outros.”

“Não sou seu vassalo.”

Tenho a sensação de que algo foi lançado contra o meu peito. Minha tentativa de generalizar o assunto se mostra o pior dos fracassos. Ele quer falar sobre o que eu quero fugir. Nesse momento, o arrependimento me beija com paixão, fruto da minha idiotice. Por que eu compartilhei meu passado? Por que contei que manipulava e controlava meus ex? Ah, sim, sinceridade. Sempre a uso de forma errada.

Covarde é um adjetivo que sai com prazer de nossas bocas quando o jogamos na cara dos outros. Agora ele está colado na minha testa.

O rosto dele me diz que não há escapatória. Eu procuro palavras, mas só acho péssimas desculpas. Um belo beco sem saída. Me passa pela cabeça que aquilo pode se tornar um problema. Minto, já é, e a proporção que isso pode tomar me inquieta. Não que eu seja perdidamente apaixonada por ele, mas não o quero fora da minha vida.

“Vou pensar sobre essa questão da opinião.” Articulo de forma estranha: baixo, sem firmeza, digno de quem afirma aquilo que não sabe como fará. É a primeira vez que ceder é sugerido ao meu dicionário, embora eu muito ouvi que é necessário de quando em quando.

Ele se despe da seriedade, parece perceber a tensão que habita em mim, reclama que o café esfriou por minha causa e se propõe a fazer mais. Meus olhos o acompanham. Em outros tempos, a metade do que ele disse era suficiente para eu mandar alguém embora. Hoje, vou precisar descobrir o significado de muitas palavras.


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