Além Do Horizonte escrita por Amber Brownie


Capítulo 7
Capítulo 6 - Um Inimigo Misterioso




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ALÉM DO HORIZONTE

 — Capítulo 6

Um Inimigo Misterioso

 

Quando vi o sangue, a janela quebrada da sala, o vidro estilhaçado pelo chão. Algo em mim se moveu por si só. Eu podia sentir o pulsar forte do sangue correndo nas minhas veias e não pensei duas vezes em saltar a janela para seguir a trilha macabra que se infiltrou até o bosque mais próximo dali. A escuridão me acolheu, enquanto eu discutia comigo mesmo as consequências das minhas ações impensadas que começaram essa bola de neve sem fim.

Quanto mais ao norte eu ia, o cheiro forte de sangue fresco se aproximava e se espalhava pelo local, assim como as plantas mortas ao redor. Kinomoto estava usando seu poder mágico junto com o sangue amaldiçoado. Isso quer dizer, que seja lá o que ela esteja enfrentando, é alguém poderoso. Depois de correr por quinze minutos em pânico, escutei alguém arquejar e o som de espadas se cruzando como dois trovões no céu. O baque surdo na grama me fez seguir ao contrário de onde vinha a trilha de sangue.

Me obriguei a manter a calma ignorando o ar que tinha escapado dos meus pulmões e corri até o barulho, olhando para todos os lados.

Onde o bosque se abria numa clareira, a imagem que eu vi muito pior do que tudo o que já tinha visto nesses três meses. Kinomoto estava de joelhos no chão, ao redor de uma das várias poças de sangue — o seu próprio, sem arma nas mãos. Os ombros tremiam, a roupa que havia trocado estava surrada e manchada. Apesar de tudo, ela estava completamente imóvel. Só o odor forte estava me deixando enjoado, mas não tanto quanto aquele cenário de filme de terror. Trinquei os dentes quando senti meu estômago revirar por dentro. Então, senti aquela presença que tinha atacado na sala do clube de interesses históricos e virei o rosto para ver quem estava ali.

A figura de um homem alto com roupas pretas e uma katana quase da sua altura se preparava para atacar mais uma vez. Eu não podia dizer com certeza se era outro youkai sendo feito de marionete ou apenas uma sombra. Em um ímpeto, ele foi em direção a Kinomoto com a espada à frente. Kinomoto não fez nenhum movimento para tentar se defender.

Meu sangue gelou no mesmo instante — ela estava prestes a morrer.

Então foi num pulo desesperado que me coloquei entre os dois.

Desembainhei minha espada o mais depressa que pude. As espadas se chocaram com violência, saindo faíscas por todos os lados. Encarei os olhos que brilharam por baixo do sobretudo. Senti o sangue molhar meus pés que escorregaram um pouco a favor do inimigo, mas ainda assim consegui o empurrar para longe. Com a mão esquerda, puxei o punho de Kinomoto que continuava inerte.

Meu toque pareceu despertá-la do transe.

— L-Li-kun?

— Você pretende ficar aqui para ser atacada de novo!? — gritei com o olhar fixo na figura do outro lado do campo aberto que voltava a se levantar. Puxei Kinomoto de novo com mais força dessa vez, mas ela parecia estar muito fraca para ficar de pé. Decidi agir com gentileza — O que houve? Anemia?

Kinomoto ficou em silêncio, respirando com dificuldade. Eu não podia perder tempo esperando que ela se recuperasse. Por isso, a puxei para os meus braços e saí correndo para fora daquele campo aberto. Minha atitude pareceu alarma-la, contudo eu não tinha outra escolha naquele momento.

— Hoeeee! Li-kun! Me ponha no chão agora! — Kinomoto gritou, apesar de não ter forças para se afastar.

— Fique quieta ou ele vai nos seguir! — retruquei, aquilo estava me deixando irritado, será que ela simplesmente não poderia agradecer como alguém normal faria? A presença continuava a perseguir mesmo dentro do bosque. Havia outras coisas com o que eu estava preocupado. Por baixo do sobretudo negro, pude confirmar que o inimigo não era nem um youkai ou marionete. Era um feiticeiro.

Ainda assim, novo demais para ser alguém como Clow Reed, e apesar que a magia mantenha o corpo mais jovem por muito tempo, era muito tempo. Mesmo para alguém como Clow.

— Kinomoto.

Eu a chamei, ela estava lutando com muito afinco em continuar acordada.

— Quem é aquele cara?

Kinomoto virou o rosto mudando de assunto.

— Pensei ter dito para você ir embora.

— Bom, eu voltei e seu apartamento estava aberto, todo revirado — retruquei com um suspiro, ela pode estar contrariada, mas minha atenção estava no feiticeiro que ainda nos seguia, e se aproximava assustadoramente. Se eu não bolasse um plano agora, ele iria nos alcançar antes que eu sequer chegasse perto do precipício — Não pude evitar.

— Como você chegou aqui?

— Eu não sei, tinha umas marcas de sangue no chão e quando vi você, só pulei antes que aquele cara te matasse — respondi com olhar fixo na cerejeira do parque que se me aproximava devagar demais para o meu gosto. Tsc. Não vou conseguir chegar a tempo — O que você estava pensando-?

Antes que Kinomoto pudesse retrucar, várias árvores caíram a nossa frente, impedindo que eu continuasse. A explosão foi forte o suficiente para nos separarmos para lados diferentes. Meu corpo rolou no chão e meu pulso bateu contra as raízes altas de uma árvore quando tentei miseravelmente proteger meu rosto. Eu sentia a presença se aproximar com calma dessa vez, vindo do lugar onde as árvores haviam caído. Agarrei o pingente negro outra vez e materializei a espada ao meu lado, enquanto tentava ficar de joelhos.

— Que incomum — o feiticeiro disse.

Não conseguia enxergar nada com essa fumaça densa. Apenas lembro de ver algo longo como um báculo brilhar entre as nuvens de poeira e ouvir o farfalhar de algo caminhando lentamente. Toda essa quietude estava me incomodando. Puxei um talismã com um joelho no chão e invoquei uma ventania para dispersar a fumaça. Depois corri em direção a presença do feiticeiro com a espada empunhada. Sei que não devo ter chance nenhuma de vitória contra alguém como ele, mas precisava criar uma oportunidade de fuga.

As lâminas se chocaram com violência outra vez. O feiticeiro se afastou e esperei pelo próximo ataque. Mesmo que eu não pudesse ver seu rosto, consegui sentir o olhar por baixo do capuz. Sim, eu conhecia aquele brilho de ódio nos olhos, porque vários deles eram dirigidos a mim no passado. Mas dessa vez esse olhar não era direcionado para mim.

Era para Kinomoto.

Aquilo me incomodou, mas não podia agir apenas com a força contra alguém do nível dele. Eu seria inútil para Kinomoto se não pudesse fazer nada também. A olhei rapidamente. Continuava deitada ao meu lado, mas ainda um pouco distante. Os olhos dos dois se encararam em silêncio. Toda essa tensão estava me fazendo suar frio.

Não quis esperar que ele a atacasse de surpresa, por isso assumi uma postura ofensiva o obrigando a voltar sua atenção para mim. As espadas se chocaram com força outra vez. Todos os meus ataques eram facilmente defendidos. Quando as espadas se encontraram na segunda vez, ele se afastou e me vi obrigado a tentar acertá-lo à distância. O feiticeiro pulou se desviando e avançou no meu rosto. Senti o sangue escorrer na ferida na bochecha, mas a ignorei vendo a oportunidade de inutilizar sua katana.

Quando ele abaixou a mão, aproveitei para cruzar as espadas, fazendo que a kanata do feiticeiro fincasse com força no chão. Porém, a parte de cima do meu torso ficou desprotegida. Ele aproveitou a abertura virando o corpo com o auxílio da espada para dar um chute na altura do meu pescoço que não pude evitar a tempo, mesmo que tivesse percebido.

Rolei batendo nos troncos altos do bosque até encontrar uma grande árvore que me impediu de afastar demais dali. Mal me recuperei e o feiticeiro já estava a minha frente, girando a katana para me cortar ao meio. Me agachei, apoiando na árvore que foi cortada no meu lugar. Ainda estava desnorteado para contra-atacar, por isso dei um impulso da base da árvore, escapando de outro ataque. Toquei com as mãos em uma das raízes altas e girei, conseguindo de ficar de pé do lado oposto ao dele.

Com outro impulso, fui a sua direção. Ele defendeu sem dificuldade. Isso estava me deixando frustrado. Retirei a espada girando de lado para que ele pensasse que eu iria me afastar outra vez e rodei a espada na mão direita atingindo com um corte fino seu braço esquerdo. Sorri de lado com o feito. Percebi que o feiticeiro trincou os dentes e avançou outra vez.

Porém, quando me preparei para defender, ele pulou para cima chutando meu rosto. Meu corpo caiu com força contra o chão e senti minhas costelas arderem outra vez. A presença dele se aproximou e mal abri os olhos para ver a espada em direção ao meu rosto de novo. Rolei para o lado, mas a espada veio em minha direção ainda contra à terra. Senti meu corpo arder, por isso me obriguei a me impulsionar para frente. Com as pernas, agarrei seu pescoço e o joguei contra as raízes.

Apesar do forte impacto, minhas pernas foram agarradas também e fui jogado para longe outra vez. Meu braço esquerdo se chocou contra uma pedra e me ouvi gemendo baixo logo o sentindo arder como as feridas. Eu estava ofegante, mas concentrado na presença do feiticeiro e na de Kinomoto. Percebi que estava ao seu lado e virei meu rosto por reflexo.

Kinomoto continuava pálida, talvez até ainda mais do que antes. Se esforçava para ficar acordada já que não tinha forças para ficar de pé, estava apoiada em um dos cotovelos com um dos olhos verdes fechados ainda respirando alto como quando a encontrei. Engoli em seco. Kinomoto não ia conseguir fugir naquelas condições. E mesmo que eu seja imortal, não vou segurar esse cara por muito tempo. Precisávamos fugir dali antes que eu chegasse ao meu limite.

Antes que eu quebrasse o acordo.

Quando senti o feiticeiro se aproximar novamente, já tinha um plano em mente. Puxei dois amuletos, fogo e vento, juntos. Se não conseguíssemos escapar com um incêndio, certamente o fogo e a fumaça iria alertar alguém da comunidade mágica. Invoquei a magia que se espalhou por toda a área consumindo as árvores e arbustos que haviam ali. Como esperado, a presença dele se afastou. Ainda assim, percebi outra coisa se aproximar.

No meio da fumaça aquilo parecia se espalhar e se concentrar à minha frente. Desembainhei a espada e cortei a fumaça. Uma forma negra orgânica se desfez como as cinzas no fogo dentro da fumaça. Meus instintos estavam alerta outra vez — algo me dizia que aquela coisa era a mesma que tínhamos lutado mais cedo.

Eu não poderia estar lutando contra Clow, certo?

De qualquer forma, isso era péssimo. A sombra negra voltou a nos cercar em finas lâminas através do fogo. Isso quer dizer que nenhuma das minhas magias teria efeito nela. Me mantive perto de Kinomoto que continuava lutando para se manter acordada. Ela já deveria ter passado do seu limite há muito tempo, mesmo assim continuava se esforçando. Sem falar de que a luta contra o youkai na escola já a tinha enfraquecido o bastante.

Trinquei os dentes com mais força do que deveria. Aqui eu não era nada útil a não ser para servir de isca. Porém, duvido que essa estratégia faça Kinomoto sair daqui com vida. Merda. Merda!

Invoquei o amuleto de vento fazendo um redemoinho afastar as lâminas, mas a reação foi contrária. O vento as impulsionou para o centro e fui obrigado a me agachar, escapando por um triz. A forma se desfez e com isso aproveitei para alcançar Kinomoto. Essa era a única oportunidade de fugir. Kinomoto se mexeu tentando se afastar.

— Ei Kinomoto, precisamos sair daqui!

Ouvi a voz de Kinomoto fraca, mas clara.

— Espere.

Kinomoto me ignorou se afastando com dificuldade. Ela alcançou o pingente dentro da roupa que brilhou com o toque e o sangue começou a se mover de novo para fora da mão dela. Quanto mais ele se juntava, mais pálida Sakura ficava e sua mão tremia.

O sangue se comprimiu e se espalhou jorrando para todos os lados. Tive que virar meu rosto, não para proteger do ataque, mas pela fumaça que aumentou. Ouvi um baque ao meu lado. Com uma das mãos tentei afastar a fumaça densa cobrindo minha boca, mesmo sendo inútil. Abracei o corpo desmaiado de Kinomoto e pulei rápido entre as árvores que não tinham sido acertadas pelo fogo.

Do alto de uma das árvores que escaparam do incêndio a feição do feiticeiro ficou mais clara. As características eram as mesmas de Clow, mas o rosto parecia diferente. Olhos e cabelos negros, mas a pele era morena.

Mesmo distante foi possível ouvir a voz baixa e clara de novo.

— Nós iremos nos encontrar de novo, Sakura.

Com isso ele sumiu como a fumaça que se espalhava pelo bosque.

O fogo continuava a crepitar alto como uma tempestade, mas não era isso que me preocupava no momento. Precisava de um lugar para deixar Kinomoto e depois do que aconteceu, não poderia deixá-la em casa. Se aquele feiticeiro voltasse o destino de Kinomoto era certo — a morte.

Só havia um lugar seguro por perto além da minha casa. A loja de Yuuko. Você pode estar se perguntando por que os Li e os Hiiragizawa não são seguros. Porque, caso não tenha percebido, alguns clãs podem agir de forma autoritária por causa de seu poder. Principalmente quando estamos falando dos Li. Sem falar que Kinomoto já estava numa posição muito delicada entre esses os dois clãs.

Todo o meu corpo pedia descanso, além dos cortes que ardiam, porque a pele estava se curando. O feiticeiro podia ter desaparecido, mas continuei alerta por todo o caminho até a loja de desejos. Yuuko já esperava na entrada com suas duas ajudantes.

— Então, você conseguiu chegar a tempo.

Eu a encarei confuso. Yuuko não falou mais nada e deu meia volta no corredor. Eu a segui com as garotas no meu encalço que seguiam os olhos de Kinomoto para Yuuko.

— Oh não! Ela está ferida?

— Oh não! Ela vai ficar bem?

— Não se preocupem, esta criança vai estar forte e saudável logo pela manhã. Coloque-a ali Syaoran — Yuuko apontou para dentro de um dos quartos da casa e se virou para as garotas — Maru, Moro, por favor peguem uma coberta e uma roupa para trocar.

Quando entrei, senti o cheiro forte de incensos e vi alguns símbolos mágicos nas paredes. Aquilo facilmente podia se passar por um quarto comum de uma família rica. Este quarto é especial. Bom, você não deve saber, mas esse quarto é um local especial onde fiquei quando passei dos meus limites. Posso contar às vezes que perdi o controle e vim parar aqui.

Existem selos de proteção e uma kekkai interna específica. Estou simplificando até demais dizendo que é como um quarto de hospital. Por isso me preocupou um pouco. O preço para algo assim deve ser muito alto. Me virei um pouco receoso encontrando Yuuko pelo canto do olho.

— Quanto ao preço, Yuuko-san…

— O preço já foi pago.

Não pude deixar de ficar surpreso.

— Agora eu não posso dizer o mesmo a você, Syaoran.

Yuuko abriu um sorriso travesso. Eu sabia o que estava por vir.

— Certo. Mas, não é necessário. Logo vou estar bem.

— Sim, você irá. Porém, não é esse o seu desejo — Yuuko retrucou com o rosto sério. Eu não sei bem do que ela está falando, então não respondi. Moro e Maru voltaram com o cobertor e envolveram Kinomoto e eu enfim soltei o corpo pálido a deixando sentada em cima da cama. Yuuko aproveitou para completar — mas, você precisa trocar suas roupas e isso também tem um preço!

Tsc. Yuuko nunca iria deixar de ser uma mercenária.

— Eu já falei que isso não é necessário!

Yuuko sorriu, virando-se para as garotas que acomodavam Kinomoto na enorme cama.

— Maru, Moro, troquem a roupa de Sakura-chan e limpem os ferimentos com cuidado, ok?

— Certo!

Me virei para caminhar ao corredor. Dei uma última olhada e concluí que estava tudo bem. Yuuko fechou a porta do quarto e me deu as costas.

— Hmm… Acho que tenho cogumelos Shiitake. Você pode fazer uma sopa com eles.

De todas as vezes que vim a loja, esse foi o pedido mais estranho vindo de Yuuko. Eu estava pronto para ir até à cozinha quando ela virou o rosto me olhando com um sorriso.

— Deve ajudar a Sakura-chan já que você está tão preocupado com ela.

Senti meu rosto esquentar na mesma hora. Droga! Me obriguei a virar o rosto, mas eu sei que ela viu que fiquei sem graça.

— N-não estou pre-preocupado!

Yuuko voltou a ficar em silêncio, mas não ousei virar o rosto para ela. Ao invés disso, decidi ir até o depósito e pegar os cogumelos que Yuuko tinha falado. A noite estava fria e o céu limpo. Uma cena tranquila ao contrário de que tinha acontecido apenas alguns minutos atrás. Eu não tinha me preocupado em avisar sobre o visitante ou sobre o incêndio que causei. Por isso, quando colhi os cogumelos, alcancei meu celular no bolso da calça.

Cliquei no botão do meio e o visor brilhou. Hesitei. Nesse momento, a comunidade mágica deve saber que o incêndio não era nada normal. Até agora, só quem sabia sobre Kinomoto eram os Li — que ainda eram uma ameaça — e os Hiiragizawa — que também não tinham uma boa imagem dela. Clãs amaldiçoados são abominados desde a era feudal, Eriol disse, e eu não acredito que isso tenha mudado atualmente. Mas, essa não era a parte mais complicada de toda essa situação.

Kinomoto tinha muitos segredos.

A ligação dela com aquele feiticeiro me deu calafrios. Poderia ser aquele Clow Reed? Não, mas ele estava agindo por ele, afinal, quem mais poderia controlar aquelas sombras?

Pelo visto, eu teria que começar a ter segredos também.

Caminhei até a cozinha com os ingredientes. As garotas Maru e Moro levaram um recipiente com água que Yuuko tinha pedido. Antes de começar, procurei pelo número de Eriol e comecei a digitar. Devo ter ficado mais de quinze minutos encarando a tela até decidir se mandava ou não o que tinha escrito:

 

“Houve outro ataque daquela sombra-youkai,

perto de onde Kinomoto mora.

Um dos meus talismãs acabaram causando o

incêndio no bosque atrás do parque pinguim

mas nós conseguíssemos despistá-lo.”

 

Enviar.

Guardei o celular de volta no bolso. Tentei manter minha concentração ao máximo na sopa, mesmo ansioso por algum sinal. Até minha fome tinha ido embora. Quando terminei, como se soubessem, Maru e Moro apareceram outra vez levando uma generosa tigela.

Posso dizer que não tive coragem de ir atrás delas e me certificar que Kinomoto estava bem. Eu não sei bem o quê, mas algo me incomodava. Quer dizer, várias coisas me incomodavam. Sei que estou me enfiando em algo que não deveria e ainda assim, cruzei esse limite. Comparando há um ano, posso dizer que me sinto mais vivo que nunca.

No entanto, estar vivo também significava criar laços e mesmo que eu queira sentir como é isso, sinto medo na mesma intensidade. Eu não lembro de me importar tanto com uma pessoa, além da minha mãe, é claro. Mas isso era algo diferente. Eu não conhecia Kinomoto nem seus segredos, e, ainda que tudo apontasse que ela fosse culpada, eu não conseguia a enxergar dessa forma. Eu sabia que poderia confiar em Yuuko. Por isso, depois que terminei a sopa, decidi ir para casa e clarear a mente.

Bom, eu falhei nisso também.

No outro dia, levantei cedo e tomei café como costume. Ao chegar na sala meus colegas comentavam que as provas estavam se aproximando. Algo que eu tinha esquecido completamente. Mas os comentários que chamaram minha atenção não foram esses.

Alguns alunas estavam comentando sobre os barulhos estranhos de ontem das salas do último andar do bloco direito, onde ficava o clube de interesses históricos, astronomia e tarô. Bom, nós sabemos o que aconteceu. É um alívio que os humanos não tenham visto nada, principalmente para Eriol, já que a culpa daquela catástrofe foi de um estratagema impulsivo dele. Por reflexo, observei a carteira de Kinomoto pelo canto dos olhos. Ela estava completamente bem exceto por alguns curativos nas mãos.

O incêndio no parque também foi algo bastante comentado, mas nesse caso os Hiiragizawa agiram rápido como o de costume. Aparentemente a causa foi alguns jovens que estavam testando um foguete caseiro de um vídeo bastante visualizado na internet. Depois de ontem, Eriol não me contatou até então. As acusações contra os Li e o aparecimento do youkai devem ter virado um peso para ele. Por isso pensei que a informação sobre aquele feiticeiro seria relevante.

Quando o primeiro horário acabou fui ao clube como de costume. A sala estava completamente reformada como era esperado. A única surpresa foi ver Eriol analisando as antologias com o olhar de tédio em seu rosto. Dei uma mordida no pão de yakisoba antes de sentar na cadeira oposta a ele.

— Oh. Olá Syao-chan, parece que você se meteu em problemas de novo, não é mesmo?

Tsc. Me obriguei a mudar de assunto.

— E a Meiling? — retruquei, trazendo a pilha de livros ao meu lado. Eriol suspirou e se alongou, dei outra mordida no pão evitando olhar para ele, me concentrando na minha pesquisa. Tudo o que ele quer é me irritar e eu sempre acabo caindo nesse jogo.

— Ela está com a Sakura-chan. Não se preocupe, é apenas a coleta de dados usual.

Apesar disso me incomodar um pouco, não pude deixar de franzir o cenho. Eu o observei desviando minha atenção do livro que estava a minha frente.

— Eu não estou preocupado.

Eriol retrucou prontamente com um sorriso zombador.

— Não é o que o seu rosto diz.

— Você está enganado!

— Você não é mesmo nada honesto, hein? Pena que é completamente transparente, Syao-chan.

— Eu não sei do que você está falando.

Maldito. Mesmo tentando não ir na dele, acabei sendo pego de qualquer jeito. Eu não tenho porque ser honesto com ele e dizer que me preocupo, até porque não é nada além do que ele provavelmente está pensando. Eriol voltou a falar.

— Então, você está lendo “noites de sonhos” por um bom tempo, eles são realmente interessantes.

— Sim. Tentei fazer a Meiling mudar de ideia e fazermos só uma coletânea em um volume, mas ela prefere uma nova compilação.

— É mesmo uma ótima ideia — Eriol murmurou, eu estava decidido a declarar que essa seria uma conversa civilizada, mas estava enganado — Meiling deve estar querendo nos punir por algo, imagino o quê.

— Você é o único que devia ser punido por algo!

— Se estamos todos juntos, temos que passar por tudo juntos, não acha?

— É claro que não, ainda mais quando sou eu o que mais trabalha aqui.

— Meling deve estar punindo você por não se confessar a ela então.

— Do que diabos você está falando afinal? Isso não tem nada a ver — retruquei e mordi o pão outra vez, ele não era o único que poderia sair sem ser importunado, por isso disparei — Você não devia estar preocupado com o que aconteceu ontem?

Houve um momento de silêncio. Não tínhamos falado sobre ontem até agora e imaginei que Eriol estivesse ocupado o suficiente (ou sofrendo) para não estar aqui jogando conversa fora.

— É mesmo. Eu não imaginava que alguém poderia controlar um youkai — retrucou pensativo — Como alguém poderoso assim estaria em Tomoeda sem os Li saberem? É inacreditável.

Meus olhos se voltaram a Eriol. Será que estou agindo certo em não contar sobre aquele feiticeiro? Kinomoto já é um alvo para todos, sem falar que depois do incêndio de ontem podem ter tido alguma pista dele.

— Sim, é verdade — suspirei — Vocês o encontraram?

— Ainda não.

Pela primeira vez eu via Eriol frustrado com algo que deveria lidar bem. Mesmo que eu o odeie, não posso usar isso como desculpa para irritá-lo. Talvez não agora, eu já consegui o suficiente. Eriol me encarou colocando a mão no queixo.

— Mas você foi mesmo teimoso, Syao-chan.

O sinal tocou. O segundo horário começaria em alguns minutos. Eu não queria dar o braço a torcer e admitir que estava errado. Então, quando Eriol disse que levaria Kinomoto, bom, eu não podia aceitar aquilo. Eu não queria que levassem ninguém para aquele lugar onde fiquei por anos.

— Bom, o que importa agora é que Sakura-chan estará segura.

Um calafrio passou pelo meu corpo.

— Então ela vai para o Templo?

Eu poderia lhe apresentar o Templo como um paraíso seguro, mas apesar de a palavra transmitir isso era totalmente o contrário. Se eu pudesse defini-lo em poucas palavras, diria que é uma prisão para feiticeiros de alto nível. Bom, isso no sentido mais amigável possível.

— Então era esse o seu medo? — Eriol sorriu — Não, Yuuko-san já preparou tudo.

— Yuuko-san? Então o preço…

O preço já foi pago” foi o que ela disse ontem a noite. Isso quer dizer que os Hiiragizawa ou os Li tinham pago um preço? Quando eu fechei a porta do clube e me virei para seguir para a sala de aula, Eriol cortou minha linha de pensamento com a frase que eu temia ouvir.

— Foi pago por alguém muito próximo de Sakura-chan — sua voz saiu calma em contraste com o semblante sério — Yuuko-san não pode relevar quem ou quando o preço foi pago, mas Sakura-chan deve saber quem é.

— Sim, isso é verdade.

Eu já esperava por algo assim. Por isso, quando começamos a andar o que Eriol comentou acabou me surpreendendo um pouco.

— Ainda estamos coletando informações sobre tudo o que aconteceu, então ter Sakura-chan no clube é melhor por enquanto. Bom, Yuuko-san está por perto também.

— Entendo.

De alguma forma, algo pesado saiu um pouco das minhas costas. Eriol e eu nos separamos no segundo andar quando desci mais um lance de escadas para ir a minha sala de aula. Encontrei Kinomoto no mesmo lugar pelo canto de olho. O feiticeiro que a conhece e quis matá-la e agora alguém que a salvou. As palavras que Meiling tinha me dito vieram a minha mente outra vez “Você não deve colocar seu nariz nessas coisas Syaoran”. Ela estava certa. E por mais que me recuse, Eriol também. Todos estão certos.

Mesmo que me meter em problemas seja minha sina para me sentir vivo, isso não tem nada a ver com causar problemas para os outros. Por mais que eu a entenda, eu não posso ajudá-la em nada. Por isso, irei falar com Kinomoto e me desculpar pelo que eu disse.

Manterei o trato.

Continua...


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Notas finais do capítulo

Olá pessoal!
Dessa vez demorei um pouco para atualizar (logo no momento mais crítico haha). Esse capítulo tinha ficado ENORME que vocês não tem noção em quantas partes tive que tirar dele e mover pra outro, então a boa notícia é que o próximo não vá demorar tanto a sair o/
Espero que gostem!
Até o próximo!



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