Sobre um amor estranho escrita por Tamires Vargas


Capítulo 3
Sobre o que é pouco


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Era a primeira vez que ele tocava no assunto, não lembro como a conversa chegou a esse ponto, mas quando ouvi a frase perdi a capacidade de dialogar.

“É pouco.” diz olhando para o céu através da janela. O rosto inclinado, apoiado na mão, sem o menor traço de sorriso. A falta de deboche me paralisa, quase me assusta. É impossível para mim prever o que vem depois.

“Amor é pouco.” insere o sujeito na frase. Me esforço para entender, mas ele interrompe minha tentativa com um olhar. Sorri de um jeito estranho. Parece saber que está me confundindo, mas também que disse algo sem sentido.

Encara o dia lá fora de novo, o sorriso se alarga, nenhum sarcasmo. Não quero deduzir se isso é bom ou ruim, apenas deixar ele falar sem demonstrar que essa demora está me deixando ansiosa.

“É decepcionante, o que eu disse?”

“É intrigante.”

Silêncio. Ele pisca e passeia o olhar pela sala, fecha os olhos.

“O amor é um sentimento e uma motivação...” começa devagar, sem a menor pressa de se explicar. A serenidade em sua voz trazia uma profundidade rara. “Como sentimento ele é... volátil. Um dia se ama e no outro talvez não... Se esse sentimento é usado como motivação para fazer algo, então um dia você estará motivado e talvez possa deixar de estar...” Respira lentamente, fita os pés. “Um mentiroso pode deixar de mentir para alguém por amor, mas assim que deixar de amar essa pessoa irá mentir para ela. E você pode aplicar isso a tudo: honestidade, lealdade, fidelidade, companheirismo... Se essas coisas não existirem, não fizerem parte da pessoa como se fossem as próprias entranhas, então nada disso é verdadeiro e vai durar apenas enquanto houver a motivação...”

“O amor.”

“Sim. Por isso eu disse que o amor é pouco... Mas isso é só uma visão estranha da minha cabeça.”

“E se você só puder ter o pouco das pessoas?”

“Eu serei um eterno insatisfeito.” Sorri. Um toque de ironia na amargura.

“Já parou para pensar o quanto é exigente?”

“Não."

“Por acaso alguém já conseguiu alcançar o que você quer?”

“Não...” Suspira. “Só encontrei pessoas motivadas que um dia perderam a motivação.”

“E se eu for a próxima?”

Ouvi dizer que a alma silencia diante de grandes medos, assim como silencia perante hipóteses que não consegue digerir. Ele mastigou o silêncio e o cuspiu com dificuldade.

“Eu terei errado na minha aposta... O que fez eu me sentir confortável com você foi a percepção de que você não é levada por qualquer vento... Você não vai ou fica por motivações, mas pelo que você é.”

“E eu sou?...”

“Sólida.”

As perguntas se ajuntam na minha cabeça, mas eu as guardo. É nítido que ele não vai conseguir respondê-las. Quanto esforço ele teve que fazer para reunir as palavras de forma que fizesse algum sentido? Pareceu-me um tanto. Não lembro de tê-lo visto falar com esse cuidado como se colocasse as palavras peça por peça para montar seu mosaico de ideias.

Nos estranhamos um pouco. Não temos o costume de conversar tendo ele tão sério no diálogo, mas é certo que o estranhamento maior foi causado pela forma que ele se despiu através das palavras. Alguém acostumado a esconder nas ironias o profundo de seu ser, sente-se nu numa conversa sem instrumentos de escape.

“É pouco.” repito as palavras dele. “Realmente, amor é pouco.”


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