Carabosse escrita por Nat King


Capítulo 9
Quarto Ato - Parte II




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/750417/chapter/9

Quarto Ato

Parte II

 

De frente para o espelho, correndo a escova pelos fios bem mais curtos, Victor girava o rosto em diferentes direções, procurando todos os ângulos daquele novo corte de cabelo. Até que o comprimento curto lhe caía bem.

Da porta, sem se manifestar, Oleg assistia a tudo mergulhado em dor. Ele não tinha nenhuma palavra em seu vocabulário que pudesse usar naquela situação. Se ele pudesse apenas evitar tudo…

“Ah, oi pai,” pelo espelho da penteadeira, Victor recebeu Oleg. “Não tinha te visto aí.”

“Eu acabei de chegar.” Ainda sem saber o que dizer, ele meteu as mãos nos bolsos. Em qualquer outra constrangedora situação no passado ele teria ali guardado algum papel com palavras prontas de conforto. “Posso entrar?”

“Claro!”

O quarto do filho era bem mais simples do que de fato era o gosto pessoal de Victor e isso devia se dar pelo rapaz ainda morar com Yakov — se Oleg não presenteasse o filho com um apartamento próprio, ele não tomaria essa decisão primeiro. É claro que a simplicidade só se fazia notar pela visível ausência de molduras que marcavam as paredes com pregos solitários, restos de fita marcando em cola a pintura antiga, retângulos ligeiramente mais claros de um museu próprio transformado em entulho do lado de fora.

“Yakov ainda está aí? Acho que deixei ele preocupado.”

“Não, não, ele só me deu as chaves.” Chegando até a cama de Victor, Oleg tomou a liberdade de sentar-se entre os lençóis meio amarrotados. “Como você está?” Victor o olhou pelo espelho mais uma vez, lábios abertos para tentar dar uma resposta impossível de ser dita. Respirando fundo, ele deu de ombros, deixando a escova em cima da prateleira. “Esse novo penteado combina com você.”

Victor riu baixo com o elogio, tentando levar uma mecha para trás da orelha, desistindo ao percebê-la curta demais para tirar a franja da frente dos olhos. Mesmo assim, era impossível não notar as lágrimas contidas que ele tentava em vão disfarçar.

“Ficou bom, não é? Foi o Georgi que cortou, ele é muito bom nesse tipo de coisa.” Sem poupar elogios ao amigo, ele sorriu, continuando a numerar os talentos de Popovich. “Ele é bom em costura também, bordado, coreografia… Georgi é bom em tanta coisa. Só eu não presto para nada.”

“Isso não é verdade, Victor.”

“Ele me falou tantas vezes que o Sasha não era confiável…”

“Você não tinha como ter certeza.”

“Eu sou tão burro, tão, mas tão burro!”

“Todos nós podemos nos enganar.”

“Vocês não se amavam, não é?” Oleg não esperava por aquela pergunta, nem Victor pela resposta. “Deve ser por isso que o amor nunca dá certo pra mim, eu sou a cara dela, afinal...”

Aquilo era para ter sido uma piada, com direito a risadinhas de auto depreciação, mas acabou culminando em lágrimas engasgadas e sofridas. E Oleg, logo Oleg, não suportou ver aquela cena, abrindo os braços e oferecendo aquele apoio somando vinte anos de atraso, e que Victor aceitou sem questionar ou se lembrar se algum dia houve qualquer negligência paterna.

“Você ficou muito decepcionado comigo?” Contendo um soluçar, Oleg apertou o abraço. Do que aquele menino estava falando? Não existia nada, absolutamente nada, que ele fizera de errado. “Perdão, pai, por favor, me desculpe…”

“Me perdoe, Victor…” Mas ele não sabia totalmente pelo quê o pai pedia perdão.

“Eu só queria que parasse de doer, pai…” Em meio a lágrimas e soluços, Vitya confessou aquela dor que o dilacerava desde o ocorrido daquela manhã.

E Oleg nunca achou que por aquele menino ele desejaria poder tomar toda e qualquer dor do mundo para si.

.:.

Não levou nem vinte e quatro horas completas para surgir uma denúncia contra Aleksandr Osipov que o desabilitava a competir. Uma punição sem julgamento, uma acusação sem histórico de provas, que o tirava da patinação pelo indeterminado tempo que jamais seria discutido. Oleg Nikiforov não fez nem questão de disfarçar enquanto esperava para ver a família Osipov deixar o centro de treinamento para sempre. Ele devia dizer que pai e filho combinavam muito bem com aquele olho roxo em comum.

Preservando a si mesmo de assistir a cena, por melhor que ela soasse em sua mente, Georgi manteve-se com sua turma de miniaturas infantis, sorrindo satisfeito para cada expressão alegre dos alunos em trajes feitos especialmente para a apresentação. Contagiado pela felicidade inocente, ele buscava Nana, sentindo vibrar dela nada mais que gratidão. Era tudo o que seu ano precisava para ser salvo, aquela experiência.

Quem também sorria para a imagem de Georgi como uma perfeita Branca de Neve russa cercada por anõezinhos serelepes, era Anya, sensível o bastante para se emocionar com a cena. Ela sentiria falta daquele um metro e setenta e oito de puro sentimentalismo.

“Não acredito que vou dizer isso, mas até eu quero uma fantasia dessas.” Ao lado de Anya, Mila espiava a sala como se ter sua identidade revelada entre as crianças pudesse destruir por completo sua imagem na carreira de patinação que pretendia construir. É claro que se Georgi a presenteasse com uma daquelas tiaras de flores de espuma, ela não reclamaria. “Vai lá falar com ele!”

Pavlova iria responder, mas Georgi foi mais rápido em ouvir a vozinha fina de Mila entre os gritos de seus alunos, virando-se para ela com um sorriso enorme e três pares de asas brilhantes para as crianças que fariam as borboletinhas daquele jardim de inverno. Aquela cena era para ser assim tão emocionante? Por que estava sendo tão fácil chorar naquele dia?

Deixando as fantasias de lado ao perceber que Anya não estava bem, Georgi delegou à Mila o cuidados dos pequenos — e isso deveria ser um elogio, pois apenas adultos cuidam de crianças —, enquanto levava a outra jovem pela mão, longe o bastante para não chamar a atenção que ela visivelmente queria evitar, porém perto o bastante para auxiliar sua turma se as coisas fugissem do controle.

Era estranho trocar apenas olhares nervosos, preocupados, cheios de dúvida, porém sem usar uma única palavra. Anya tentava e tentava começar por algum lugar, mas o desabafo não passava de um suspiro, olhos baixos, gesticulações que não apontavam a lugar nenhum. Procurando no rosto pálido, Georgi observava cada pista não dada, hesitando algum toque desnecessário ao momento, mãos suspensas que questionavam o tamanho daquele sofrimento e a razão dele também estar se sentindo afetado por tamanha dor. Foi Anya quem findou aquela dúvida de gestos, abraçando Georgi que retribuiu na mesma intensidade preocupada. O quê?! O quê?!

“Eu não queria incomodar a despedida, mas preciso falar com você, Anya.” Atrás de Georgi, Lagutina chamou a atenção para si da melhor forma que podia.

Despedida?” Então era aquele o sentimento preocupante transmitido por Anya que o tomara por completo. “Por quê?”

“Nos livramos do Osipov e ele levou junto a chance do campeonato,” explicou Irina o mais resumidamente possível. “A expulsão dele foi muito próxima à data da competição, não tem como substituir por outro atleta.”

Anya ouvia o óbvio, tantas vezes contestado por ela, com a cabeça baixa e lágrimas rolando pelo rosto. Ela tinha o próximo ano, sabia disso, mas até quando poderia deixar para depois?

“Eu sei as coreografias!” Parecendo dividir os mesmos pensamentos com a moça, Georgi se pronunciou sem nem pensar direito. “Eu sei todos os detalhes, eu ensaiei com Anya tanto quanto Osipov!”

“Diria que até mais,” balbuciou Irina, não crendo no que ouvia.

“Eu ainda posso entrar, não é? Se me substituírem na ficha de competidores, serei aceito, eu tenho quase certeza!”

Lagutina quase precisou se apoiar na parede para se dar conta de tudo o que passava em sua cabeça. Uma substituição com tão pouco tempo? A ajuda dada por Popovich na ausência de Aleksandr em nada se comparava ao ritmo intenso do treino imposto por ela ao ex-patinador, mas uma base ele já possuía. Teria como aprimorar? Lagutina precisava falar com Yakov.

“Mas por quê, Georgi?” perguntou Anya, encarando-o com o rosto lavado de lágrimas. Ela não sabia o que pensar daquela decisão súbita e àquela altura não sabia se queria voltar a calçar o par de patins.

Tantas eram as respostas que nenhuma respondia totalmente. Era por ajuda a Anya, consideração a Irina, respeito ao trabalho das duas, indignação com o prejuízo de uma temporada perdida…

“É preciso recomeçar de algum lugar.”

Era por ele mesmo.

“Rapaz, você tem certeza disso? Porque se tem, eu vou precisar falar com aquele careca do seu avô.”

Georgi sabia que deveria rir da piada, mas se contentou em concordar sem nenhuma expressão. Ele estava fazendo aquilo, mesmo? Estava voltando ao gelo? O trauma havia simplesmente evaporado?

Segurando o pingente em mãos, Popovich sentia o tamanho do próprio tremor. Não, o trauma não tinha passado, mas depois de enfrentar os próprios demônios — um com a cara de Oleg e o outro com a debochada cara de Osipov —, a possibilidade de voltar a patinar não lhe estava lhe parecendo uma ofensa à memória de Margosha, mais como uma homenagem. Sua mãe havia feito de tudo por ele como atleta e teria ficado igualmente perdida se o filho tivesse de abandonar as competições por algo que lhe fugia o controle. De onde ela estava, se é que existia algum lugar assim, Popovevna estaria lamentando a retirada do filho da patinação. Margosha era assim. Georgi nem tanto. Mas se algo ele havia puxado à mãe além da cor dos cabelos, era sua dedicação por quem amava. Seria muito cedo ou muito tarde afirmar amar Anya?

Existiu um tempo em que amar em voz alta foi fácil, o mesmo tempo em que Kiss From a Rose era ouvida embalando o ridiculamente maravilhoso Batman Eternamente, época em que Victor se via como uma Nicole Kidman com os cabelos ao vento e Georgi sonhou com um guarda-roupas colorido e brilhante como o do personagem de Jim Carrey. Ele precisava de tão pouco para ser feliz e agora, encararia uma parte da própria infância transformada em algo muito mais sério. Georgi teria preferido o figurino do Charada, logicamente. Victor com certeza teria mantido os cabelos compridos.

“Absoluta.”

Anya o abraçou mais uma vez, com mais força e mais lágrimas. Embora ela chorasse em voz alta, Georgi não conseguia amá-la na mesma altura. Por enquanto, o sentimento ainda seria um segredo.

.:.

Se Mila Babicheva não fosse o melhor exemplo de evolução que Yakov tinha para exibir a qualidade de seu método de ensino, ele com certeza já teria mandado a aluna tirar uma folga de pelo menos uma semana. Ela estava insuportável com aquela nova fase Evanescence e Feltsman só podia culpar Georgi por tê-la apresentado aquele CD que ajudou a moldar o caráter dramático do neto. Se ele ouvisse Bring me to Life novamente, seria a sua voz quem clamaria por salvação.

Achando graça da proporção que tomava as reclamações do avô, Georgi rabiscava cada um dos nomes da lista feita a mão, redigindo um a um os nomes dos alunos avaliados e as observações finais feitas por Yakov. Não ousava rir da dificuldade dele em lidar com aquelas planilhas todas inventadas por Georgi, não quando seu esforço para aprender a mexer em um celular sem teclas era genuíno.

E conforme a lista avançava sem distraí-lo mais, um nome tão comum quanto memorável saltou aos olhos; Yuri Nikolaevich Plisetsky.

“Yura?”

“Quê?” Pensando que Georgi estava falando com ele, Yakov parou de resmungar para responder.

Deixando o computador para procurar nas fichas arquivadas na gaveta de metal — por que tanto papel guardado, para quê… —, ele procurou e achou sem grande dificuldade a ficha de inscrição de Yuri e confirmou assim que o reconheceu prontamente na foto ranzinza no canto superior esquerdo, sem nem precisar buscar pelo nome dos responsáveis. Sim, aquela era o pequeno Yura, não tão pequeno como Georgi se lembrava, o que o deixava um tanto melancólico. Nikolai nunca o culpou por querer se afastar de Moscou e cortar todo e qualquer contato com aquela cidade depois da tragédia levar embora Margosha e Yulia, salvo as raras exceções onde ele pisava na capital para voltar no mesmo dia. O problema foi ter cortado o contato igualmente com as pessoas que fizeram parte de sua vida.

“Precisamos finalizar essa lista para hoje, Georgi.” Deveria ter sido um puxão de orelha, mas Yakov nunca conseguia perder a paciência com o neto. “Estão todos esperando.”

Todos. Yuri também estava ali, do lado de fora. Ele tinha sorte de estar trabalhando para o avô naquele dia, caso contrário, sua namorada jamais o deixaria faltar ao treino para tietar uma criança.

Finalizado o edital com o resultado dos aprovados do teste para o curso regular com Feltsman, Georgi ficou observando o painel, rondando de longe o tumulto enquanto buscava uma boinazinha familiar dentre tantas cabeças agitadas.

“Está esperando para ver se passou, também?”

A boinazinha o encontrou primeiro.

Georgi riu alto pela surpresa, abrindo um sorriso largo e carinhoso ao ver a imagem envelhecida e cansada de Nikolai lhe sorrindo de volta. Aqueles olhos pesados, pequenos pelo sorrisinho apertado, o fazia viajar no tempo, podendo ouvir lá no fundo da memória diferentes tipos de instrumento em afinação e um Nikolai que el olhava de baixo lhe entregando uma bala açucarada.

“É tão bom te ver!” Mesmo sem mimos e guloseimas, Nikolai sempre teria aquele acolhimento tão apreciado.

“É mesmo, rapaz! Você conseguiu crescer mais ou é impressão minha?”

Em meio ao reencontro, uma exclamação certeira:

“Eu sabia!”

Empurrando as demais crianças por pura empolgação, Yuri deixou o amontoado com os olhos brilhantes, o tipo único de alegria a transformar sua seriedade naquela expressão tão próxima à das crianças que Georgi ainda amava trabalhar. Yuri havia crescido tanto!

“Eu consegui, vô! Consegui!” E em meio a toda aquela felicidade transbordante, Yuri saltou para o colo de Nikolai, envolvendo-o com os braços e pernas, um impacto que o velho Plisetsky provavelmente sentiria por dias.

“Eu disse que você era capaz, Yurachka!!”

Se perguntassem, Georgi negaria até a morte, mas por muito tempo ele não conseguiu enxergar semelhanças entre Yulia e seu amado filhinho. Desde bebê Yuri era aquele tipo de criança difícil de se tirar um sorriso ou um gracejo qualquer, desconfiado e sisudo, enquanto Yulia destoava da seriedade do próprio povo com o sorriso fácil e tão grandes olhos castanhos. Aquela celebração entre avô neto, no entanto, trouxe à tona todo o parentesco algum dia negado, o mesmo sorriso que Yulia sempre usou para recebê-lo em cada visita ao Bolshoi e retorno a Moscou, estampando o rosto de Yuri. Georgi se pegou pensando se dentre todas as diferenças físicas entre ele e Margosha algum dia, existiu algo que o destacou indiscutivelmente como um Popovich.

“Você podia vir junto, vô! Me ver treinar todo dia! E de noite me fazer piroshki! Ia ser tão mais legal com você aqui!” Pelos argumentos oferecidos, aparentemente Yuri e Nikolai já haviam tido aquela conversa antes.

“Sabe que não posso, Yurachka… Mas veja só quem está aqui!” Sorrindo discretamente para não atrapalhar o momento, ele acenou baixo, mesmo contendo-se para não bagunçar os cabelos loiros. “Lembra dele? Georgi Popovich? Ele é quem vai cuidar de você aqui em São Petersburgo!”

“Tudo bem, Yura? Parabéns pela aprovação! Yakov é bem rigoroso, tenho certeza que você o impressionou muito!”

“Obrigado.” De volta ao chão, o menino não sabia como responder o mais velho, colocando-se atrás do avô sem perceber.

“Ora!” Com uma risada chiada pela rouquidão, Nikolai deu leves tapinhas nas costas do neto. “De onde vem essa timidez toda, Yurachka? Popovich aqui te viu nascer!” Não era algo que Yuri podia se lembrar — muito menos duvidar da palavra do avô —, ele apenas…

“Não lembra de mim, Yuri?”

“Não muito?”

Na verdade, Yuri se lembrava bem menos do que afirmava dizer. Com Georgi aparecendo poucas vezes ao ano, quando não apenas uma, ficava difícil cultivar momentos longos o bastante para permanecerem intactos em sua memória. Quatro anos depois do último contato com o patinador, dificultava um pouco esse resgate. Era compreensível, embora deixasse Georgi um pouco triste.

“Não tem problema não se lembrar!” Por cima da decepção, Georgi riu. “Você ainda vai ficar aqui o bastante para ver minha cara todos os dias, vai que em algum momento se lembra?”

“É, pode ser…” Um sorrisinho cresceu por trás da desconfiança e isso fez Georgi sentir-se mais feliz novamente.

“Quero ver os dois sendo bons amigos de novo, assim como foram as mães de vocês, hein?” Se empolgou Nikolai e tão logo o avô disse isso, Yuri deixou exteriorizar a súbita lembrança que viera à tona.

“A tia Margosha!”

Ver outra pessoa além de si recordando Popovevna com alegria, emocionou Georgi. Ele ficava feliz por ainda existirem pessoas saudosas da existência dela.

“Ela gostava muito de você, Yuri.”

Aquela afirmação fez o pequeno Plisetsky sorrir apertado, o mesmo tipo de sorriso que Nikolai exibia. Ele não duvidava daquelas palavras, sentindo o carinho da costureira tão vivo quanto o de Yulia.

“Isso me faz lembrar, Georgi,” retomando a atenção para si, Nikolai parecia de fato surpreso por lembrar apenas naquele momento. “Eu ainda tenho os pertences da sua mãe lá em casa. Estão lá desde, você sabe…”

Ele não terminou e não foi necessário. Georgi também havia se esquecido a razão por trás de Margosha e Yulia estarem no local errado e na hora errada da tragédia, a limpa feita no apartamento que deveria ter tido as chaves entregues na semana seguinte. Popovich nunca depois daquilo tinha parado para pensar no fim que os pertences de Margosha levaram, sequer lembrando de que ela, Yulia e Yuri estavam indo viver com Nikolai. Céus, ele nem sabia o que esperar. O que ainda existia? Algum artigo de costura? Peças de roupa? Guardava alguma fotografia deles?!

“Eu vou precisar trazer Yurachka e as coisas dele na próxima semana, se quiser, posso trazer-”

“Por favor!” Pediu, quase implorando. “Eu serei eternamente grato, Nikolai!”

Nikolai sorriu, repetindo aquelas batidinhas pesadas que inflavam qualquer um de orgulho.

“Bom ver que você só cresceu por fora.”

Georgi riu por conta da comparação com seu eu infantil, mas a verdade era que, para Plisetsky, Popovich continuava com o mesmo grande coração, que nem as feridas foram capazes de afetar.

.:.

O calor estava ameno quando Georgi avistou a entrada do centro de treinamento. Por trás das portas de vidro, Anya acenou e jogou um beijo, que ele de forma muito piegas, como Irina adorava provocar, fingiu apanhar no ar, levando ao peito. Ambos ridículos. Pelo menos os seguidores de Pavlova nunca reclamaram dos exageros sentimentais do casal.

Normalmente, em um horário como aquele, ela já estaria o esperando no rinque, terminando algum aquecimento ou já com os patins calçados; para Anya estar ali, quase fazendo as vezes de recepcionista, algo fora do comum aguardava ali, também — e considerando o sorriso da moça, o imprevisto não era um inconveniente.

Assim que Georgi abriu a porta junto ao fôlego puxado para questionar o que estava acontecendo, Anya se jogou na frente do namorado, uma mão contendo as palavras na ponta da língua, a outra segurando um dos braços descobertos.

“Está te esperando faz mais de uma hora,” cochichou ela, olhando para o desconhecido em roupas formais que ria ao celular. “Pode ser algum patrocinador!”

A moça estava animada, mas o mesmo não podia ser dito de Georgi. Patrocinador? No caso, por que ele não havia adiantado o assunto já com Anya?

“Conheço essa cara…” Sabendo o que se passava nas desconfianças de Georgi, Pavlova levou a mão do braço à orelha do namorado. “Tá tudo bem se quiserem te oferecer uma proposta diferenciada, Gosha, não somos uma só entidade!”

Antes que Popovich pudesse rebater com toda sua indignação, o homem ao telefone girou na direção do casal, percebendo finalmente a chegada do maior interessado daquela história.

“Preciso desligar agora, Anton,” despediu-se ele, fazendo algum sinal para Georgi que ele não entendeu totalmente. “Mas nosso chá segue de pé! Te ligo depois para combinarmos um horário, até mais!” Dobrando o aparelho, caríssimo modelo móvel, e guardando no bolso, o homem se aproximou de mão estendida, sorriso largo e forte presença, incapaz de ser negada. “Georgi Popovich!”

“O próprio!” Um tanto intimidado com tamanha energia, Georgi não hesitou nem por um segundo cumprimentá-lo na mesma intensidade. “E o senhor seria…?”

“Me chamo Edik Drozdov, sou advogado.” Estendendo o cartão de apresentação, ele se apresentou sem muitos detalhes adicionais. “E eu gostaria de falar com você a sós, se isso não for incomodá-lo, é claro.”

O patinador direcionou um olhar confuso à namorada, que se afastou risonha, esquivando-se da responsabilidade em livrar Georgi daquela suposta rentável reunião. Pelo jeito, ele não teria muita escolha.

“Claro, se o senhor puder me seguir ao refeitório-”

“Um lugar mais discreto seria o ideal.” Aquela era a educada forma de Drozdov em negar a sugestão do rapaz. “Tem um café há algumas quadras daqui, novamente, se não for nenhum inconveniente.”

Algo naquela proposta não parecia certo. A postura de Georgi, meio voltada para trás, mãos nos bolsos da calça reformada por ele próprio, denunciavam o desconforto e desconfiança de quem preparava-se para bater ou correr. Denunciava também um parentesco que o advogado conhecia bem.

“Como quiser, me deixe apenas avisar minha namorada.”

Para levar Georgi a uma confeitaria daquelas, onde a fatia do bolo era cobrado por peso e cada nova xícara de chá preenchida somava um valor diferente, o patrocínio deveria ser grande. Ele nem imaginava qual seria a oferta de Drozdov, mas já sentia palpitações demais com a responsabilidade que seria ter de pensar tanto tão cedo.

“Tem certeza de que não quer nada para acompanhar o chá?” Generoso, Edik ainda tinha o cardápio em mãos.

“Não, senhor, eu agradeço, mas já comi antes de vir.”

“Oh sim, a dieta dos atletas, quase me esqueci disso…” Deixando as opções de lado, ele procurou por mais papéis na pasta repousada no assento ao lado. Georgi percebeu que o advogado não conseguia ficar muito tempo sem ter as mãos ocupadas. “Gosto muito de vir aqui quando estou em São Petersburgo, foi um amigo que me apresentou, ele também é advogado,” não parecendo direcionar as informações de fato a Georgi, Edik continuou falando enquanto corria com os dedos pelas divisórias de couro. “O nome dele é Anton Kolyada, inclusive, tem residência aqui, caso precise dos serviços dele um dia. Sinceramente, espero que prefira os meus,” brincou, finalmente retirando o que tanto procurava, um processo capaz de apagar o sorriso empolgado de Edik, pesado em todas as suas cláusulas.

Aquilo não era um patrocínio.

Compreendendo o rapaz com apenas um olhar — tão parecido com seu cliente, chegava a ser assustador —, Drozdov respirou fundo e bateu com o bloco sobre o tampo, alinhando todas as bordas antes de estender o testamento. Mal havia ele desfrutado do bolo confeitado e o amargor da situação estragava seu momento de contemplação açucarada.

Testamento. A palavra era difícil, quase desconhecida, quando não existia um contexto. O nome de Popovich estava ali, linhas preenchendo de ponta a ponta a primeira página que o nomeava como beneficiário de algum imóvel que ele não leu, mas que somava zeros demais para Georgi saber ler aquele valor em voz alta. Não era nada falso, havia legitimidade na textura diferenciada do papel, no reconhecimento em cartório, a chancela no canto da primeira folha… Mas de onde? E quem lhe entregaria tudo aquilo de graça?

A assinatura de Oleg na última página parecia até uma piada.

Em um automático reflexo agressivo, Georgi jogou o processo sobre a mesa, causando um pequeno incidente com os talheres, por pouco não derramando o açúcar.

“Qual o significado disso?”

Havia raiva. Muita raiva. A pergunta chiada saída entredentes, toda a força daquela revolta mordida pelos molares. Ainda bem que Edik escolhera um local público.

“Não.” Desistindo da ideia de obter explicações, Georgi afastou a cadeira e se ergueu. “Eu não quero saber. E não precisa voltar a me procurar.”

Sem tempo de recorrer, retrucar, ou qualquer outra expressão de meio jurídico usada para tirá-lo daquele baque, Drozdov recostou-se sem jeito na cadeira, sentindo ter saído derrotado do caso mais difícil de sua vida, um que não durara nem quinze minutos. Devia ser algum tipo muito vergonhoso de recorde.

Ele imaginava como diria aquilo a Oleg, de que Georgi havia saído teimoso e arredio igual ao pai.

.:.

A desculpa inventada por Georgi para Anya, foi de que a proposta de Drozdov era irresponsável e digna de processo. Revoltado, criou condições inimagináveis, jogando sua raiva acumulada desde o dia anterior naquela mentira. O sentimento negativo, pelo jeito, havia sido bem convincente, pois Pavlova não tocou mais no assunto depois de somar sua indignação ao do namorado.

Foi graças ao trabalho, duplamente mais intenso devido aos ensaios em dupla, às novas turmas e agora a instalação dos patinadores recém-aprovados para a nova turma de Yakov, que Georgi conseguiu se distrair do contato com Edik. Agarrando-se ao pingente cada vez que crescia o conflito, Georgi buscava dentro da jóia as únicas imagens que conseguiam trazer paz ao seu coração, a foto da mãe e de Anya.

“Georgi!” Chamado por Irina no meio de um aquecimento, Popovich se viu patinar até a treinadora sem sequer questionar o chamado. “Estão te chamando na recepção.” Para uma pessoa que atendia prontamente a qualquer pedido dentro do ambiente de trabalho, foi engraçado para ela ver Georgi parar no meio do caminho, tropeçando no nada. “Tá devendo alguma coisa, Popovich?” riu Lagutina, abrindo espaço para o patinador passar. “É Nikolai Plisetsky quem te espera.”

Ouvir o nome do bom senhor fez Georgi voltar a abrir um sorriso. Mais do que trazer Yuri, ele vinha trazer as coisas de Margosha.

Empolgado em rever Nikolai, Georgi não conteve sua criança interior ao abraçar Plisetsky, escondendo o senhor em seus braços. Ouvindo-o rir abafado, preso em toda sua altura, encheu seu coração daquele sentimento bom e brilhante que só Nikolai conseguia passar. Se Yakov soubesse, morreria de ciúmes.

Houve cumprimentos, palavras trocadas que Georgi já nem lembrava mais, tudo isso porque sua mente não conseguia lidar com mais nada depois de seus olhos registrarem a antiga e desbotada caixa de madeira.

Do pouco que guardava na memória, aquela caixa era mais bonita, com o dobro de desenhos e enfeites, uma relíquia decorada com capricho por suas mãozinhas infantis. Ele podia ver que o único capricho dela foi a letra da mãe, uma sombra do tom arroxeado usado no passado. Sorrindo para todos os objetos vistos por cima, Georgi decidiu não voltar mais a treinar naquele dia.

Quando criança, aquela costumava ser sua fonte dos tesouros. A lembrança, uma saudade boa e ao mesmo tempo triste, o deteu tempo o bastante para admirar todos os defeitos e farpas daquela que nada mais era que uma caixa de feira cedida por Nikolai e lixada por ele próprio. Aquela caixa continuava sendo melhor que qualquer outra feita pelas mãos do melhor marceneiro de todo o mundo.

O primeiro item retirado da caixa, escolhido de forma aleatória, foi um livro que pelo tempo de guardado e a umidade constante, trouxe consigo outros três exemplares, todos meio mofados e com as páginas amareladas apresentando leves ondulações. Georgi riu alto quando reconheceu os títulos de O Patinho Feio, João e Maria e o preferido de Minako, O Quebra-Nozes. Um amontoado de cartões postais somavam-se em um único bloco, alguns históricos da época da União que deveriam valer alguma coisa, além de alguns cadernos cheios de rabiscos incompreensíveis para seus olhos adultos, mas que para seu eu infantil deveriam ter feito algum sentido. E que enfeite era aquele? Uma bailarina transparente de detalhes brancos e brilhos ofuscados pelo tempo, presa por um fio prateado, um enfeite natalino. Aquilo era mesmo de Georgi? Ele não se lembrava de ter possuído nada parecido com aquele objeto.

Pelo menos, não como ele se lembrava da fita cassete.

Preferindo deixar aquela lembrança de lado, Georgi puxou alguns envelopes fragilizados pela ação do tempo e álbuns de capas cartonadas para descobrir o que mais Nikolai trouxera naquela caixa, esperando ver alguma foto sua muito constrangedora com poucos meses de idade ou alguma fantasia temática ridícula. Mães russas tinham um talento aprimorado para o vexame de sua prole — e ele não estava errado. Orelhas pontudas costuradas em uma touca verde? Aquilo parecia uma cópia mal feita do Natal capitalista, como a URSS deixou suas crianças serem expostas àquele tipo cafona de influência ianque?

Se a moda que enfeitava os álbuns infantis era condenável, ver Margosha, tão jovem junto a ele naquele jardim encantado de baixo orçamento, fez da foto a mais encantadora de qualquer universo fantástico. A verdade, é que os olhos de Georgi, devotos à mãe, nunca o deixaram vê-la como nada menos que forte. Para suas impressões inocentes, Margosha era incansável, imparável, forte e cheia de energia, a mais rápida e forte do mundo inteiro — quando seu mundo ainda era apenas a Rússia. Nunca lhe passou pela cabeça que ela tinha a sua idade quando trouxe o filho ao mundo, sem amparo do pai, sem apoio de Oleg. Georgi não sabia os detalhes, Yakov evitava o assunto, assombrado pela culpa, e insistir não era uma opção. Contudo, notá-la naquela foto tão menos radiante quanto normalmente era, o fazia pensar em tudo que a levou a fazer as malas com o filho pequeno e fugir para Moscou. Foi ela quem fugira antes, não? Georgi se lembrava de Margosha falar algo do tipo.

A foto seguinte, talvez a favorita de Georgi e ele nem precisava ver as demais para saber disso, tinha Margosha ocupando uma das máquinas de costura ao lado de outras costureiras no Bolshoi, provavelmente seu primeiro dia no teatro que faria sua carreira. Ter Lilia posando ao fundo junto ao corpo de baile o fazia ter uma ideia dos contatos feitos até Popovevna chegar ali.

Registros de Georgi em todas as etapas de sua curta infância em Moscou, Yulia crescendo em frente a câmera, Minako sustentando um arabesque enquanto o segurava em seu colo, íntimas festas do Bolshoi onde ele compareceu sem faltar, colos diversos oferecidos por todos os entusiastas do filho de Margosha, embora não pudesse lembrar de nenhuma daquelas histórias ali contadas. Sem se dar conta de quando aconteceu, Georgi começou a chorar. Que vida maravilhosa havia sido aquela.

Trocando o pequeno álbum pelo envelope gasto, ele se perguntava o que mais do passado Nikolai trouxera. Podia se emocionar mais?

Podia. Ele podia, sim.

Há quem dissesse nos corredores das turmas mais jovens, que uma foto de Yakov com cabelo era raridade, isso se ele um dia teve alguma mecha no topo da careca. Vendo uma foto como aquela, Georgi diria que a maior raridade era vê-lo sorrir de forma tão espontânea — e com todos os cabelos na cabeça. No que deveria ser dezembro de 1965, Yakov aparecia de frente para uma pesada mesa de madeira, modelo mais soviético impossível, com direito a gavetas laterais e cadeiras sem combinação compondo o resto do jogo, com Margosha no colo, de frente para o que deveria ser um bolo de aniversário. O registro meio desfocado denunciava que seu avô provavelmente estava saltitando com a filha no colo e a risada da bebê rechonchuda mostrava quão contente ela estava com a brincadeira.

A seguinte foto era frágil e porosa; não foi imediatamente que Georgi notou estar segurando um recorte de jornal, cujo a data indicava as Olimpíadas de Inverno de 68. Ele não sabia qual devia ser a chamada daquela foto, mas era muito engraçado — e bonito — ver o contraste da seriedade de Yakov encarando a pista, provavelmente analisando a apresentação de um dos patinadores soviéticos da época, com Margosha novamente em seus braços, vestida em babadinhos mil e exibindo as mãozinhas abertas, prestes a aplaudir o competidor. Georgi daria tudo para saber como era aquela relação pai e filha antes… Bem, antes dele. Não era possível ignorar ter participação, embora indireta, naquela quebra de laço familiar.

Pensando em si mesmo como a lâmina do rompimento entre pai e filha, pareceu atrair uma foto tão inesperada quanto as anteriores, onde Margosha, com os cabelos compridos além da altura dos ombros, sorria entre agulhas e retalhos dos tecidos que amava. O vestido usado por ela, um modelo simples que pouco passava os joelhos dobrados, era folgado, porém não o suficiente para disfarçar o formato arredondado da barriga. Era uma foto de Margosha grávida! E, emocionava a Georgi pensar assim, mas era a primeira foto que ele tinha junto a mãe!

Depois daquelas doces demonstrações parentais, a próxima imagem pegou todos os pontos soltos na cabeça de Georgi e terminou de dar um grande e indecifrável nó ao apresentar uma fotografia mal enquadrada de Yakov, Lilia repousada no que parecia uma maca de hospital, Margosha, e um pequeno embrulho preto e branco deitado entre Baranovskaya e um travesseiro. Um bebê?

Outra foto veio a confirmar o que com muito custo Popovich tentava acreditar. Sentados um ao lado do outro, Yakov, Lilia e Margosha compunham aquele registro de família, com o bebêzinho bem mais visível, o rostinho enrugado e amassado comum de todos os recém-nascidos. Aquele era para ser um filho ou filha de Lilia e Yakov? Por que Georgi nunca ouvira a respeito daquela criança?

O conteúdo seguinte não respondeu a dúvida, mas mostrou o que Popovich muito ouviu ao longo de sua vida, a afirmação de que Feltsman sempre teve Oleg Nikiforov no seio de sua família; sentado, em uma das pontas de um estreito sofá de dois lugares, Nikiforov sorria como Victor costumava sorrir em aeroportos e locais públicos nos quais era descoberto, com a moda dos anos 80 subindo até o pescoço com uma gola rolê escura, um dos maiores movimentos fashion da época. Na outra ponta, próxima demais de Oleg do que Georgi gostava de admitir, estava Margosha, vestindo outro item indispensável no guarda-roupa feminino da década que antecedeu a queda da URSS, um macacão jeans em conjunto com uma blusa de lã colorida e muito listrada, certamente um feito de sua mãe. E, entre eles, um menininho sorridente demais para ser filho de Lilia e Yakov, mas muito parecido com ambos para poder ser cria de qualquer outra pessoa. De olhinhos sonolentos e o cabelo batendo na altura do pescoço, a criança abraçava uma bola de futebol. Tantos mistérios em uma só imagem, uma das poucas coloridas em todo o arsenal fotográfico.

De repente, como se tivesse a dica soprada em seu ouvido, Georgi lembrou já ter visto aquele sorriso da mãe em algum lugar. Segurando Nana enquanto tentava raciocinar sua caça aos tesouros esquecidos, sentiu o relicário abrir-se, tendo o click da jóia feito o mesmo com sua mente: era a mesma foto de Margosha que Georgi levava no pingente.

Exausto daquela maratona emocional, Georgi deixou todas aquelas fotos e quinquilharias antigas de lado e respirou fundo, aproveitando para fechar os olhos, não percebendo dormir quando queria apenas descansar. Sem se dar conta de estar navegando entre o mundo dos sonhos, ele viveu e reviveu de forma destorcida tantas situações, para no final, acordar com a certeza do que sabia desde sempre — naquela atual situação, Oleg era o único que podia lhe contar sobre Margosha.

Por sorte Georgi ainda tinha guardado o contato de Edik Drozdov.

.:.

O prédio onde Edik levou Georgi era uma construção antiga, mas bem preservada. O patinador não conhecia muito bem aquela altura da cidade, bairro de poder aquisitivo um pouco distante do que Popovich podia pagar, mas não tão alta assim para ele imaginar Oleg ali vivendo. Diferente da maioria dos prédios que compunham o cenário de São Petersburgo, altos e cheios de andares, aquele não passava de uma dezena, tornando-o mais um ponto escondido entre as demais estruturas arquitetônicas. Era estranho e igualmente curioso perceber que, fosse com muito, fosse com pouco, Oleg Nikiforov sabia bem como se esconder.

Drozdov apertou os números correspondentes ao apartamento de Oleg e aguardou até que o ex-patinador liberasse a entrada. Quando conseguiu ouvir a porta principal abrindo, ele fingiu não perceber Georgi abraçando a caixa com mais força.

O andar era o sexto e alguma coisa naquele número chamava atenção, embora Georgi não se lembrasse exatamente o porquê. Era tudo tão novo para ele, pisos bem cuidados, cabines cromadas e espelhadas de elevador com botões iluminados e todas as lâmpadas funcionando. Se Anya visse aquele lugar, nada a faria desconsiderar viver naquele lugar, nem que fosse no corredor.

“O apartamento é o sessenta e quatro,” avisou o advogado, segurando a porta do elevador. Se fosse no apartamento onde Georgi vivia com a namorada, aquilo seria um pouco arriscado. “Ele costuma deixar a porta aberta.”

“Não entrarei lá sozinho.” Atento, Popovich não deu tempo para Drozdov deixá-lo sem opções.

“Rapaz, eu não tenho nada que mediar essa conversa. Eu só cuido de papéis.” Acostumado em lidar com Oleg, foi fácil usar aquelas palavras com Georgi. E Nikiforov ainda insistia em dizer que o menino era igual a mãe. “Você já está aqui.”

“Mas o que ele dirá se me ver sem você?” Procurando disfarçar a preocupação, ele continuou tentando.

“Eu não havia avisado a Oleg que traria você comigo.” Uma vida lidando com um Nikiforov ensinava algumas artimanhas. Divertir-se com os sentimentos que o inesperado causava nas pessoas era o tipo de maldade quase inofensiva que se conquistava por osmose. “Não precisa ter medo, Georgi Popovich. Se alguma coisa der errado, você pode sair da mesma forma que entrou.”

Georgi não soube responder aquilo que não entendia ser um conselho ou uma piada, e assistiu as portas se fecharem por completo, restando apenas seu reflexo disforme no cromado escovado. Anya também iria gostar daquele tipo de detalhe.

Parado no corredor, Georgi conseguia ouvir discretos sinais de vida vindos de outros apartamentos, programas de televisão, um rádio sintonizado em alguma transmissão política, risadas de crianças, um liquidificador funcionando… Diferente de como se sentia, ele não estava sozinho naquele lugar, mas de que adiantava? O embate seria feito sem apoio ou testemunhas. Seria melhor ter contado à Anya? Avisado Yakov? Quando se deu conta, já estava tocando a campainha da porta 64.

De dentro do apartamento, a voz de Oleg falou um “entre” informal, restando a Georgi tomar coragem para girar a maçaneta. Ele não estava preparado para encarar Oleg e tinha certeza que Nikiforov também não estava, do contrário, não teria mandado um porta-voz para informar tê-lo como beneficiado em um testamento milionário.

Abrindo a porta com o máximo de discrição possível, Georgi tomou cuidado para não derrubar a caixa, o que provavelmente levou mais tempo do que ele imaginou a princípio, o bastante para que Oleg, deitado no chão ao lado do sofá, erguesse a cabeça para ver Popovich meio escondido atrás do batente. Ah, Drozdov…

“Me desculpe vir sem me pronunciar, seu advogado não tinha me avisado.”

“Não ligue para ele, os anos me atendendo acabaram o afetando.” Fazendo de si mesmo uma piada sem fundo humorístico, Oleg decidiu se erguer — com dificuldade — do piso de madeira. Georgi não sabia se oferecia ou não ajuda, paralisado diante de uma imagem que jamais imaginou ser capaz de testemunhar. Nikiforov parecia humilhado sendo visto daquela forma, de cima, inferior aos olhos apiedados de Popovich. Que situação… “Bem, seja bem-vindo.” Finalmente sentado no sofá, ofegante como em um fim de programa livre, Oleg apontou para o assento ao lado, oferecendo-o a Georgi. “Por favor, acomode-se.”

Incerto entre ficar ou não ao lado de Oleg, Georgi olhou ao redor, buscando alguma poltrona, cadeira ou caixote que pudesse ser feito de assento. Nada. O apartamento estava ligeiramente bagunçado com o que parecia ser uma mudança interrompida pela metade. Restava, mesmo, apenas o sofá.

Os dois pares de olhos azuis se encontraram e Georgi percebeu que aqueles dois anos passados não fizeram bem a Oleg. Até Yakov havia envelhecido melhor.

“Você não veio por causa do testamento.”

“Não.” Com a caixa garantindo a mínima distância entre os dois, Georgi decidiu falar logo a principal e única razão em estar ali. “Eu quero ouvir sobre a minha mãe.”

De todos os motivos imaginados por Oleg, aquela opção jamais entraria na lista. Por que Georgi procuraria logo ele para conversar sobre Margosha quando ele tinha o avô para lhe contar todos os pormenores de Popovevna?

“Yakov sempre evitou conversar comigo sobre o passado, principalmente depois do incêndio,” murmurou ele, encarando a caixa. É, Oleg devia ter imaginado algo como aquilo. “E recentemente eu recuperei alguns pertences dela, algumas fotos que levantam mais dúvidas do que as soluciona. Eu só queria entender mais sobre a minha mãe. Até Victor sabe sobre a dele e eu-”

Popovich parou de falar quando percebeu a comparação infeliz. Narkissa havia sido enterrada uma segunda vez desde que Osipov havia revelado da pior forma possível a maternidade indesejada de Smirnova.

“Claro.” Sem ter como discordar — e não desejando tal coisa —, Oleg se ajeitou no sofá de modelo ultrapassado, afundando no estofado antigo. “O que deseja saber?”

“Tudo que for possível, por favor.” Por favor. Georgi não devia estar pedindo nada, mas não conseguia evitar. “Eu encontrei essas fotos, aqui!” Entregando a foto do primeiro aniversário de Margosha e o recorte de jornal de 1968, Georgi esperava ansioso.

Com cuidado, Oleg pegou as duas imagens e somente quando o fez Georgi conseguiu notar a deformidade na ponta dos dedos de Nikiforov. O quê-?

“Eu não me lembrava que essa mesa era tão velha assim,” observou ele divertido, apontando para o móvel onde o bolo de aniversário de Margosha era protagonista. Demorando-se ao analisar a fotografia e para os raros sorrisos ali eternizados, ele também sorriu, feito ainda mais raro. “Bonitinha.”

Bonitinha. Por algum motivo o elogio feito a Margosha não ofendeu Georgi.

“Seu avô te contou como ele acabou adotando sua mãe?” Sem usar de palavras, Popovich apenas negou. “Yakov era o talento que a União Soviética não podia esconder. E acredite, eles esconderam muitas de suas estrelas.”

“Por qual motivo?” Georgi não conseguia entender porque logo na época do regime soviético o governo que tanto desejava sobressair-se ao mundo, negou holofote a quem podia fazê-lo.

“Despeito, principalmente. Seu avô tem ascendência alemã e o tio-avô dele desafiou a censura ao ministrar missas clandestinas em Moscou, por isso Yakov e o tio-avô, Alfonse, vieram fugidos para cá, quando ele ainda era criança.” A surpresa de Georgi o calou por completo. “Mas, como eu disse, seu avô era uma estrela incapaz de ser ofuscada. Yakov foi o melhor patinador de sua geração e isso a nível mundial, até os jornais americanos o adoravam. Eu me lembro muito pouco daquela época além dos programas que passavam na televisão, mas o que mais se ouvia sobre ele nas ruas era uma admiração disfarçada de assombro, assim como críticas sobre ele “se vender demais aos ianques”, como principalmente meu tio gostava de dizer. Yakov era fotogênico nas transmissões ao vivo, simpático para a plateia e bateu Yuri Gagarin quanto ao sorriso mais fotografado dos anos sessenta,” riu, lembrando de como aquele comentário feito por Baranovskaya costumava deixar o ex-marido envergonhado. “Sem saída, tiveram que colocá-lo entre os patinadores que representariam a União Soviética nas Olimpíadas de Inverno de 1964. Ninguém nunca havia conquistado um ouro de forma tão brilhante até aquele dia.”

“Mas o que isso tem a ver com a minha mãe?”

“Bom, o ouro teve um custo. Yakov havia se machucado já no programa curto, mas abandonar a competição àquela altura era inviável para ele e para a equipe, então ele foi obrigado a competir mesmo com o tornozelo fraturado. Nós dois sabemos como uma fratura negligenciada pode afetar um patinador.”

“Foi por isso que ele se aposentou?” Georgi sabia que após a vitória olímpica, seu avô passou de competidor a técnico, mas aquelas circunstâncias eram inacreditáveis.

“Forçado a uma aposentadoria, você quer dizer. Eu não consigo imaginar nenhuma outra razão que não seja proposital para eles terem praticamente obrigado Yakov a competir naquele estado.” Indignado com o passado, Oleg respirou fundo, percebendo somente naquele momento ter se desencostado do sofá e avançado com o tronco para frente, como se os responsáveis por aquela manipulação esportiva tivessem acabado de entrar pela porta. “Depois daquilo, Yakov passou por tratamentos e fisioterapia, mas ficou claro que não seria mais o mesmo, então restou para ele aceitar mudar de área. E no final daquele mesmo ano, logo no dia 25 de dezembro, uma data tão especial ao padre Alfonse, Yakov encontrou sua mãe dentro de uma caixa de papelão, abandonada em frente ao apartamento comunitário onde vivia.” Os olhos de Georgi estavam arregalados para aquela história. Ele sabia da adoção e sabia que ela havia acontecido de forma relâmpago, um encontro inusitado que resultou naquela família tão diferente do convencional, mas aquela história era muito mais emocionante do que previra. “Seu avô contando deixa a história mais bonita, eu juro. Mas, basicamente, ele perdeu tudo no começo do ano de 64 e voltou a recuperar tudo no final, de forma um pouco diferente.”

“Quantos anos ele tinha quando adotou minha mãe? Descobriram quem havia abandonado ela?”

“Yakov tinha dezenove anos e não, ninguém viu quando a colocaram na caixa. Foi um dia muito rigoroso de inverno e Yakov foi o único que saiu para trabalhar.”

“Foi o destino!” Emocionado, Georgi acreditava naquilo com todas as fibras de seu ser.

“Ou uma bênção divina, como o velho padre Alfonse gostava de acreditar.” O tio-avô de Yakov podia ser bem irritante quanto à religião, mas Oleg guardava boas memórias daquele rosto emburrado. “Decidiram que o aniversário dela seria o dia que Yakov a encontrou, já que pela avaliação de uma enfermeira que dividia o apartamento comunitário com eles, Margosha devia ter entre dois e três meses de idade.”

“Ninguém buscou por ela depois?”

“Se alguém o fez, ninguém naquele prédio tentou ajudar.”

Era doloroso e até mesmo cruel pensar que toda uma comunidade de uniu para esconder a localização de Margosha, porém também emocionava aquela proteção coletiva que não deixou pai e filha perderem um ao outro. Qual lado era o mais certo?

“Abandonos eram comuns naquela época, não se sinta mal. Uma criança foi deixada mal agasalhada em um inverno de temperatura negativa, não acho que estavam muito preocupados em mantê-la por perto.” Aquela reflexão calou ambos, cada qual pensativo com aquela perspectiva. A vida humana sempre foi tão frágil e descartável, assim? Georgi parou de pensar nisso quando percebeu os lábios finos de Oleg exibirem um sorriso mínimo, saudoso; “Yakov costumava dizer, sempre que relembrava essa história, que “ela era pequena, pálida e redonda como uma bolinha, uma pérola”.”

Margosha.” Eis o significado do nome de Popovevna, uma criança entre a neve, uma joia abrilhantando o nada.

“Exatamente.” Embora não tivesse presenciado tal acontecimento, lembrar daquela história o deixava nostálgico. “E eles nunca mais se separaram depois disso. Quero dizer, acontecia de vez em quando, principalmente depois que ela passou a ir para a escola, mas enquanto era criança, Yakov a levava em todas as aulas, competições, ensaios... Não existia quem não conhecesse Margosha naquela escola e muita gente rondou tanto Yakov quanto sua mãe para o meio artístico. Felizmente, ela só se interessava por agulhas.” O sorriso de Oleg parecia brincalhão e aliviado ao mesmo tempo.

“Yakov nunca quis que minha mãe seguisse o “ramo da família” ou algo do tipo?”

“Ninguém que conhece esse meio quer,” afirmou Oleg, ciente de todas as sujeiras que o mundo artístico manipulava, independente de qual fosse. Ele sabia bem, havia sofrido e causado muita coisa.

“E quando exatamente vocês se conheceram?”

Georgi vislumbrou certa surpresa por trás dos olhos azuis de Oleg, mas ambos fingiram não ter notado.

“Eu tinha dez anos na época. Fugi do meu tio para tentar patinar um pouco, mas eu não tinha patins, nem dinheiro para pagar o aluguel de um, só uma bala de canela grudenta,” lembrou. “Mas Yakov Feltsman estava lá patinando e apenas uma menininha sentada na arquibancada fazia plateia a ele, então pensei que não seria uma má ideia me sentar ao lado dela. Não me lembro bem porque, acho que pensei que aquela devia ser uma boa altura para vê-lo, sabe? Eu sempre- sempre quis ser como Yakov Feltsman.” Assumir aquilo depois de tanto tempo não feria seu orgulho como imaginava, mas machucava os sonhos que um dia foram do seu eu infantil. “Me aproximei em silêncio para não atrapalhar, sua mãe olhou para mim e sorriu, eu sorri de volta, ofereci a bala velha que tinha no bolso e acho que ela entendeu isso como uma oferta de amizade, porque aceitou prontamente, colocou o doce inteiro dentro da boca enquanto apontava para o gelo e dizia de forma meio babada que aquele era o pai dela.” Georgi ria ao imaginar tal cena. Sua mãe devia ser tão adorável quando criança, ele queria ser capaz de viajar no tempo apenas para pegá-la no colo. “Eu fiquei impressionado, acho que meu queixo não voltou a fechar até o dia seguinte. Achei tão incrível e tanta sorte esse tipo de parentesco com ele…”

Georgi também conhecia alguém tão iludido quanto Oleg quanto seu patinador preferido.

“Sempre ouvi que Yakov Feltsman havia se tornado uma pessoa ainda mais severa e rigorosa depois de se aposentar, mas lembro que senti uma certa sensação de felicidade, eu acho, ao vê-lo sorrir para Margosha quando ela chamou por ele.” O agridoce daquelas lembranças deformava suas feições. “Yakov continuava sendo um tipo de herói e eu o admirava muito por isso, principalmente quando ele veio em nossa direção, ou melhor dizendo, em direção a Margosha, e me cumprimentou, perguntando à filha quem era o novo amigo. Então eu me apresentei, ele fez algumas perguntas, arranjou um par de patins para sua mãe e eu, que tentei impressioná-lo ao executar alguns passos difíceis e terminei caído no chão.”

“Ele já gritava naquela época?” Oleg riu alto com a piada, o mesmo tipo de risada que tinha Victor.

“Bem alto, mas não, ele não gritou comigo por causa daquilo. Pelo contrário, Yakov estava bem calmo, me ajudou a levantar, perguntou se eu estava bem e me aconselhou a não ser tão afobado. Lembro de ter ficado contrariado e falar que queria logo ser um patinador. Acho que isso acabou o convencendo a me treinar.”

“E a minha mãe?” Georgi lembrou. Ela ainda era a principal razão daquela conversa.

“Ela gostou da ideia. Na época Margosha era muito pequena para ir a escola, então passava muito tempo sem a companhia de outras crianças quando acompanhava Yakov nas aulas. Como eu chegava mais cedo, procurava distraí-la com as balas de canela que eu pegava escondido do meu tio. Nós sempre acabávamos brincando de modista.” Foi a vez de Georgi rir. Aquilo era bem a cara de sua mãe. “E como meu tio, que era meu único responsável, não apoiava uma carreira artística, Yakov disse que meu pagamento a ele era cuidar de Margosha, então…” O olhar de Nikiforov pesou ao lembrar do parente com tanta clareza. “Tudo o que eu queria era me tornar famoso e abandoná-lo na sarjeta.” Surpreso com tamanho rancor, Georgi não conseguiu disfarçar a tempo o desconforto com aquelas palavras. “Ah- Bom, eu acho que tenho algo aqui que você vai gostar.”

Erguendo-se do sofá, Oleg mancou até uma das caixas abertas em cima do que parecia um móvel bem antigo, de desenho tão desatualizado que Georgi não sabia decifrar o que ele era.

“Esse apartamento funcionou como um depósito nos últimos anos, eu estava revirando as coisas aqui na última semana, até achar essas velharias, aqui.” Sentindo-se convidado pelo comentário, Popovich deixou o sofá, trazendo a caixa consigo. “Olha só essa foto, consegue adivinhar quem é?”

De vestidinho enfeitado, tranças cheias de laço e patins nos pés, Margosha posava em meio a um jardim cheio de mato e poucas flores, sorrindo para o câmera. A escolha do cenário era inusitada, provocando risadas da mais pura vergonha alheia, e lágrimas de uma saudade que voltava a doer de forma aguda.

“Yakov decidiu um dia que iria tirar fotos de Margosha para o álbum da família, tirou a câmera fotográfica de dentro da geladeira quebrada e fez um book do lado de fora do prédio.” Oleg ainda se lembrava da própria indignação com aquele dia. “E sua mãe se empolgou com a ideia, trocando de vestido umas três vezes.” Ela era mesmo igual ao pai, com lapsos de ideias aleatórias que rendiam situações vergonhosas como aquelas. Pelo sorriso de Georgi, ele também havia puxado aquele traço da família Feltsman.

“Tem mais fotos como essa?”

“Eu acho que sua mãe tinha guardado alguns álbuns mais ao fundo dessa caixa.” Ajudando a tirar os objetos aleatórios da parte de cima da fragilizada caixa de papelão, ambos tiraram o que parecia ser um grande álbum de capa clara, porém manchada pelo tempo de guardado. Era diferente dos pequenos e frágeis álbuns que Georgi trazia dentro da caixa de madeira.

Georgi abriu a primeira página para se deparar com um texto escrito pela caligrafia de Yakov, o cirílico cursivo que dificilmente se via, narrando em forma de ficha os dados da filha: Margosha Yakovna Popovevna-Feltsman, filha de pai: Yakov Feltsman e mãe desconhecida, nascida em Leningrado aos vinte e cinco dias do mês de dezembro do ano de 1964. Logo abaixo das informações tão caprichadas, com desenhos cursivos formando uma borda emoldurada, os pés rechonchudos de Margosha haviam sido carimbados em azul e uma foto da bebê adormecida finalizava a primeira página. Se ele quisesse levar aquele álbum ao avô, Oleg permitiria?

A página seguinte trazia Margosha um pouco mais velha, o suficiente para conseguir ficar em pé, apoiada em um pedaço descascado de parede, ao lado de um sofá velho. Embaixo da foto, os dizeres “Margosha, primeiros passos, outubro de 1965.”

“Está meio fora de ordem, pelo jeito,” observou Oleg, voz baixa para não estragar o momento de Georgi, sorrindo para a foto da mãe. Com a ponta dos dedos, ele tocou as botinhas escuras, contornou o macacão de lã e parou nos cachinhos negros, presos por grampos que a coloração preta e branca não permitia ver. “Acho que Yakov foi revelando os filmes conforme podia.”

“Não tem problema.”

Páginas foram viradas e com elas, mais da história oculta de Margosha veio, em maioria, fotos dela dormindo de todos os ângulos possíveis. As raras capturas de Yakov dormindo com a filha deitada sobre si eram relíquias que ele faria questão de emoldurar.

Cercada pelos poucos brinquedos, uma Margosha distraída demais para perceber o momento fotográfico, envolvia um urso de pelúcia em uma faixa de gaze, provavelmente idealizando ali algum tipo de roupa. O ano era 1971.

No mesmo ano, ela apareceu sorrindo em frente a um portão de escola. Quem não sorria era Yakov, inconformado em ter de abandonar a filha naquele primeiro dia de aula.

Em janeiro de 1972, outro sorriso somava-se à foto de Margosha, uma em que Oleg e a menina dividiam um cobertor enquanto a tela chiada da televisão do vizinho de comuna brilhava ao fundo. Já a outra registrava ambos patinando em uma pista pública de mãos dadas. Nikiforov não comentou nada sobre isso, até uma foto onde um Oleg adolescente aparecia muito emburrado em companhia de Yakov e Margosha, destoou das demais.

“Foi quando eu comecei a competir com a mãe do Victor,” explicou o mais resumidamente possível.

“Já se conheciam antes?” Aquilo fugia do que Georgi queria saber sobre a mãe, mas lembrar de repente do que Aleksandr havia dito há dois anos fez nascer uma estranha sensação vazia de que talvez Victor não soubesse tanto assim sobre a mãe como haviam cogitado.

“Todo mundo conhecia Smirnova.” Pelo tom, as lembranças não eram boas. “O nome da família era influente, o governo a protegia e usava sua imagem para representar a União, tipo uma Shirley Temple soviética. Ela se destacava muito nas competições júnior, mas é claro que metade do bom desempenho era negociado antes com alguns dos jurados.” Aquilo não era novidade se tratando de Rússia. “Quando perceberam que uma dupla polonesa estava roubando atenção das demais categorias, decidiram colocá-la para competir nessa categoria também, mas ela não gostou muito.” Virando a página por conta própria, Oleg descobriu uma foto de Popovevna feita em estúdio, datando de 1975. “Nem eu gostei da ideia de dividir espaço com Smirnova, mas era uma oferta tentadora, uma quantia que entraria mensalmente, valor que nem com um ano inteiro de apresentações eu conseguiria juntar.”

“Você se vendeu.” Georgi não se mostrava muito arrependido daquela acusação.

“Se você não fosse neto de quem é, eu me indignaria com essas palavras.” Contrariado, Oleg continuou a virar páginas, reencontrando uma foto que ele não imaginava ainda existir.

Deitada no sofá de dois lugares, o mesmo sofá que ilustrava a foto que Georgi encontrou entre os pertences da mãe, Margosha dormia como se os lençóis bordados e a fronha de babados do travesseiro tornasse aquele móvel a mais confortável das camas. No chão, ao lado do sofá, Oleg também dormia, o braço dobrado sobre os olhos, pés feridos para fora do lençol fino. Não havia nenhuma data embaixo da fotografia, mas pelo tamanho das duas crianças, havia sido antes de tudo desandar.

“Nem sempre meu tio me buscava após as aulas,” explicou Oleg. “Passei mais tempo ocupando espaço na família Feltsman do que tendo um lugar na minha.”

“Eu sinto a mesma coisa.”

A reflexão de Oleg fez Georgi perceber que também ele acabou crescendo forçado em um lar que não o pertencia do que com sua família de fato. A expressão vaga de Nikiforov não dava brechas para que ele pudesse entender o que se passava em sua mente.

Também fora de sequência, mais fotos enfeitavam as páginas seguintes, todas coloridas e referentes ao casamento de Lilia e Yakov. A pose padrão para o casal tinha um fundo em lençol pintado, parecido com o tipo de cenário usurpado do Kirov, um arco rodeado de flores, provavelmente pertencente à montagem de A Bela Adormecida. Trajada de bege do véu na cabeça aos pés cobertos pelo que muito assemelhava-se a um figurino de balé, Lilia parecia pronta para entrar no palco, séria, pescoço esguio, ombros baixos cobertos apenas por um bolero rendado. Se Georgi não estava enganado, aquele era o figurino de La Sylphide.

O terno de Yakov, com certeza era um empréstimo feito aqui e acolá que resultou em uma combinação destoante de calça bege e paletó marinho. Um escândalo para a época passada e a atual, não existia muita pompa no casal que deve ter chocado quem os viu tão diferente do branco puro e sapatos novos. O buquê da noiva, principalmente, composto por diferentes tipos de flores, terminava de ferir o padrão de casal modelo. Yakov parecia provocar de propósito a ira soviética sobre si. Georgi não podia dizer que não amava o inusitado daquele casamento.

No retrato seguinte do novo casal, Margosha fazia uma participação à frente dos noivos, trajando um leve e suave vestido lilás que a deixava tão lúdica quanto uma fada. Os cabelos negros, enfeitados por flores de tecido, estavam puxados e trançados para trás, uma provável interferência de Lilia. Aquela era outra imagem que ganharia uma moldura.

O último registro do casamento não tinha bem um clima cerimonial, sido feito na pista de gelo tão conhecida de Yakov e Oleg. Segurando a esposa no colo, ainda trajado como noivo, os sapatos engraxados de Feltsman foram substituídos por patins e por baixo das camadas de tule bege, as sapatilhas de ponta de Lilia apareciam com sutileza. Georgi havia amado aquela fotografia, o melhor dos dois mundos de cada um construindo um universo único.

“Eles parecem tão felizes,” admirou Georgi, corrigindo-se logo depois. “Quero dizer, dentro dessa inexpressão toda.”

“Eles estavam, sim,” garantiu, sorrindo de forma discreta, porém orgulhosa. “A ideia dessa foto foi minha, sabia?”

Georgi continuou olhando para aquelas imagens, em especial para a que levava Margosha entre o casal. Estava explicado o bom relacionamento que ela tinha com Lilia, um carinho cultivado desde a infância.

Até então, fotos de sua mãe em pouca idade preenchiam parcialmente as páginas antigas, de forma que quando Georgi virou a folha para ver Margosha bailando por um salão cheio de pares em valsa, ele precisou deter-se um momento para entender a cena. Aquela era mesmo a sua mãe? Onde ela havia conseguido aquele longo rosa-claro? O vestido clássico, como parecia o tema do baile, acompanhava o giro guiado pelo par de Popovevna, um rapaz de rosto borrado pelo provável movimento coreográfico. Felizmente, o tempo daquela foto havia parado o bastante para eternizar Margosha naquele registro sublime, quase encantado.

“Ela estava linda…” murmurou Georgi, tocado. O rosado do vestido logo começou a desfocar, culpa das lágrimas embaçando sua visão. O que ele não daria para ter visto aquela cena acontecer?

“Estava, sim.”

As imagens seguintes trouxeram Margosha como protagonista em quase todas e até naquelas em que não era o destaque, ela conseguia se fazer vista. Fotos em turma, entre pequenos grupos de amigos, patinando sozinha entre demais pessoas em espaços públicos, registros feitos de surpresa que conseguiram captar os sorrisos mais espontâneos e belos do mundo. Aquela era a sua mãe, a Margosha que Georgi levaria para sempre em sua mente e coração.

As páginas seguintes estavam desfalcadas de fotos, contendo apenas legendas que identificavam o conteúdo delas, como “Margosha e Minako, janeiro de 1980” — que pena não estar lá! —, mas seguiam uma ordem mais ou menos linear, onde era possível reconhecer o rosto de Margosha amadurecendo delicadamente e a família Feltsman suavizar o que os anos pesaram nas feições enrijecidas do casal Lilia e Yakov. Se Georgi não tivesse prestado muita atenção, não teria sido capaz de notar a barriga gestacional de Lilia, discreta demais graças ao porte físico e as roupas da época.

“Isso aqui foi cerca de três ou quatro dias antes de Pavel nascer,” explicou Oleg ao apontar para uma foto onde Margosha estava em frente a uma máquina de costura, rodeada de retalhos e linhas, o cansaço e sonolência evidentes nos olhos inchados, embora o sorriso para a câmera não deixasse seus lábios, congelados com doçura.

“Pavel?”

Em meio a toda aquela contemplação, Georgi quase deixou aquele nome desconhecido passar. Ele já tinha ouvido aquele nome antes, citado pela própria Margosha.

A atenção de Popovich deixou o álbum e focou em Nikiforov, que ainda se mantinha atento a foto, ao passado resgatado por ela. E então, dentre tantas memórias, a dor uniu suas sobrancelhas claras, e a felicidade elevou o canto de seus lábios. Saudade. Até Oleg Nikiforov sentia saudade de algo.

Sabendo o que vinha em seguida, Oleg virou outra página, onde fotos diversas de uma maternidade preenchiam as folhas de canto a canto. Lilia, envergonhada em ser alvo de clicks, escondia o rosto com uma das mãos, enquanto Yakov teve o rosto contorcido em desespero fotografado para a posteridade. O berçário, uma vitrine expondo bebês tão pequeninos e enrugadinhos de igual forma, aparecia mais de uma vez, uma tentativa em focar um daqueles rostinhos de joelho. Em meio a toda aquela busca, Margosha foi fotografada de perfil, olhos amorosos e sorriso idem, tocando com cuidado o vidro transparente, conseguindo ver de longe o responsável por todas aquelas fotos sem ordem específica. Então a última imagem finalmente conseguiu registrar o novo integrante da família; do outro lado do vidro, Yakov sustentava o maior sorriso que Georgi já vira, enquanto suas mãos e braços enormes seguravam um bebê tão pequeno que faziam o ex-patinador parecer ainda maior. Sorrindo em direção ao fotógrafo, Margosha era uma bagunça de lágrimas e risadas que emoção nenhuma saberia detalhar.

“O nosso Pasha…” no presente, os olhos de Oleg marejavam também. “O único filho que Yakov e Baranovskaya tiveram no casamento.”

Georgi já esperava ter suas suspeitas confirmadas, mas aquilo ainda impressionava e chocava. Quando ele ou qualquer outra pessoa olharia para o velho casal divorciado e imaginaria um elo maior os conectando? E já lhe doía imaginar o que havia acontecido ao pequenino…

“Foi uma bagunça quando esse menino nasceu,” lembrou Oleg, com um sorriso apertado. “Yakov estava gritando com todo mundo, deixou o apartamento aos berros, alguns vizinhos chegaram a pensar que era um alerta de incêndio,” junto a Georgi, ele começou a rir. “Baranovskaya queria matá-lo e o xingava enquanto tentava passar um batom. Eu estava tão preocupado arrumando a câmera e tentando fechar a porta ao mesmo tempo, que quase tranquei sua mãe dentro do apartamento.” Relembrar aquela madrugada congelante do começo de janeiro, o fazia sentir na pele tudo de novo. “Margosha foi a única que se lembrou de pegar a sacola com roupas. Yakov já estava esquentando o carro quando conseguimos alcançá-lo.”

“Eu queria poder ver isso, também.”

“Na hora foi aterrador, eram quase duas da manhã, estávamos em plena semana de feriado nacional, um breu branco que ocultava até a iluminação básica das ruas, não sei como aquela mulher conseguiu se manter tão calma, só sendo uma bruxa mesmo para tanto…” ainda olhando para a foto do bebezinho no colo do pai, Oleg sorria. “A um dado momento ela desistiu de ouvir Yakov gritando para todos se acalmarem a toda hora, sendo que só ele estava apavorado, e o mandou calar a boca. Ela fez tanta força para conseguir gritar mais alto que deve ter sido por causa da contração, mas isso era algo que apenas Margosha e eu cogitamos na época.”

“Ouvidos foram preservados até chegarem ao hospital?” Brincou Georgi, divertido com os relatos do passado.

“Tivemos uma baixa de alguns decibéis, mas todos chegamos bem.” Entrando na brincadeira, Oleg respondeu. “Na verdade o trajeto nem foi tão demorado quanto tínhamos imaginado, mas o desespero aumenta tudo…”

“Sei como é.”

“O parto também não demorou, acho que em menos de duas horas já tínhamos o pequeno Pasha entre nós. Foi Margosha quem costurou o macacão que ele usou para deixar o hospital.”

Talentosa e carinhosa desde menina. Sua mãe era mesmo uma jóia.

“O nome dele tinha a ver com Trinus, não é?”

“Oh sim, Stammi Vicino e tudo isso aí,” gesticulou, conseguindo ouvir a ária vindo à tona em seus ouvidos. “Conhece a ópera?”

“Não, mas Victor sim.”

Aquela semelhança de gostos entre Margosha e Victor ainda o feria e Oleg sabia exatamente o que ele sentia. Era como Nikiforov havia sido com Feltsman por muitos anos, quase uma vida.

“Foi Lilia quem conseguiu um par de ingressos para a apresentação no Kirov. Yakov não podia ir por causa das turmas extras que havia pegado no fim do ano e Lilia tinha ensaio até tarde, então eu acompanhei Margosha. Ficamos encantados com a apresentação, mas assim que vimos o público deixar o teatro aos poucos, percebemos que tinha algo de errado. Depois de anunciado o intervalo, os barítonos e sopranos não chegaram a voltar. Foi decepcionante não assistir o desfecho, sua mãe ficou profundamente triste, lembro do biquinho dela até hoje.”

“Do que se trata, afinal, essa história?” Georgi se esforçou para não trazer a tona sua pequena aversão à história tão pouco conhecida por ele. Só de lembrar Victor e Margosha empolgados ao dividir opiniões positivas e empolgadas sobre a história, o deixavam amargo.

Trinus é Viagem em latim. É do que fala a história. Nika, ou Niko, como na montagem que assistimos, era uma pessoa ávida por leitura e costumava viajar pelos seus livros. Era sempre repreendida pela mãe, que queria conseguir um bom casamento e achava que conhecimento demais na cabeça de uma mulher afastariam os pretendentes; já na versão que assistimos, era o pai dele que repreendia o filho por ser muito avoado com tantos livros, alheio à boas oportunidades matrimoniais, já que as moças que poderiam ter interesse nele, estavam se afastando, temendo a insensatez do rapaz. Nika, sonhadora como era, tinha certeza de que encontraria o amor de sua vida por causa dos livros e então, no meio de uma leitura, acaba sendo transportada para um tipo de festa cheia de personalidades da literatura mundial, deixando para compreensão do espectador se ela estava sonhando ou não. Na montagem do baile, ficou muito bonito. Margosha adorou a Rainha Titânia de Shakespeare dançando com Cyrano de Bergerac.”

“E onde entra Pavel nessa história?”

“Quando Nika, ou Niko, o vê entre os demais personagens, mas não o reconhece de livro nenhum. Pavel, parecendo tão surpreso e encantado quanto a protagonista, se aproxima, os dois se apresentam e ali nasce uma paixão relâmpago, que acaba quando Nika acorda em seu quarto, rodeada de livros. Ela entra em desespero, o busca nas páginas dos livros, mas não reconhece seu nome em nenhuma obra literária. É ali, naquela cena de caos emocional, que ela canta Stammi Vicino pela primeira vez. É também quando acabava o ato e entrava o intervalo.”

“Minha mãe não chegou a saber o final?”

“Não naquele dia. Ela ficou desolada. Levei um mês para conseguir o disco da apresentação.”

“Soube que a revolta acabou fazendo as gravações serem destruídas.”

“Eu tinha alguns contatos.” Não era algo do qual ele se envergonhasse. “E valeu a pena. Margosha ficou muito feliz, ouviu a faixa de Stammi Vicino até gastar o disco.”

“E de Trinus saiu Pavel,” concluiu.

“Exatamente. Mesmo depois de dois anos, sua mãe ainda amava aquela ópera.”

“Ela nunca tinha falado dessa peça para mim.” Georgi ainda não conseguia pensar em nenhuma explicação que não o fizesse amargar o ciúmes.

“Foi um baque enorme para todos nós quando Pavel faleceu. Ele só tinha cinco anos…” Nem Oleg parecia conformado, após tanto tempo. “Foi tudo tão rápido. Baranovskaya estava em turnê com o Kirov e não fazia três dias que Yakov e eu tínhamos deixado Leningrado para uma competição quando a febre dele piorou. Margosha estava cuidando dele sozinha e-” gaguejando aquela explicação ainda incrédulo, ele hesitou um pouco antes de continuar. “Ela não se perdoava pela tragédia, mas quem poderia imaginar? Pasha era tão frágil, de saúde fraca, diversas complicações na perna… Para uma criança que os médicos não davam um ano de vida, ele foi forte o bastante para ir além. Só esperávamos que tivesse ido mais…”

Certo, agora Georgi conseguia entender um pouco melhor. Ignorar Trinus, ignorar o disco, era sua forma de esquecer o ocorrido. Não falar sobre o problema, o relega ao nada. Não era a melhor forma de lidar com um trauma, mas ele podia reconhecer esse comportamento da mãe no de Yakov, também. Tal pai, tal filha.

“Já namorávamos nessa época e com a crise no casamento de Yakov e a esposa, acabamos nos aproximando mais. O divórcio foi inevitável e sua mãe sofreu muito por ter ficado como testemunha em todo o processo do desquite. Ela sentiu muito quando Baranovskaya precisou ir para Moscou. Naquela época, ela até tentou levar Margosha junto, mas sua mãe não quis deixar o pai para trás.”

“É impressão minha ou o relacionamento de vocês não era de conhecimento do meu avô?”

“Não, não é impressão, Yakov não sabia de nada.” Apoiado na mesa, Oleg não tinha ainda saído da página onde estavam as fotografias de Pavel. “Acho que apenas a amiga japonesa da sua mãe sabia, de resto, ninguém.”

“Por que tanto segredo? Qual era o problema assumirem o namoro?”

“A princípio foi ideia da sua mãe. Eu não tinha muita certeza, estava com medo do Yakov,” confessou, rindo nervoso. Ele ainda se lembrava da sensação aterradora em ser descoberto e toda a tragédia imaginada por ele próprio que se seguiria caso Feltsman descobrisse algum indigno cortejando sua bolinha preciosa. “Foi logo depois do aniversário de quatro anos do Pasha. Fomos levá-lo para brincar em uma praça perto do prédio onde moravam e ela me perguntou quando a chamaria para sair. Eu fiquei sem palavras e ela riu de mim, caçoando do meu rosto vermelho.”

“Que idade ela tinha?”

“Dezenove.”

Dezenove… Seria a mesma idade que ela tinha quando a foto que carregava em seu relicário foi tirada?

“Quem você acha que se apaixonou primeiro?”

Não que Georgi estivesse considerando Oleg o melhor exemplo de romântico incorrigível, nem cogitando a sinceridade de seus sentimentos, mas se tratando de Popovich, toda história tinha seu valor.

“Acho que fui eu.” Embora a resposta não desse certeza, sua voz não deixava dúvidas. “Mas eu me sentia estranho, porque quando eu tinha dezenove, ela só tinha catorze, uma criança! E eu sequer tinha reparado nela como nada mais que a filha do meu treinador até mais ou menos um ano antes dela me fazer aquela proposta romântica,” refletiu. “E ela já tinha tantos pretendentes…”

“Minha mãe tinha pretendentes?!” Aquilo sim era uma novidade! E Margosha ainda teve a coragem de dizer não estar tendo nada com o pianista do Bolshoi!

“Eu ainda lembro dos meninos tentando competir pela atenção dela na escola,” ria ele com bom humor. “Eu passava perto do colégio dela quando ia treinar com Yakov, logo pela manhã. Eles apostavam corrida entre si, tentando impressioná-la, mas era Margosha a mais rápida da turma, da escola inteira.” Georgi nunca poderia imaginar e amou descobrir aquilo. “Conforme ela crescia, os pedidos se tornaram um pouco mais diretos, convites de verdade para um cinema, um passeio que não fosse em nenhum lugar com pista de gelo, por razões óbvias. Mas mais do que isso eu nunca soube, Margosha era discreta sobre isso, para evitar problemas com o pai. Não sei se Yakov seria rígido sobre os encontros, mas após o nascimento de Pavel, ele somou Margosha às preocupações, então tentávamos não dar muito trabalho. Depois que ele morreu, toda a superproteção foi direcionada a Margosha, só não queríamos preocupá-lo.”

O assunto que começava com Margosha e sua família, sempre acabavam somando Oleg no final, Georgi já notara aquilo, as fotos, também, não deixavam mentir.

“Eu achei umas fotos dessa época que você está comentando, também.” Sabendo exatamente onde as havia guardado na caixa, Georgi pegou as fotografias do dia em que Pavel chegara ao mundo, que mascaravam perfeitamente o caos anterior àquelas imagens em família, além da foto onde Margosha e Oleg dividiam o sofá com o pequeno Pasha.

“Eu lembro disso! De tudo isso, na verdade!” Riu, fotógrafo oficial da família Baranovsky-Feltsman. “E isso aqui,” pegando a foto com Pavel como se pudesse guardá-la para si, Nikiforov trouxe o registro a altura dos olhos, vendo de perto o rostinho de Pasha. Às vezes sua memória falhava e ele não conseguia lembrar direito do menino, então era sempre bom ter uma ajuda para reavivar as cores daquele tempo. “Foi quando ele fez três anos. Baranovskaya não queria que eu gastasse nada naquele dia, mas eu fiz questão de comprar o maior bolo que ele escolheu e sua mãe passou horas decorando o apartamento até eu voltar com Pasha. Ele adorou a surpresa. Nos divertimos, tiramos fotos e no fim, aquela bruxa nos fez limpar tudo.” Georgi riu. Ele não esperava outra coisa de Lilia.

“Então aqui ela tinha dezoito,” Georgi comentou consigo mesmo, abrindo o relicário. Surpreso por ver Popovich usando a jóia, Oleg olhou para ele de relance, percebendo mais uma foto somando ao rosto sorridente de Margosha, uma jovem que ele não reconheceu de imediato.

“E essa adorável moça? Vai me dizer que você já tem uma escolhida?”

“É…” Não querendo se alongar em detalhes, Georgi tornou a fechar o pingente, o protegendo dos olhos interessados de Oleg. “Mas… Poderia ter sido um escolhido também. Nunca- nunca se sabe.”

Victor e ele nunca haviam tocado no assunto depois do caso Aleksandr, então Georgi não sabia qual reação esperar de Oleg por aquela confissão indireta sobre seu interesse se estender também a meninos.

“Se for uma boa pessoa, eu não me importo.” A declaração dele não tinha nenhum traço de maldade ou a aversão esperada por Georgi. Pelo menos, a julgar por sua aparência e a época em que crescera, era de se esperar uma postura mais conservadora. Imagens equivocadas caindo por terra. “Eu também gostaria de saber que Victor encontrou um escolhido. Um bom escolhido, dessa vez. Acho que me deixaria mais tranquilo.”

“Quem você escolheu?” Georgi arriscou perguntar, embora já soubesse o histórico.

“Margosha. Desde o começo foi Margosha, Georgi, Smirnova foi um erro que até hoje eu não sei como fui deixar acontecer.” Oleg estava agitado o bastante para se fazer acreditar. “Tínhamos planos, muitos. Eu estava há um ano negociando contrato com um técnico americano, tudo no maior sigilo possível e já tinha conseguido a garantia de um green card, faltava só o da sua mãe, mas Margosha não queria deixar Yakov, nós ainda nem tínhamos conversado com ele, e ela só ia adiando e adiando…”

“Ele não ia te perdoar por trocar a Rússia pelos Estados Unidos.”

“Era um risco que eu queria correr. Toda minha vida eu fui boicotado, tive que abrir caminho a força para ser alguém aqui dentro, enquanto lá fora existiam quatro propostas diferentes que me disputavam!” Décadas depois e Oleg não havia superado. Ele nunca iria. “Planejei tudo para que tivéssemos uma garantia em Detroit, uma casa no melhor ponto da cidade, perto do rinque onde eu treinaria. E eu não sabia como, mas Smirnova havia descoberto! Quero dizer, hoje eu sei que foi Osipov quem violava minhas correspondências e passava as informações para ela, mas naquela época…” Exasperou, algo entre deboche e decepção consigo mesmo. “Smirnova me rondou em um banquete pós-competição onde ambos tínhamos saído vitoriosos em nossas categorias. Eu só lembro de provocá-la sobre meu sucesso “além dos limites da União”, o que com certeza já denunciava em parte meus planos de ir embora. Então ela foi me oferecendo uma taça a mais, e outra, e outra… E eu bebi todas, ri, lembro de ter falado que achava graça de vê-la daquele jeito, me cercando, querendo atenção, mas não precisava de nada daquilo, pois tinha uma opção muito melhor me esperando em Leningrado. Depois disso, tudo para mim é um breu. Eu acordei enjoado e de ressaca no quarto dela e não quis acreditar. Smirnova era a única sóbria ali e não calava a boca, animada com minha ida aos Estados Unidos, se oferecendo para me acompanhar, listando todas as possibilidades que teríamos lá fora se voltássemos a vender a mesma imagem que tivemos quando mais jovens, agora em contexto romântico. Eu só ouvia um zumbido, nem lembro como me vesti, e repeti mais vezes do que ela precisava ouvir e mais alto do que devia ter dito, que a desprezava, não iria a lugar nenhum do mundo ao lado dela e que nada daquilo havia acontecido. Eu devia ter suspeitado do silêncio de Smirnova desde aquele dia.”

“Não contou para Yakov o que havia acontecido?”

“Contei para Osipov,” riu ele da própria imbecilidade. “Me sentia horrível, porém Gorki me convenceu de que a culpa era da bebida, portanto, coloquei na cabeça que aquilo nunca havia acontecido. Semanas depois, com Smirnova anunciando uma pausa na carreira para um ano sabático, fiquei até mais calmo. Já imaginava ela reaparecendo nos Estados Unidos ou algum outro país europeu na temporada seguinte, vindo para me assombrar, mas aquilo já não me afetava mais. Eu estava feliz, com o visto americano em mãos, ótimo desempenho nos treinos. Acho que foi a melhor época da minha carreira,” comentou, nostálgico. “E não demorou para sua mãe surgir com a notícia de que estava grávida.”

“Ficou… feliz?”

Oleg sorriu pequeno para a pergunta acuada de Georgi.

“Muito. Senti como se tudo estivesse caminhando para dar certo em minha vida, a minha própria família, o tipo de situação que eu teria amado esfregar na cara de todos que haviam duvidado.” Não era aquele tipo de resposta esperada por Popovich, contudo, era sincera. “Dessa vez era Margosha quem queria contar tudo ao pai, mas fui eu quem fiquei com medo. Do jeito que Yakov estava desde o divórcio, ele não deixaria a filha acompanhar nenhuma viagem, quem dirá ir aos Estados Unidos conosco nas últimas semanas de gestação? Não sei como consegui convencê-la a não contar nada por um tempo, infelizmente ele descobriu antes que eu pudesse pensar em alguma coisa. A reação não foi nada do que esperávamos.”

“Soube que ele expulsou minha mãe de casa quando descobriu, porque ela se negou a contar de quem estava grávida.”

“Foi exatamente isso. Margosha dizia não poder contar ainda, ele não aceitou a postura da filha e a acusou de palavras muito pesadas. Eu não estava lá, mas quando encontrei sua mãe, ela não parava de chorar. De um lado, eu tinha minha noiva, sensibilizada pela negação do pai, do outro, meu técnico e a maior figura familiar que tive na vida, desabafando toda frustração e decepção nos meus ouvidos. Eu não tive coragem de contar a ele.”

“Medo de decepcioná-lo?”

“Medo pelo campeonato.” Oleg sabia que aquela não era a resposta digna esperada, mas era a única verdadeira. “Ele era o único que poderia me preparar para sair vitorioso das competições. Eu dependia do resultado daquela temporada para competir nos Estados Unidos e então pedir asilo.”

Quando Georgi pensava não poder ficar mais decepcionado com Oleg Nikiforov, ele abria a boca para destruir o resto da boa e sensível imagem que seu eu de cinco anos havia cultivado com tanto carinho e admiração.

“Não pense que era fácil mentir para ele. Eu estava acostumado a fazer encenações para qualquer mídia ou pessoa influente de quem poderia tirar alguma coisa, não de Yakov ou Margosha. Eu os conhecia desde meus dez anos e admirava Yakov antes disso. Eles eram as únicas pessoas com quem eu me preocupava de verdade, eu não quis machucar nenhum.” Erguendo os braços para a sala onde estavam, Oleg prosseguiu. “Então eu arranjei esse lugar para sua mãe ficar.”

Georgi olhou em volta, precisando ver cada canto da alvenaria para acreditar.

“Você alugou, ou…?”

“Eu comprei. Comprei e registrei no nome dela.” Para Oleg era simples.

“Deu um apartamento a ela.” Para Georgi, era assombroso. Quanto dinheiro Nikiforov já tinha naquela época, se estava prestes a deixar o país?

“Eu só não podia deixar que o governo soubesse, então, como disse, coloquei no nome dela. No fim, concordamos que era uma boa escolha, caso eu não conseguisse o visto para ela a tempo de você nascer, teríamos um lugar nosso, embora eu quisesse muito que meu filho nascesse em solo americano.” Naquela época, pouco crente do fim da União Soviética antes da virada do milênio, tudo o que Oleg desejava ao filho, era qualquer nacionalidade que não aquela. “De qualquer forma, poderíamos reaver o dinheiro depois ao vender o apartamento, ele era novo na época, bem diferente ao padrão das comunas reminiscentes, renderia bem no mercado.”

“Então vocês moraram juntos aqui um tempo?” Como um casal?, quis Georgi perguntar, fragilizado pelo cenário família traindo seus pensamentos.

“Não podia arriscar muito, mas eu tentava dormir aqui sempre que podia. Sua mãe ainda trabalhava com costura, só não aparecia muito no rinque porque Yakov sempre a evitava.” Apontando para a janela, ele continuou narrando o passado. “Margosha deixava a máquina de costura perto da janela. Naquela época, ela dava direto para uma praça com um lago pequeno. No inverno não daria para patinar, mas era agradável de passear. Íamos sempre que eu vinha, não era um bairro muito frequentado.”

“Você disse perto da janela?” Com a última foto em mãos, Georgi a ergueu até encaixá-la no cenário. Sim, foi exatamente naquela sala que a foto de Margosha grávida havia sido tirada.

“Eu nem me lembrava dessa foto…” Sem tocar na imagem, Oleg a observou de onde estava. Cansado pelo esforço em se manter em pé todo aquele tempo, ele recuou alguns passos, sentando novamente no sofá estreito. “Foram tantas tiradas, tantas rasgadas e outras tantas levadas…”

Georgi já sabia o que Nikiforov tentava dizer. Faltava o clímax daquela história, o momento em que Narkissa vinha à tona e com ela todas as mentiras. Como bom artista, ele não precisou de nenhuma deixa para continuar falando.

“Eu tinha acabado de sair do melhor programa livre da minha carreira. Finalizações limpas, nenhuma queda, triplos perfeitos. Eu saí do gelo para comemorar com Yakov e fui recebido com um soco — e um soco daquele punho dói,” relembrou, sentindo a dormência pegando a lateral do rosto mais uma vez. “Ele ainda me acertou mais uma vez antes de o conterem, mas só consegui entender os xingamentos quando estavam o levando para fora do ginásio. Ele me chamou de traidor, bastardo sem mãe, moleque indesejável, me acusou de ter enganado sua filha… Naquela hora eu soube que ele já havia descoberto sobre Margosha e eu, só não sabia como. Ele ter me chamado pelas mesmas palavras que o filho da puta do meu tio costumava usar contra mim, matou aquele sentimento bom que eu sempre tive.” Respirando fundo, Oleg estava sentindo toda a raiva e decepção mais uma vez. “Então veio a pontuação, o recorde que eu não consegui comemorar, o caminho ao pódio e no meio disso tudo, os repórteres já começavam a pular na minha frente, perguntando sobre o nascimento do meu filho, se eu já estava sabendo sobre o parto difícil, quando eu teria contado à mídia e eu lembro de ter sentido que ia desmaiar, porque nada daquilo era para ter vindo à tona tão cedo. Estávamos no fim de dezembro e seu nascimento estava previsto para começo de fevereiro, eu não queria acreditar, mas também não sabia o que dizer. Depois da premiação, quando a coletiva finalmente se acalmou um pouco, um dos jornalistas perguntou há quanto tempo eu estava com Narkissa Nikiforova e eu juro que naquela hora não me passou pela cabeça que ele estivesse falando de Smirnova. Precisei sair daquela bagunça, me isolar onde estava hospedado, para só então pegar minhas coisas e ir embora, em uma viagem que pareceu durar uma vida. Yakov tinha ido na frente, eu não sabia para quem pedir ajuda, até me lembrar de Osipov.” Nikiforov reconhecia mais uma vez o tamanho da sua estupidez. “E foi ele quem me levou ao hospital onde pessoas já estavam reunidas prestando homenagem a uma pessoa que eu não fazia ideia, por estar há horas evitando os noticiários. Entrando por uma passagem lateral e bem menos movimentada, descobri a maternidade, corri até o vidro e fiquei procurando, procurando… Mas nenhum daqueles bebês parecia o meu.” A confusão daquela época voltava ao rosto de Oleg na mesma intensidade que havia sido no passado. “Eu encontrei a etiqueta dizendo Nikiforov, mas aquela criança… Aquela criança não tinha nada do que eu vinha imaginando desde o começo. E eu sei que recém-nascidos costumam ter todos a mesma cara, mas aquela era assustadoramente parecido com ela.”

“Victor.”

“Foi Osipov quem veio me contar sobre Smirnova. Ele parecia tão sem graça, o filho da puta… Nem sabia como me dizer e é claro que na hora eu neguei de todas as formas, porque na minha cabeça não era possível, ela teria me contado se tivesse engravidado! Mas então as coisas vieram à tona, Narkissa estava morta decorrente de uma hemorragia por complicações que não foram a público por proteção à imagem dela, mas que aconteceram por decorrência de uma operação de aborto mal executada.” Horrorizado pela tragédia, Georgi voltou a tomar assento. “Quando o médico perguntou o que eu pretendia fazer, entrei em desespero, saí correndo, me deparei com todos os fãs dela chorando em frente às escadas e todos eles avançaram em mim aos prantos, como se fossem me tirar um pedaço, mas eu não parei de correr, não parei de desviar, empurrar, até despistar as pessoas e conseguir uma condução. Eu me senti totalmente destruído quando cheguei aqui e não encontrei Margosha.”

Olhando ao redor, Georgi tentava criar aquele cenário de caos e reproduzir naquele espaço. Como teria sido para sua mãe descobrir sobre Narkissa? Teria sido ali, naquela sala? Que horas teria deixado o apartamento? Fazia sentido agora o que sua mãe falara há alguns anos, sobre ela ter fugido primeiro. Sem saber a história completa, ela pegou o filho e fugiu antes que a mentira do então noivo os alcançasse. E mesmo se todos os pormenores daquela história tivessem sido revelados, Georgi não duvidava que ela fosse fazer o mesmo; não a julgaria, também.

“Estava tudo revirado, mesa, sofá, nossas fotos emolduradas, além das que ela rasgou ou levou embora.” Ainda era difícil acreditar que uma mulher tão pequena e naquele estado gestacional pudesse ter feito tanto estrago. “Não restou uma única peça de roupa dela ou sua, talvez só alguns grampos perdidos na gaveta do banheiro e claro, a máquina de costura. Fiquei apavorado. Liguei no rinque, tentei ligar para Yakov, mas ninguém me atendeu. Fui pessoalmente ao encontro de Feltsman, me humilhei implorando para saber onde estava Margosha e mais uma vez fui humilhado com palavras, ofensas baixas, quase partimos para a agressão. Gritamos um com o outro, eu afirmava até sentir a garganta arder que não sabia sobre Smirnova, mas quem acreditaria? Contando assim, nem eu consigo! E além de me preocupar com ela, eu tinha o governo atrás de mim e a mídia nas minhas costas! Estava completamente acuado!” Aquele dia foi um pesadelo longo e perturbador. “Quando consegui finalmente raciocinar, percebi que ia precisar de um advogado. Foi quando cheguei a Drozdov, embora não lembre como. Ele era um profissional com poucos anos de formação, não era muito conhecido, mas me pareceu competente o bastante, e discreto, principalmente. Se não fosse por ele, eu não teria sobrevivido àquela primeira semana. Foi ele quem conversou com a imprensa, quem instalou Victor no meu “apartamento oficial”, fechou esse e tratou o funeral de Narkissa. Aquela semana toda eu passei trancado, tendo pesadelos quando conseguia dormir e sendo despertado por choros de uma criança que ironicamente só conseguia dormir ao som de Stammi Viccino e que eu…” Oleg não era capaz de completar a frase, não quando há muito tempo ele havia deixado de ver Victor como uma espécie de punição particular. “Que eu sequer havia dado um nome ainda. Foi Drozdov quem me lembrou, eu precisava registrar a criança, mas qual nome daria? Na hora eu pensei no nome que Margosha e eu havíamos escolhido para você, mas me dei conta no mesmo instante de que além de aquilo estar errado, eu ainda não sabia onde ela estava. Nisso, eu chamei Osipov.” Cada citação de Gorki, era um acréscimo à sua cota de estupidez. “E implorei a ele que achasse sua mãe para mim.”

Oleg era a prova viva de que Victor tinha, de fato, puxado ao pai, tamanha estúpida inocência. A diferença era que Vitya era jovem e Oleg estava quase para se aposentar quando sua vida virou do avesso — e Georgi nem entrava no mérito caráter.

“Seu advogado tentou dizer alguma coisa sobre isso?”

“Eu o conhecia há pouco tempo, ele não pensou ser necessário alertar alguma coisa, nem eu duvidei de Osipov.”

“E o que o seu amigo encontrou?”

Nikiforov deu uma risadinha exasperada, a expressão desacreditada de como cada um daqueles detalhes sempre esteve tão óbvio desde o começo.

“Não se acha o que não se procura. Naquela época, no entanto, Osipov afirmou ter vasculhado todo tipo de encomenda recebido por Yakov, até descobrir que ele tinha rompido qualquer ligação com a filha. Acho que aquela foi a única verdade dita pelo Osipov.” Era triste para Georgi constatar isso. “Enquanto eu voltava timidamente a aparecer para a mídia, sob instrução de Drozdov, Osipov veio me visitar e se despedir, pois havia conseguido uma boa proposta nas agências postais em Moscou.” Oleg exibia um sorriso ainda mais largo com a indignação que não parava de crescer. Sua história era uma piada pronta. Logo ele que sempre se achou tão esperto… “Ainda fiquei triste por vê-lo ir embora. Pode acreditar nisso? O desgraçado… E me desejou sorte.” Ao fim daquelas palavras, Oleg se calou, reflexivo, levando algum tempo para voltar a falar. “Como eu disse antes, me pareceu errado dar a Victor o nome que sua mãe e eu tínhamos escolhido para você. Eu estava em negação. Foi Drozdov quem sugeriu registrá-lo com o nome do médico que realizou o parto dele, como uma homenagem, já que Victor também poderia ter morrido pela delicadeza do quadro de Smirnova. Eu nem contestei.”

“O nome escolhido para mim…” balbuciou Georgi, pensando em voz alta. “Yakov disse que minha mãe escolheu Georgi por conta da história de um santo católico, conhecido por superar adversidades.” Os olhos azuis se encaravam, não vacilando nenhuma vez. “Se não era essa a primeira opção, qual havia sido?”

Diferente dos numerosos sorrisos de diferentes significados melancólicos, aquele dado por Oleg era carregado de carinho e dor:

“Pavel.” Antes de homenagear um médico, já existia a intenção de homenagear outro alguém, uma pessoinha tão importante, que ainda causava saudade. “Seu nome teria sido Pavel.”

Georgi tentou em vão segurar um soluço, mas eram sentimentos demais presos em sua garganta para engolir mais aquele. Sentido pelo passado e mais ainda por um passado que não era o seu, ele chorou abertamente na frente de Oleg, calado enquanto via tudo. Existia consolo para Georgi? Ou para ele?

“Por que-” tentou perguntar, engasgando entre as palavras. “Por que mentiu que você e Narkissa estavam juntos?”

“Eu não disse, foram eles que assim quiseram entender.”

“Você nunca falou o contrário!”

Oleg recuou diante a ira de Georgi. Revolta, mágoa. Ele sentia muito que um rapaz bom como Popovich estivesse passando por isso.

“Eu tive medo.” Confessar a verdade depois de evitá-la por décadas, era como se naquele tempo todo Oleg estivesse prendendo a respiração. “Eu amava a sensação de ser amado pelo público… Mas eu sabia que eles amavam mais a ela. Eles jamais iriam me perdoar.”

“Eles nem lembram mais de você.”

O alívio da verdade de Oleg vinha acompanhado com o outro lado da moeda, uma bem mais dolorosa. Sim, era verdade. Tal como Yakov o confrontara anos atrás, Nikiforov havia deixado de ser o nome dele, para ser nome de Victor. A criança negligenciada, o filho não quisto que havia se tornado tudo para Oleg e para o mundo.

O mundo havia saído na frente de Oleg, mais uma vez.

“Mas naquela época, eu pensei que me amariam. Estavam todos tão abalados pela morte de Smirnova, que eu apenas evitei tocar no assunto e os deixei no luto coletivo que durou os dois primeiros meses de Victor. Mesmo se estivesse em condições emocionais para tal, eu nem tinha como treinar para a competição americana. Os patrocinadores com quem eu já tinha conversado, abalados por também pensarem que o visto para a noiva que eu citava, se tratava de Narkissa, dispensaram toda a burocracia para me receber com Victor, mas como eu iria? Fiquei apavorado com a ideia da rejeição, após a morte de Smirnova, pegar meu filho e ir embora, ou continuar competindo como se nada tivesse acontecido. Mas ficar em Leningrado se tornou insustentável, a espera da mídia, dos fãs, por notícias era massiva demais para continuar vivendo aqui.” Atenção excessiva assustando a Oleg Nikiforov. O feitiço contra o feiticeiro. “Com ajuda de Drozdov, me instalei na Suíça. O governo não se incomodou, já que a justificativa dada por ele foi a de eu precisava me reconstruir agora que era pai de família. Não sei se engoliram, mas concordaram. E assim eu acabei me isolando durante aquele primeiro ano.”

“Onde desistiu de procurar minha mãe.”

“Eu continuei procurando por ela todo esse tempo.”

“Mentira!” Esbravejou Georgi, incapaz de se manter sentado. “Como não passou pela sua cabeça que ela poderia estar em Moscou, ao lado de Lilia?! Como deixou nas mãos de uma pessoa uma procura que só interessava a você?! Você sequer se esforçou!”

“E por isso deu errado, porque só quando eu meto minhas mãos é que elas funcionam!” Raivoso, Oleg rebateu a indignação. “E não, eu não imaginava que sua mãe fosse fugir para Moscou, não com uma criança recém-nascida! Ela sempre foi a pessoa com mais cérebro naquela casa, Margosha não iria pegar o primeiro banco barato para Moscou estando saída de um parto prematuro! Deve ser por isso que ela escolheu fazer isso, ter tomado a atitude menos provável enquanto o país todo tentava me arrancar um pedaço!”

Calados, sem encarar um ao outro, Georgi e Oleg permaneceram mergulhados cada qual em um pensamento diferente. Ainda era tudo tão difícil. Se pelo menos Georgi tivesse aceito a herança com facilidade, pensava Nikiforov, ele não precisaria estar escavando o passado, levando naquele resgate, o pouco que lhe restava de saúde.

“E depois disso?” Quis saber Georgi

“Depois o quê?”

“Depois dela ter ido embora e você também, o que aconteceu?”

E aquela pergunta despertava mais um dos traumas de Oleg. Georgi estava acertando os lugares certos mesmo sem intencionar.

“Foi um ano para me recuperar dessa bagunça. Eu ainda recebia pelos poucos patrocínios e tinha dinheiro o suficiente para me manter, além de fazê-lo girar. Diferente de você e Victor, dedicados artistas até em formação, eu cursei economia na faculdade.” Georgi pensou que o curso de Comunicação e Relações Públicas escolhido por Victor não era bem uma área artística, mas continuou apenas ouvindo. “Drozdov trabalhou muito naquele ano para me ajudar. As coisas pareciam mais tranquilas, mas só porque eu vivia distante de Leningrado; quando a temporada de patinação começou, era como se tivessem aberto a pista para qualquer um entrar. Tantos rostos novos, competidores que eu jamais havia prestado atenção, patinando coreografias inusitadas, conquistando pontos não tão bons quanto os meus, mas ainda assim, conquistando alguma coisa, enquanto eu apenas assistia tudo em silêncio. Se tratando de Smirnova, contudo, não existia uma apresentação onde ela não fosse citada, lembrada... Foi assim durante toda a competição.” O desgosto o acompanhava desde aquela época. “Lembraram dela e, é claro, lembraram de Victor. E como Victor não podia se virar sozinho, lembraram de mim, também.” Tanto feito para sair da sombra de Narkissa, e acabar coberto por ela mais uma vez. “E voltaram a me contatar… para perguntar de Victor. Se eu pensava em treiná-lo. Se eu imaginava um futuro para ele na patinação. Se ele sabia sobre a mãe. Como Victor saberia, se ele era um bebê, cheio de babás para suprir essa falta? Eu só mantinha as coisas dela guardadas em um quarto trancado, por precaução, orientação também de Drozdov. Se um dia alguém resolvesse fazer uma homenagem a ela, um documentário, um memorial que fosse, não encarariam bem se o “marido” não tivesse guardado alguma das relíquias. Então eu deixei a tralha ali, acumulando e juntando poeira até que uma semana antes do feriado natalino, comecei a receber um presente atrás do outro em nome de Victor. Foi quando me dei conta de que ele faria um ano de idade e você também. E eu ainda não sabia onde vocês estavam”

“Eu ainda não acredito como pode ter sido tão difícil,” confessou, quase indignado, descrente. “Morávamos em um apartamento antigo, uma herança dos tempos de comuna, não um buraco escondido nos Urais. Minha mãe trabalhava no maior teatro do país, da europa, para a companhia de dança mais reconhecida do mundo.”

“Você se esquece, Georgi Popovich, de que estamos falando de 1988, onde eu dependia de telefonemas e cartas para conseguir alguma coisa.” Oleg não gostou em nada da represália. “Você não imagina quantas encomendas eu enviei e fiz Drozdov mandar para todos os hospitais e cartórios possíveis na região de Leningrado e as fronteiras possíveis, buscando por um Pavel Feltsman. Eu não sabia que sua mãe tinha trocado seu nome, eu não sabia que Yakov tinha recusado o patromínico e o próprio sobrenome ao neto, eu não sabia! E à essa altura eu já deixava de sentir culpa e remorso para ter raiva, raiva de Narkissa por ter destruído minha vida, por ter me deixado um filho, raiva por Margosha ter me tirado um filho, raiva de Yakov por toda humilhação! E quando a final do Grand Prix feminino aconteceu no começo de janeiro e um minuto de silêncio foi pedido em homenagem à Smirnova, eu estourei a televisão contra o piso!”

Georgi se calou, a feição pesada idêntica a de Oleg. Ele tivera mesmo a coragem de assumir em voz alta e coberto de razão sentir raiva de sua mãe. Como ele podia ter coragem de culpá-la?

“Você fala muito de si, mas e ela? E a minha mãe? O que ela sentiu, passou pela sua cabeça?” Se Oleg tinha raiva, Georgi também tinha seu quinhão guardado no peito. “O que sente uma mulher sozinha com uma criança para criar, quando a sociedade inteira a reprova como se tivesse cometido um crime? Como essa mulher protege o bebê que tem nos braços, de todos os dedos apontados para si? Você devia saber, como. Assim como eu, você também não teve um pai.” De fato, Georgi sabia exatamente onde atingir. “Você pelo menos tinha um nome. Eu só tinha ela.” Aquela discussão era difícil. Oleg já imaginava algo cheio de lágrimas e dedos, mas nada se equiparava aquilo. “Me diga, o que pretendia fazer caso a encontrasse? Pedir perdão com todas as flores jogadas para Narkissa Smirnova? Propor uma família feliz? Você estava até agora falando como toda essa história o deixou acuado, o fez se fechar numa gaiola dourada, temeroso de perder seu título de estrela! Então para quê encontraria minha mãe e eu? Para continuar escondendo seu envolvimento com ela? O que eu seria nisso tudo? Um afilhado bem afortunado?”

A verdade era que nem Oleg havia pensado muito bem naquela parte. Durante aquele ano, achou sim que ao se entender com Margosha — oh sim, aquela possibilidade era muito real —, tudo voltaria a ser como antes, incluindo a chance de irem embora para os Estados Unidos. Ele nunca tinha pensado se Margosha gostaria ou não da ideia. Depois de toda aquela tempestade, ela ainda o amava, ele ainda poderia ser um patinador de sucesso e só viria a se aposentar depois dos trinta. Seus sonhos teriam sido todos realizados com sucesso.

Teriam?

“Você nos teria separado mais cedo,” Georgi, sozinho, chegou à conclusão, uma que nem Nikiforov havia pensado. “Como você fez conosco, antes.” De repente, seu raciocínio inclinou para outra direção, o fazendo encontrar outro furo naquela história; “Se você não nos encontrou antes, como conseguiu isso cinco anos depois?”

“Ah, isso.” Erguendo-se do sofá, apoiando parte do peso nos braços de estofamento antigo, ele arrastou os pés até uma estante de portas fechadas, coberta por um grande pedaço de plástico. Entre livros enfileirados e revistas esquecidas, Oleg tirou um grosso exemplar encadernado em capa dura e lombada em baixo relevo. Ele nem precisou se aproximar muito para Georgi reconhecer a fachada do Bolshoi. “Como eu disse, Victor ganhava muitos presentes, então eu passei a ganhar alguns, também.” Voltando a sentar, ele abriu a primeira página, onde constava a dedicatória de alguém que Georgi não conhecia, muito menos Oleg. “Ganhei esse exemplar, são fotos dos bastidores do Bolshoi. Era uma edição limitada e hoje extremamente rara, porque foi tirada em 1990, ainda no período soviético. Victor estava revirando minhas coisas, como sempre, e viu esse livro. Reconheceu o cirílico e ficou agitado para que eu lesse para ele, achando que era um livro de contos de fada. Como tinham muitas imagens, acho que não notou a diferença.” Folheando as páginas de papel de alta gramatura, Georgi observava com atenção os registros dos mais inusitados ângulos, um par de mãos costurando fitas, pés feridos sendo enfaixados, rostos suados e olhos focados, vultos de saiotes correndo para entrada em cena, um bailarino paralisado em pleno ar por um registro certeiro. Era lindo. “E enquanto eu lia em voz alta a legenda de cada uma delas, uma foto específica me fez parar de mudar as folhas.” Sabendo exatamente onde abrir, Oleg pulou algumas folhas e deixou que Georgi pudesse ver com seus próprios olhos;

Nomeada como “Margosha e Georgi”, a fotografia ocupava uma página inteira, ao contrário da maioria, que dividia espaço com dois ou três registros. Sentado no colo de Popovevna, Georgi escorava-se como podia nos braços maternos, tão ocupados com a máquina, mas profundamente adormecido para não não se incomodar com a postura toda torta. Margosha, no que parecia uma breve pausa na costura, ainda mantinha as mãos ao lado da máquina, uma barra rendada presa entre os dedos. Seu rosto, contudo, estava voltado para baixo. Um sorriso meio escondido podia ser visto, lábios pressionados no cabelo escuro depositando ali um beijo amoroso. Os olhos de Georgi encheram-se de lágrimas. Ele levaria aquele livro embora de qualquer jeito, nem que precisasse pagar por isso.

“Eu não tinha aberto esse livro até então. Mal acreditei quando vi. Deixei Victor com o livro e revirei minhas agendas até achar o contato de Osipov. Eu já não falava com ele há anos e ele pareceu bem surpreso e animado quando me atendeu.” Àquela altura ele já nem se repreendia mais. “Eu devo ter atropelado todas as informações possíveis, mas no fim consegui conversar com ele e falar que tinha descoberto onde vocês estavam e nessa hora ele soou meio sem graça, cuidou das palavras, me pediu desculpas e disse ter uma revelação a fazer, que já fazia um ano que havia reencontrado Margosha e que ela não fazia questão de esconder que o pai de seu filho era eu.” Claro que após tanto tempo, ele percebia quão absurda era aquela história. “Eu não sei te explicar quantos sentimentos diferentes senti com aquela informação e tantas outras que Osipov mentiu. Eu acreditava nele, na fidelidade que sempre pareceu ter por mim, e da forma como sua mãe e eu nos desencontramos desde a morte de Smirnova, não me pareceu absurda a ideia dela estar usando aquilo contra mim, preparando um escândalo.”

“Você a conhecia uma vida inteira!” acusou Georgi, indignado por Oleg, ou qualquer pessoa, pensar em Margosha como uma oportunista.

“Mas durante cinco anos eu não troquei uma única palavra com Margosha! O que poderia esperar?!”

De repente, Georgi se deu conta de que o entendia. Ele também não conhecia Victor desde criança? Não havia passado sua infância, adolescência e agora a jovem vida adulta ao lado do rapaz, dividindo todo tipo de situação, da cômica à mais desgraçada? E não estava também Georgi escondendo um segredo de Victor há anos? O que ele pensaria se Popovich contasse toda a verdade? O que diria se fosse o último a saber? Se sentiria enganado? Traído? Passado para trás? Feito de idiota, tido sua inteligência desprezada? Georgi também não sabia o que esperar. Ele tinha medo da resposta.

“Foi por isso que decidiu nos separar?”

“Eu não decidi nada, eu apenas pedi para Osipov ficar de olho! Em troca, eu ajudei com uma quantia, já que ele começou a falar do filho doente. Claro que era mentira.” Mais um erro de confiança para a lista de Oleg Nikiforov. “Ao longo do ano, eu fui sendo informado, sem nunca questionar ou suspeitar de nada. Quando Osipov me contou que Margosha tinha te colocado para ter aulas particulares de patinação e que comentava com funcionários e professores o futuro patrocínio que eu daria ao filho dela, minha visão chegou a apagar por um momento. Pensei que fosse cair ali mesmo, com o fone na orelha. Não tinha como continuar daquele jeito, estava saindo do controle. Foi quando eu decidi fazer as malas para Moscou e cuidar disso pessoalmente.”

“A tarde em que nos vimos no rinque.” Era uma memória distante, enfraquecida, mas Georgi tinha ela viva o bastante para lembrar como tinha sido. “Me chamou para comer borsch.”

“A ideia era pegar sua mãe de surpresa…”

“Você com certeza fez isso.”

“... e fazer uma troca, o patrocínio que ela tanto se gabava, pelo silêncio. Mas uma pirralha loirinha me distraiu enquanto a amiga japonesa da sua mãe fugiu com você.” Georgi não segurou o sorriso, orgulhoso da velha amiga. “Precisei tomar uma atitude mais drástica.”

Aquela lembrança não estava tão forte, mas assim que o pouco foi resgatado do passado, Georgi se calou. O que teve depois daquilo? Ele brincava de esconde-esconde no camarim de Minako- não, com certeza não era uma brincadeira, ele era apenas muito pequeno para saber. Georgi lembrava de gritos, uma discussão? Quem havia brigado, mesmo? Minako foi embora depois daquilo, Georgi também. Teve um sorriso na despedida curta demais para a saudade que deixaria. Um sorriso triste abrindo em um rosto inchado, não apenas de chorar.

“Você agrediu uma mulher.” Georgi realizou, algo dentro de si tremendo. O que era aquilo que sentia? “Agrediu Minako.” O silêncio de Oleg era o consentimento à falha memória do rapaz. Até uma pessoa como Nikiforov sabia estar errado. Embora grave acusação por parte da bailarina, ele não deveria ter deixado a raiva extravasar em forma de agressão, principalmente contra uma pessoa incapaz de enfrentá-lo em pé de igualdade. “Você é um monstro.”

Oleg encarou bem os olhos de Georgi, o azul idêntico aos seus, mas em uma profundidade emocional tão diferente. As lágrimas deformavam o circular da íris, mas as sobrancelhas finas estavam fechadas em uma expressão raivosa, repulsiva. Não existia, há muito tempo, a admiração que ele vira no menino quando tinha seis anos. Se Oleg soubesse quanta destruição causaria no caminho, teria guardado melhor aquele primeiro encontro na memória.

“Nunca disse o contrário.”

Engolindo a vontade de chorar mais uma vez na frente de uma pessoa que não merecia nenhuma lágrima sequer, Georgi começou a recolher seus pertences com cada vez mais força, raiva, jogando-os sem qualquer cuidado dentro da caixa, arrependido de tê-los mostrado a Oleg. Teria sido melhor morrer na dúvida, teria sido melhor ter queimado o cartão de Edik Drozdov, somar o silêncio ao da família e continuar sem tocar no assunto!

“Por que depois de tudo isso você quer me deixar uma herança?!” Explodiu ele, voltando-se para o homem sentado. “Por que está fazendo isso só depois da minha mãe ter morrido?! O que está tentando comprar?!”

“Ela já sabia dessa decisão.” A voz de Oleg pareceu funda, distante. O nervosismo de Georgi não o deixava ouvir com clareza, a voz do ódio gritando por cima de qualquer tentativa de raciocínio. “Antes do incêndio, ela já sabia.”

Era irônico como logo a citação do incêndio era o balde de água fria responsável por paralisá-lo.

“Antes da tragédia,” continuou Oleg, antes de Georgi deixá-lo para trás novamente, dessa vez sem chance de retorno. “Eu procurei por Margosha. Fui até o Bolshoi em uma manhã e pedi para chamá-la. Eu não sabia que estaria tratando diretamente com a líder de produção dos figurinos, mas no fim isso nem era para ser uma surpresa. Ela se aproximou e eu me senti pequeno, os olhos apertados como se estivesse pronta para me expulsar do teatro. Eu quase achei que isso fosse acontecer, mas Margosha apenas perguntou com toda frieza do mundo, o que eu queria ali. Foi difícil convencê-la a me acompanhar, e a decisão acabou cabendo à ela, que não queria que nenhum de nós começasse uma cena.” Georgi não conseguia imaginar Margosha alterada esse tanto, porém continuou ouvindo, o nervosismo de antes reduzido às suas mãos trêmulas. “Ela acabou não voltando para o trabalho mais, passamos o dia todo conversando em um café nas proximidades do teatro. Não foi exatamente amigável, apenas trouxemos às claras tudo o que não tinha sido discutido em todos esses anos. Foi quando eu finalmente descobri o motivo dela ter sumido com você; Narkissa simplesmente apareceu nessa porta, procurando por mim. Elas não trocaram muitas palavras para chegarem à conclusão de que eu era pai das duas crianças. Smirnova não ficou para conversar e sua mãe decidiu que faria o mesmo. A bailarina japonesa estava com a ida para Moscou marcada a convite do Bolshoi, então com ela, Margosha teria abrigo. Porém, o nervosismo com toda a descoberta sobre Smirnova e todas as ideias que Margosha teve sobre isso, fez com que o parto acontecesse antes do tempo. Yakov foi contatado no meio da competição com sua mãe procurando desesperadamente por apoio, o que já sabemos não ter dado muito certo. O parto complicado de Narkissa devastou o país e acobertou a saída dela de Leningrado. Ela não acreditou em mim quando eu disse ter procurado por vocês.” Popovich não a culpava. Nikiforov também não. “Eu nem pensava em falar qualquer coisa sobre isso, eu estava em Moscou apenas para falar dos papéis, mas não pude evitar; quando vi, já estava pedindo perdão.” Um sorriso pequeno se abriu nos lábios finos de Oleg, a realização de algo que ele já sabia. “Ela não perdoou.”

Aquilo surpreendeu Georgi. Margosha sempre foi tão acolhedora, a idealização materna, um anjo de pessoa, sua falta sentida constantemente, relembrada com carinho e amor… Ele quase se esquecia de que ela era humana e, sendo assim, sujeita aos mais variados tipos de sentimento. O rancor era um deles.

“Margosha… Margosha disse que teria sido capaz de perdoar eu ter me deitado com Smirnova, assim como perdoou tantas decisões erradas que eu fiz no passado, mas o que eu fiz a você, segundo ela, era impossível esquecer. Eu não sei se me senti muito estúpido por querer perdão depois de tanto tempo, ou por ter deixado tudo isso acontecer por algo que poderia ter sido superado. “E se?”, foi o que eu me perguntei depois de vê-la naquele dia, mas já não tenho mais como saber a resposta.”

“Você está tão acomodado com essa máscara, Oleg, que eu não te reconheceria mais sem ela.” ele se lembrava dela dizendo. Não precisava dizer isso a Georgi.

“Bem, não era para discutir águas passadas que eu a chamei para conversar, mas sobre a herança que eu queria deixar em seu nome. Esse apartamento, como já disse, foi colocado no nome dela, mesmo tendo sido comprado com meu dinheiro. A casa de Detroit, contudo, foi comprado com as economias de Margosha, já que na época uma transação internacional em meu nome chamaria muita atenção. Uma vez quitada a compra, pude cuidar da transferência do imóvel aos meus cuidados, mas para mim, ele continuava sendo dela,” explicou, o mais claro possível. “Ao longo dos anos, tentei conseguir fazer essa casa render alguma coisa, já que a mudança estava frustrada. Consegui alugá-la por uma década, o dinheiro arrecadado disso sendo guardado, parte investido… Foram cerca de quinze anos trabalhando nisso até a casa não conseguir dar mais nenhum retorno, restando a venda. O valor final você viu nos papéis. Restava então o apartamento, parado desde que sua mãe o abandonou. Eu precisava apenas conversar com ela, apresentar meus planos de te passar o imóvel e o valor conseguido da casa de Detroit e saber se ela estava de acordo.”

“De acordo…?” Georgi havia se perdido no final da explicação.

“Sobre eu finalmente reconhecer você como filho.”

A falta de reação de Georgi não deu nenhuma pista a Oleg sobre qual era sua recepção para aquela ideia, então Nikiforov apenas continuou, antes da coragem travá-lo por mais vinte anos.

Ele não tinha mais vinte anos sobrando para isso.

“Já adianto que ela não gostou muito da ideia e fez exatamente a pergunta que você: o que eu queria comprar com isso?” Georgi continuava calado, sem desviar os olhos de Oleg. “Eu não soube responder. Não queria bem comprar alguma coisa, talvez recompensar por tudo que aconteceu?” Exasperando uma risada baixa, ele ergueu os ombros. “Não sou uma boa pessoa, Georgi Popovich. Eu não me arrependo de, até hoje, não saber quando meu tio morreu, não guardo culpa por ter afrouxado os parafusos da lâmina de um concorrente em 83, de todas as vezes que “acidentalmente” fiz Smirnova cair nos ensaios, de ter subornado jornais e revistas para ter meu rosto estampado em algum canto de página, por ter comprado a expulsão de Aleksandr Gorkievich Osipov da ISU, eu não guardo arrependimento de nenhuma dessas coisas, nem de todas as outras que já fiz ou paguei para serem feitas, eu só…” Pausando o próprio discurso para respirar fundo, ele prosseguiu. “Só me arrependo por você e Victor. Deveria ter sido diferente.” De olhos fechados, Oleg se lembrava de Victor chorando por causa de Aleksandr. “Vocês não mereceram nada do que viveram.”

Silêncio. Georgi pensava quais palavras usar, aquele misto de emoções negativas ainda pulsando dentro de si, bagunçados com a dor.

“O que ela disse? Sobre me dar seu nome?” perguntou em um fio de voz.

“Que não poderia escolher por você e que isso deveria ser discutido com o único interessado.” Ele não citou a hesitação, o nervosismo com que Margosha teria dito aquelas palavras e como gaguejou cada letra. “Perguntou se eu também contaria a Victor e sim, a ideia era contar toda a verdade para vocês dois. Ela então sugeriu que isso fosse feito após a temporada, para que, qualquer que fosse a recepção com a notícia, não interferisse no desempenho de vocês. E Margosha estava certa, eu fui totalmente favorável a essa decisão. Depois disso…”

“Eu não conseguia gostar de Victor,” ele se lembrava dela confessando, cheia de culpa. “Mas ele sempre gostou tanto do meu Gosha, não é?”

“Trocamos contato e-”

“Eu ainda tenho guardado seu disco de Trinus.”

“Mantivemos poucas conversas, apenas para formalizar a transferência de posse para seu nome.”

“Posso tê-lo de volta?”

“Estava tudo quase pronto, mas…”

“Claro. Eu mandarei entregar no Bolshoi.”

“Não deu tempo.”

“Margosha-”

Não deu tempo.

Georgi voltou a mexer na caixa, dessa vez com cuidado. Oleg não estava prestando atenção, mergulhado nas lembranças daquele dia tão distante dividido com Margosha, no sentimento de nervosismo e, principalmente, nas palavras engasgadas, incapazes de serem ditas diante dela;

Eu estou morrendo.

Na frente de seus olhos, um objeto retangular foi mostrado, uma relíquia em forma de fita cassete, antiga e etiquetada com um pedaço de esparadrapo meio embolorado, onde Nikiforov estava riscado.

“Eu sempre quis ser Oleg Nikiforov.” Georgi sorriu, saudoso daquele tempo. “Hoje, não mais.” Oleg já havia entendido. Pelo jeito, teria de ligar para Drozdov. “Eu não odeio o senhor,” Georgi se surpreendia por, de fato, não conseguir odiá-lo depois de tudo. “Mas eu nasci como Georgi Popovich e morrerei como Georgi Popovich.”

Porque Georgi Popovich não tinha nenhum apartamento em bairro afastado, ou uma conta bancária recheada com zeros demais à direita; Georgi Popovich era professor formado, com especialização em psicologia infantil em andamento, atualmente dançarino de gelo ao lado da mulher que amava, com mais turmas em seu cronograma do que seria humanamente possível ministrar e um ateliê improvisado na sala do apartamento onde vivia. Essas eram as conquistas de Georgi Popovich. Ele não precisava de mais nada.

Com dificuldade, Oleg se ergueu do sofá, pegando a fita com as duas mãos. Georgi mal reparou nos dedos levemente deformados nas falanges, a leveza sentida por ter se livrado de tantos sentimentos negativos de uma só vez, revelando-se libertadora.

“Posso ficar?” perguntou Nikiforov, sua voz quase sumida.

“Posso completar meu álbum?” A resposta era outro questionamento.

“À vontade.” Tirando as chaves do bolso, ele as ofereceu a Georgi. Confuso, o patinador quase as negou. “Eu quero voltar ao hotel onde estou hospedado, se importa em fechar o apartamento? Eu peço para Drozdov pegá-las com você, depois, assim você fica livre para mexer nas caixas.”

“Claro, se não se importar…” Oleg sorriu, entregando o chaveiro e se despedindo com dois tapinhas no ombro do rapaz. “Obrigado, senhor Nikiforov.”

E lá estava novamente, a educação do jovem Popovich. É, ele não poderia mesmo ser um Nikiforov.

“Você deveria voltar a competir na categoria solo algum dia, ou quem sabe migrar com sua namorada para a patinação de duplas. É uma pena que um patinador tão talentoso como você esteja preso ao chão, assim.”

Primeiro, a surpresa nos olhos de Popovich, depois, um leve concordar, sem palavra alguma. Ele esperava poder falar com Oleg em outra oportunidade. Seria uma boa ideia contarem tudo a Victor? O que ele pensava sobre isso?

Georgi deixaria para perguntar isso quando tivesse mais tempo.

Fechando a porta atrás de si, Oleg deixou o apartamento, digitando o número de Drozdov assim que seus pés pisaram para fora do prédio.

Não havia mais tempo.

.:.

Nota

12.12.2010

Morreu hoje, aos cinquenta e um anos de idade, o ex-patinador e pai de Victor Nikiforov, Oleg Nikiforov. Atleta de destaque nos anos 80, ele começou carreira ainda nos anos 70, ao lado de Narkissa Smirnova, mais tarde Nikiforova, mãe do jovem Victor. A causa do falecimento não foi divulgada.

Fica aqui registrado os pêsames de toda a equipe e demais atletas da patinação artística.

Att,

J. Mills
Relações Públicas
ISU



Victor encontrou Georgi por acaso, quando deixava o centro de treinamento. Ainda abalado com o falecimento do pai, ele havia passado as últimas horas buscando companhia de Yakov, que não hesitou em cancelar qualquer agenda do dia para ampará-lo. Não existiam muitas palavras que Feltsman pudesse dizer para consolar o jovem patinador de 22 anos, mas para Nikiforov, bastava a intenção, o chá oferecido em silêncio, as horas sentado ao seu lado, pronto para qualquer que fosse a necessidade de Victor.

Mas Victor não poderia ficar sentado ali para sempre. Ele ainda tinha o pai para velar e a cremação para providenciar. Foi o único pedido deixado por Oleg, transmitido por Drozdov — ele não queria nenhum túmulo para acumular flores. Ou poeira.

Victor vestia preto, luto guardado em discrição. Georgi também vestia preto, mas por outro motivo. Após reconhecê-lo, Popovich se aproximou calado, olhar trocado oferecendo um abraço que Victor foi incapaz de negar, percebendo quão fragilizado estava quando viu os olhos azuis do amigo e se lembrou dos do pai. Dentro do abraço de Georgi, ele finalmente chorou.

“Eu sinto muito, Vitya.” As condolências fizeram Victor apertar mais os braços ao redor de Georgi.

“Por que ele não me contou que estava doente?” O que deveria ser um murmúrio, comentário baixo, apenas mais um lamentar, saiu engasgado, entrecortado pelas lágrimas, alto pela dor. “Droga, eu teria feito alguma coisa! Eu poderia dar um pedaço de fígado para ele, não podia?!” Georgi não sabia qual era a doença falada por Victor, mas explicava as decisões de Oleg; ele queria compensar de alguma forma os dois filhos, antes que fosse tarde demais. “Cirrose! Não me surpreende, pelo tanto que ele bebia, mas eu nunca teria cogitado! Ele tinha parado de beber há anos, como eu não notei, Georgi, como?!”

Não existia nenhuma resposta. Ninguém além de Edik sabia porque assim Oleg quis. Era um jeito estranho de preservar alguém, mas Georgi já havia entendido que era assim que o falecido Nikiforov agia.

Respirando fundo, entrecortado pelos soluços, Victor tentou se acalmar, correndo os dedos pelos cabelos claros e os puxando para trás. Precisava se recompor, ou não teria condições de acompanhar a cerimônia de cremação até o fim.

“Você… Você poderia me acompanhar, Gosha?” Não tinha se recomposto o bastante para passar por aquilo sozinho.

Infelizmente, os olhos baixos de Georgi responderam antes de suas palavras; ele não iria.

“Sinto muito, Vitya, mas logo estarei embarcando para Moscou. Você sabe que nessa época do ano eu sempre visito o túmulo da minha mãe- o memorial,” corrigiu-se, lembrando que não era apenas o nome dela gravado na grande lápide. “Desculpe, mas eu não posso…”

Victor compreendia. E estava tudo bem. Não era como se Georgi o estivesse abandonando. Oleg não era seu pai.

Trocando mais um abraço antes de se despedirem, cada qual para um lado, Victor sentiu-se grato, apesar de tudo.

E pensar que ele jamais saberia estar abraçando o irmão.

.:.

Já conhecia aquele caminho, comum desde os seus dezessete anos. Não era muito acolhedor e independente da época do ano em que entrasse naquele cemitério, Georgi sempre sentiria o frio daquelas lápides maior do que qualquer inverno.

No meio do corredor estreito ao memorial de pedra, Georgi por pouco não esbarrou em uma moça, encolhida dentro do grosso casaco de lã. Murmurando um pedido de desculpas, ele teve a impressão da jovem de coque alto ter olhado para trás, mas quando tentou fazer o mesmo, ela já não estava mais ao alcance de seus olhos, passos rápidos para fora do cemitério. Ele entendia. Também queria logo deixar aquele lugar.

Aos pés do memorial, um ramalhete de lírios murchava lentamente sob o gelo, recebendo os pequenos flocos de neve sobre as pétalas sensíveis. O clima fantasmagórico fazia Georgi se lembrar de Giselle. Yulia teria saído uma tragicamente bela heroína romântica, se tivesse tido a chance. A visita ali também era por ela.

Há alguns anos, Georgi não levava mais flores quando visita o memorial da mãe. Ele já havia testado todas as combinações de buquês possíveis, por vezes encomendando desde São Petersburgo a entrega dos arranjos. No começo, incomodava-o não homenageá-la à altura, mas após muitas conversas com Yakov e algumas crises de choro isoladas, e Georgi entendeu não ser assim tão necessário. Segundo o avô, Margosha estaria feliz apenas por tê-lo ali. Ele era o maior presente que a vida já lhe dera, afinal.

“Oi, mãe,” sussurrou, como se não quisesse incomodar as demais pessoas que ali repousavam. “Desculpe a demora, as coisas não têm sido muito fáceis ultimamente…” Contendo a respiração, ele sufocou a vontade de chorar. Não queria recomeçar com as lágrimas, não ali. “Não consegui classificação para o Grand Prix desse ano, mas está tudo bem. O Mundial está chegando e vou competir ao lado do Yuri. Consegue imaginar? Ele cresceu tanto nessa temporada, mãe! Lilia ficou quase louca com o treinamento dele!” Rindo baixo, ele imaginava Margosha rindo também. “É um patinador brilhante, mas eu sempre temo que vá se machucar, é muito teimoso. Yulia também era assim?” Ele fez uma pausa, imaginando o que a mãe responderia. “É… Acho que tenho uma notícia não muito boa, também. Anya e eu não estamos mais juntos.” Deixando de olhar para o nome gravado, Georgi tombou a cabeça para baixo, fitando as flores caídas. “É isso.” Não tinha nada mais a ser dito. Superada a vergonha, ele voltou a encarar o nome de Margosha, sentindo assim estar olhando nos amáveis olhos castanhos dela. “Será que isso aconteceu porque eu voltei para as competições solo?” Novamente, sem resposta. “Você acha que eu consigo superar isso um dia, mãe?”

O frio cortante queimou a pele do rosto exposta, e Georgi precisou se encolher dentro da gola alta de sua blusa de lã. O calor que rapidamente recompensou a pele judiada, pareceu muito com um par de mãos macias conhecidas em seu passado. Podia não ser uma resposta vinda diretamente dos céus, contudo, Georgi quis fazer daquela ilusão o consolo que buscava.

“É melhor eu ir, agora, mãe. Amanhã, antes de ir embora, eu passo aqui novamente.”

Deixando o cemitério, com muito mais em mente do que gostaria, ele decidiu voltar para o hotel onde estava hospedado. Não costumava ficar muito em Moscou quando visitava a capital, passando ali apenas tempo o suficiente para visitar o túmulo de Margosha e às vezes, ver Nikolai. Não sabia a razão, se pelo frio acima da média desencorajando o retorno de trem ou apenas a melancolia do fim do noivado tentando segurá-lo longe de São Petersburgo, longe de Anya. Seu coração doía tanto, ainda, que quase parecia fatal.

Percebendo que o frio não daria trégua tão cedo, Georgi buscou abrigo em um café próximo à Praça Vermelha, recebendo com alívio o aquecimento interno da loja assim que a porta automática fechou atrás de si. Uma bebida quente lhe faria bem.

Acomodado em uma mesa ao lado da janela, Georgi observava a neve caindo do lado de fora, vendo como o tempo desanimava os passeios em grupos e esvaziava o ponto turístico, o branco cobrindo o colorido da Catedral de São Basílio. A cidade até parecia salpicada de açúcar.

“Com licença…” Tirando-o de seus pensamentos, uma voz doce e baixa chamou por Georgi. Atentando-se melhor a ela, percebeu que pelas roupas de frio, não se tratava de uma funcionária do local e pelo penteado, um coque preso no topo da cabeça, ela parecia ser uma bailarina. “Eu te vi mais cedo no cemitério central… Georgi Popovich, não é?”

Então era ela!

“Sim, sou eu.” Atento aos olhos avelã, ele tentava se lembrar onde já teria visto um par de igual cor. A moça não lhe era estranha, mas de onde…? “Desculpe, nós nos conhecemos de algum lugar?”

Ela sorriu, aparentemente feliz em poder se apresentar.

“Não sei se o senhor se recorda de mim, sou Maria Petrova, costumava ter aulas de balé com Yulia Plisetskaya.”

Surpreso em rever aquela menininha depois de tanto tempo, Georgi levantou-se da mesa para cumprimentá-la devidamente. A pequena Masha! A aluna que Yulia tinha tanto apego e apreço! Georgi nem mesmo sabia seu sobrenome! Que vergonha!

“Me perdoe por não lembrar de você tão logo a vi, já faz tanto tempo! Como você está? Seguiu no balé?”

“Está tudo bem, muitos anos se passaram desde a última vez que nos vimos. Mas sigo sendo sua fã, não perco uma apresentação! Estou apaixonada pela sua Carabosse!” riu ela, uma imagem contente e expressiva, ainda que dentro de uma doce reserva, tão característica da criança retraída que ele se lembrava, mas ainda sim, tão diferente. “E sim, eu continuei no balé, mas agora em uma especialização um pouco diferente da clássica. Acho que chega uma hora em que a rotina nos cansa e precisamos nos reinventar.”

“Sou totalmente de acordo com esse pensamento.” Percebendo a indelicadeza de não ter convidado a moça para tomar assento junto a si, Georgi logo puxou a cadeira vaga. “Por gentileza.”

“Ah, eu agradeço o convite, mas preciso voltar para o estúdio, estava apenas fazendo uma pausa,” explicou, erguendo o copo de café. “Se estiver tudo bem para você, podemos nos ver amanhã, eu te passo meu contato.”

Amanhã? Georgi de fato se surpreendeu com o convite. Ele, que quase nunca ficava mais que um dia em Moscou desde o incêndio, além de pernoitar na capital, ainda havia conseguido uma companhia para aquele dia extra.

“Claro.” Feliz em aceitar, Georgi puxou o telefone, digitando entre seus contatos, o nome de Maria Petrova. “Será um prazer.”

Por algum motivo, Georgi sentiu novamente o calor das mãos de Margosha acalentando seu rosto.

 

Fim do Quarto Ato


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Se você achou a foto de Margosha de patins no meio da grama uma imagem que não te é estranha, sim, é uma referência a mesma foto de Isadora Williams, nossa Frozen Br ♥

Vocês lembram que perto do final de Yuri on Ice, foi mostrado Georgi em uma espécie de encontro? Bem, se não lembram, tchananam~ É a nossa Masha! ♥
Malabarismos para fazer do canon serventia à fanfic xD

Curiosidades:

— Opa, Anton Kolyada! Best de Edik Drozdov e OC da Mileh Diamond, aha :v Rolou um crossover de universos aqui, né? XD Desculpa o sequestro dos seus filhos, Mileh, juro que tô cuidando bem!
— O apartamento de Oleg e Margosha é o 64, pois esse foi o ano em que ela nasceu. Sim, Nikiforov era esse tipo de adorkable :v
— Margosha é apelido de Margarida e significa pérola (?). A graça desse nome é que não bastava ela ser baixinha, seu nome também era um diminutivo e significava algo ainda menor, lol xD
— A foto de casamento de Lilia e Yakov no gelo foi inspirada em uma fanart deles que eu nunca mais achei #RIP;
— Curiosidade aleatória: o buquê de noiva de Lilia foi feito por Yakov, após ele furtar flores em casas aleatórias. Ela nunca soube :v
— Sentiu falta do Georgi na final do GP? Bom, é porque ELE NÃO ESTAVA! A imagem de Georgi em um encontro aconteceu em paralelo com o final do GP, portanto ele não compareceu ao evento. Mas aqui na minha FIC, pelo menos, não foi bem um encontro de cunho romântico. O menino acabou de ser chutado de um noivado, DEIXA ELA FAZER UMAS AMIZADES ;0;
— Lírios são flores ligadas a pureza, por isso a personagem-título Giselle geralmente é associada a elas. São essas flores que enfeitam a lápide da mocinha no segundo ato do balé e sim, foi Masha quem as colocou no memorial visitado por Georgi :')

E AGORA UMA DAS PARTES MAIS ESPERADAS: O EPÍLOGO!! GO GO GO!! PROMETO QUE TÁ LEGAL! o3o



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Carabosse" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.