Carabosse escrita por Nat King


Capítulo 8
Quarto Ato - Parte I


Notas iniciais do capítulo

minHA NOSSA, QUANTO TEMPO EU NÃO VENHO AQUI, TÁ ATÉ JUNTANDO PÓ!! D; *tapa*

Ai, eu senti tanta falta dessa história, nem cabe em mim essa saudade T-T Mas, sos, como deu trabalho desenvolver tudo isso... Acho que tudo o que tenho estudado sobre a Rússia nesses últimos meses, nem os próprios nativos estudam :v Quão longe vai um ficwriter?? Sexta, no Globo Repórter. (?)

Piadas de lado, é um esforço recompensador. Eu adorei ter, estudar, caçar informações, assistir vídeos e todas as formas de estudo que consegui encontrar para tornar essa fanfic uma realidade. A quem me acompanhou até aqui (oi, Mileh s2), meu muito obrigada. Nada disso teria sido possível sem seu apoio e carinho.

Então SIM, esse tom de despedida é porque estamos finalizando Carabosse!! E eu que pensei conseguir terminar essa história em uma semana kkkkkkkkkkkk a iludida xD~

Vou deixar para rasgar mais seda no epílogo ;) Por enquanto, aproveitem o desfecho!! Grande abraço e até daqui a pouco! s2



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Quarto Ato

Parte I

 

A turma não era muito grande, mas deparar-se com rostos estranhos era sempre uma nova expectativa. Aquilo poderia ser dito de qualquer uma das sete crianças, novatas naquelas aulas introdutórias antes do curso de verão, mas aplicava-se unicamente a Georgi. Ele mal havia conferido os nomes na lista e já estava sofrendo a rejeição com antecedência.

Pela primeira vez Popovich assumiria uma turma infantil sem supervisão de Yakov e ele não sabia bem dizer se aquela oportunidade surgiu porque o velho técnico o considerava competente o bastante para aquela nova etapa em sua carreira de professor, ou porque passaria os meses seguintes soterrado em meio a uma papelada antiga pronta para ser arquivada. Não ter certeza não estava ajudando muita coisa.

“Professor?” Perceber a recepcionista usando aquela palavra para chamá-lo causou um sobressalto interno que quase lhe custou algumas batidas de coração. “A turma está esperando.”

Sem conseguir abrir a boca para responder, Georgi apenas acenou positivamente e pegou sua prancheta. Que ele tivesse sorte.

Com os patins calçados, Popovich equilibrou-se sobre as lâminas protegidas e entrou no ginásio, abrindo o melhor sorriso possível para a primeira impressão ser a melhor; geralmente em turmas com alunos tão jovens quanto a que iria instruir, era normal que pais mais ansiosos permanecessem na arquibancada vigiando cada escorregada do filho e protestasse o mínimo esbarrão acidental — eram eles que Georgi deveria impressionar primeiro.

Como esperado, os primeiros olhos a se atentarem a sua imagem alta foram os de um punhado significativo de mulheres, tão jovens que algumas podiam ser confundidas com irmãs de seus alunos, reflexo da maternidade precocemente incentivada em casamentos ainda mais prematuros. Nada que Georgi pudesse julgar, sendo ele também reflexo da mesma sociedade, ansiando pela paternidade o quanto antes. Yakov dizia que para um menino de vinte anos, Popovich era muito apressado.

“Boa tarde!” O cumprimento animado chamou atenção das crianças e um coro de mães e rebentos respondeu com diferentes entonações. “Tudo bem com vocês?” Olhando dos alunos às responsáveis, ele aguardou com seu melhor sorriso e conhecimento em comportamento infanto-juvenil. Esperava saber colocar alguma coisa em prática depois do extenso trabalho de pedagogia com sessenta páginas e oito referências bibliográficas que consumiu com suas noites de sono no último semestre. “Sou Georgi Popovich e estarei instruindo vocês daqui para frente.” As trocas de olhares eram uma conversa muda que fazia ecoar dos olhinhos tímidos, aquela importante informação. “Qualquer dúvida que tenham, não se intimidem, podem perguntar.”

“A aula será muito perigosa, professor?” A melosa e um tanto infantil voz materna, foi a primeira a se manifestar. Mais uma das tantas mães superprotetoras.

“Quedas são inevitáveis, mas o material usado pelas crianças é o suficiente para que nenhuma lesão ocorra,” garantiu aquela que era frase inevitável naquelas situações. Como se cotoveleiras, capacetes e joelheiras não fossem o bastante…

“Por que o professor não usa nenhuma?” Um garotinho cujo a altura batia nos joelhos de Georgi estava verdadeiramente intrigado com o equilíbrio e habilidade daquele adulto tão alto.

“Porque eu patino há muitos anos, mas quando comecei, usava todos os equipamentos que você está usando.” O menininho ficou muito feliz com a comparação, já se imaginando grande o bastante para dispensar pelo menos as apertadas joelheiras.

“O senhor não sente frio, professor?” estranhou outra criança ao ver o adulto tão à vontade com os braços descobertos.

“Não muito, já estou habituado… E aqui nós nos mexemos tanto que fica difícil sentir frio. Mas é importante que vocês se agasalhem bem, para não pegarem nenhum resfriado, ouviram?”

Se um adulto estava falando, então devia ser verdade.

“E os saltos? Eu quero fazer aquele lá, bem bonito e alto!” pediu outra criança, não sabendo por em palavras a execução em sua mente.

“Para tudo teremos tempo,” riu Georgi, feliz com a empolgação e participação dos pequeninos. “Começaremos pelo básico.” O esclarecimento era tanto para os alunos, quanto para as mulheres o assistindo atentamente. “Será uma aula introdutória, teremos uma hora para trabalhar o equilíbrio de vocês e arriscar alguns passos sem ajuda de instrumentos de apoio, se tivermos tempo.”

“Ah…” lamentaram todos em conjunto.

“Mas eu não quero só me equilibrar…”

“É, eu também quero ir bem rápido no gelo!”

“Mas se equilibrar não é tão fácil quanto parece… Garanto que uma hora será até mesmo pouco para todos vocês, mas prometo que irão se divertir muito enquanto aprendem.” Recuperados da decepção, aos poucos todos concordaram. “Prontos?”

Não era fácil lidar com miniaturinhas exigentes ansiando pela independência das barras de apoio, e por quatro vezes Georgi teve que socorrer uma criança chorando a meio metro da barra mais próxima, antes que a mãe dela invadisse o gelo para fazer isso. A correria para dar suporte a todos os alunos e dividir a atenção entre sete corajosas e barulhentas crianças, não lhe deu tempo de se preocupar ou distrair com qualquer outra coisa que não fosse a pequena turma. A experiência ao assistir Yakov em todos aqueles anos somada à faculdade estava mesmo rendendo bons resultados, melhores do que o esperado por ele até entrar naquele gelo.

“Professor?” Rapidamente acostumado ao título, Georgi prontamente atendeu ao chamado fora do rinque, a recepcionista acenando discretamente, o chamando para perto.

“Pois não? Algum problema?” perguntou à distância. Ele ainda estava de mãos dadas para a mais tímida e insegura das crianças, uma garotinha de nome Daria e a única ali a não ter nenhum parente por perto.

“Oh, não, apenas essa garotinha aqui que estava fugindo da sua aula…”

Emburrada, a menina alta demais para merecer o diminutivo, cruzou os braços, mostrando-se muito contrariada e querendo que os dois adultos ali notassem isso, também.

Apavorada com a possibilidade de perder as mãos que a amparavam a aterrorizantes sessenta centímetros da barra de apoio mais próxima, Daria não conseguiu disfarçar o biquinho choroso, seus olhinhos por trás das lentes dos óculos enchendo de lágrimas, prontas para chorar o abandono. Georgi sentiu o coração pesar e sua consciência zombar de toda aquela superproteção conquistada com metade de uma única aula. Ele já não podia mais negar quando as pessoas o comparavam a Yakov. Mesmo sendo visivelmente mais afável nas palavras, Georgi estava mesmo se saindo como o avô.

“Vai ficar tudo bem, Dasha, eu prometo.” O primeiro fungar da menina quase o fez desistir, mas era preciso encorajar seus alunos ou ele acabaria pai improvisado de cada nova criança que ali aparecesse. “Te te deixo nas barras, mas se quiser esperar um pouco fora do rinque, eu te levo até os bancos.”

Daria resmungou alguma coisa para o chão frio, parecendo trocar palavras estrangeiras com o gelo, antes de voltar a encarar o professor com o olhar mais desolador do mundo.

“Eu fico nas barras, professor…”

Diante a desolação de criança tão pequena, Georgi quase deitou no gelo e permaneceu lá, sofrendo em silêncio, porém ainda tinha uma aluna fugitiva para lidar. Deixando Daria em segurança nas barras, agarrada como se a vida da menina dependesse disso, ele apanhou sua prancheta com a lista de alunos e, enquanto conferia a disposição de nomes, deslizou até onde a funcionária da escola o esperava.

“Você disse que ela é uma aluna minha?” estranhou. Na listagem, não faltava ninguém. “Tem certeza? Na lista só constam as crianças que já tenho aqui.”

“Ela é da turma juvenil, na verdade, mas não conseguimos encaixá-la nas aulas de quarta-feira, então para ela não perder o dia, pedimos que tivesse a primeira lição com o senhor.”

“Mas eu não sou um bebê para ficar nessa turma!” Muito contrariada, ela balançou a cabeça para os lados, evidenciando o nariz torcido enquanto chacoalhava as tranças ruivas. “Eu já sei patinar muito bem!”

“Sendo assim, eu posso te passar exercícios diferentes.” Tentando apaziguar os ânimos da garota, Georgi buscou por alguma solução relativamente fácil. “Não estou usando o rinque todo com as crianças, poderá ter metade só para você, que tal?”

Ela até quis rebater, aquela necessidade pré-adolescente em ser do contra, rebelde como o lápis de olho preto que usava e pensava expressar toda a escuridão de seu interior, a própria gótica obscura e solitária que não teme a nada — apenas dormir sozinha após um filme de terror ruim.

“É, pode ser…”

Aliviada, a recepcionista deu um último sorriso para Georgi antes de se retirar.

“É uma pena você ter chegado só agora, temos apenas meia hora, tudo bem para você?” A menina ergueu os ombros, não podendo opinar muito quando ela sabia que aquilo tudo havia sido culpa de sua falta de vontade. “E qual o seu nome?”

“Ludmila Babicheva, mas prefiro que me chamem de Mila, Ludmila é só quando minha mãe briga.”

Georgi riu daquilo. De fato, uma mãe chamando o filho por um nome que não fosse o apelido rotineiro era sempre sinal de problema, ele podia ver bem por todas as vezes que testemunhou orelhas puxadas por pais não muito preocupados em punir os filhos na frente de todos os alunos e funcionários da escola.

“Como quiser, Mila. Sou Georgi Popovich, mas pode me chamar de professor, se achar melhor, assim como todos os outros alunos.” O biquinho de Mila e o par de olhos claros o analisando de cima à baixo pareciam não concordar com aquele título.

“Professores são velhos e você não parece muito velho.” Georgi riu do “muito velho”. Lidar com crianças abaixo aos dez anos havia o acostumado a críticas mais sutis, como as que lhe chamavam de “imponsável” por patinar sem um gorro de lã.

“Bem, me chame como preferir, então,” incentivou, imaginando o que sairia daquela cabecinha nas portas da puberdade.

A autorização discreta, na melhor das intenções, contudo, se mostrou um campo perigoso no qual Georgi acidentalmente havia dado carta branca à garota. De sobrancelhas arqueadas em uma expressão brincalhona e sorriso diabólico completando a feição travessa, Mila mostrou ao jovem professor saber muito bem como chamá-lo.

“Posso te chamar de instrutor bonitão?” sugeriu, sustentando aquele sorriso suspeito, prestes a explodir em gargalhadas. “Ou quem sabe o moço de belos olhos azuis?” Corado, ele não soube como reagir a nenhuma das sugestões constrangedoras. Divertida com o rosto vermelho de Georgi, Mila se aproximou com o que parecia a melhor fofoca do mundo, cobrindo a lateral dos lábios com uma das mãos, tomando cuidado ao confidenciar aquele segredo. “Eu estava sentada no fundo da arquibancada, mas perto o suficiente para ouvir aquelas mães ali comentarem dos seus braços, sabe? Deveria dar aulas usando um casaco...”

Demorou alguns segundos para o cérebro de Georgi processar aquela informação, mas assim que conseguiu, ele desejou morrer. Será que em meia hora conseguiria esse feito?

“S-sério?” Uma pequena parte de Geogi queria acreditar que aquilo era só mais uma brincadeira da aluna, mas ignorando seu constrangimento, Mila concordou efusivamente, reafirmando a desavergonhada conversa mantida por aquelas mulheres e quem saberia dizer quantas outras dividiam da mesma opinião e predileção pelos bíceps torneados.

“Sabe aquela lá, loira de cabelo curto?” Discretamente Georgi olhou na direção apontada, confirmando logo depois. “Disse que você pode abraçar ela quando quiser.”

“Oh meu Deus…”

“Não é nojento? Elas são velhas!” Babicheva estava indignada, embora o absurdo de toda aquela conversa a fizesse rir. “É a idade da loba, minha tia que fala!”

“Agradeço pelo aviso,” desconversou, tratando logo de mudar de assunto. Se continuasse ouvindo mais detalhes, não seria capaz de encarar nenhum pai de seus alunos nunca mais.

“Disponha!” Para Mila, ela estava fazendo um enorme favor ao professor desavisado — Georgi já havia encontrado algo com o que se preocupar além da nova turma.

Dividido entre dar atenção aos novos alunos e encarregar Mila às execuções que testavam sua flexibilidade enrijecida, Popovich se esforçou o dobro do que costumava fazer, se lembrando constantemente em dar as costas para as mulheres nas arquibancadas e assim evitar qualquer contato visual que encorajasse uma conversa após a aula. Levaria certo tempo até ele descobrir que era sua boa aparência por inteiro, e não apenas os braços, que mobilizava as principais conversas de todas aquelas mães. De algumas professoras, também.

Ao final da primeira hora, as crianças já estavam bem mais animadas com a aula e já nem se lembravam mais de seus desejos de velocidade e saltos estratosféricos, grandes demais para o pequeno tamanho de seus patins, felizes em conseguir um deslizar mais ou menos conciso antes de caírem ou pararem aterrorizados, sem saber como fazer para voltar à segurança do muro lateral. Foi um alívio para as mães — tementes da perda dos seus dentinhos tão frágeis — e para Georgi, que socorrendo-as, conseguiu evitar pelo menos seis tentativas maternas. Ele ainda custava a acreditar. Aquilo devia acontecer? Era assim que Victor se sentia com tanto assédio? Deveria contar a Yakov?

Decidiu esquecer aquilo no momento, pelo menos o último questionamento. Seria um pouco ridículo ele, que se achava tão adulto, correr pedir ajuda ao avô para falar como aquelas mulheres o estavam assustando. Um pouco mais e o próprio Victor acharia graça, comparando com a situação de quando ambos eram crianças e passaram uma semana sem dormir temendo a aparição surpresa de Baba Yaga no elevador de onde moravam.

“Espero vocês na próxima semana,” despediu-se de forma ampla, ao final da aula, sem dar espaço para as responsáveis das crianças ter a chance de chamá-lo, acenando para os últimos rostinhos que ainda viravam para trás, estendendo a despedida ao máximo. Sorrindo cada vez mais aberto com o ginásio esvaziando sem nenhum incidente, Georgi arriscava a dar o dia como um sucesso.

Dentro do gelo, calada no canto da pista, Mila já havia reduzido sua existência expansiva a uma bem mais tímida, calada, aparentando um esforço enorme para não chamar atenção. Entendendo o que ela pretendia com tanta discrição, Georgi riu para si mesmo, vendo-a encolher a medida que se aproximava. Ele podia lembrar de si mesmo ainda mais novo que Babicheva, atrasando a saída apenas para ter mais contato com aquele mundo gelado resumido a um único rinque, valorizando todas as preciosas chances que podiam lhe render segundos a mais sobre os patins apertados. Às vezes, Georgi ainda se sentia assim.

Só às vezes.

“Mila?” Fingindo não saber de quem se tratava, a ruivinha manteve os olhos fixos no chão, fazendo do deslizar um passeio casual. “Desculpe, mas precisamos desocupar a pista, a turma seguinte entra em quinze minutos.”

O muxoxo triste deformou-se em um grunhido decepcionado.

“Não posso ficar nem mais um pouquinho?” pediu, a voz fina e arrastada assimilando-a às crianças que dizia não ser.

“Na próxima, tenho certeza que poderá aproveitar a aula integralmente.” Mila não tinha gostado muito daquele sutil puxão de orelha, mas se em uma coisa o fã-clube de mães de Georgi Popovich tinha razão, era ser impossível ficar irritado perto daquele sorriso gentil. “Vem, vou te acompanhar até a recepção. Vamos ver se pelo erro de ensalamento da secretaria, não te arranjamos uma aula extra para compensar hoje?”

É, talvez Mila Babicheva entrasse para esse fã-clube. Pelas razões certas, é claro.

“Tá bom…” Não estava mais tão desgostosa com a situação, mas não poderia entregar tão facilmente os louros à pedagogia infantil de Popovich, razão pela qual fingiu relutar um pouco.

Seguindo-o para fora do gelo, ela ainda manteve sua atenção ao redor, e tamanha curiosidade não fugiu aos olhos de Georgi, que não quis ser indelicado ao enchê-la de perguntas. Era melhor deixar que elas viessem das crianças, primeiro, para depois saber o que fazer com as informações dadas.

Aguardando que ela retirasse os patins, o mesmo fez Popovich, ansioso em poder sair dali e ir correndo ao escritório de Yakov celebrar a conquista do dia. Se seus alunos tinham o equilíbrio recém-adquirido para comemorar, seu novo professor também tinha as próprias pequenas vitórias. Se não fosse um exagero, ele até pediria para abrirem uma champanhe! Se estivesse ali, Victor certamente providenciaria uma garrafa!

“Não é aqui que Victor Nikiforov treina?”

Até mesmo pensar no amigo o atraía como assunto. Então era isso que Mila tanto buscava naquelas paredes.

“É sim, mas ele não estará aqui até o fim das férias,” explicou, tendo a atenção toda sobre si. Não existia problema nenhum falar sobre Nikiforov na ausência do patinador, apenas...

“E por quê?”

“Bom, ele está-” Aquela era a parte incômoda, mais incômoda ainda por Georgi se recusar a sentir tamanha repulsa com a ideia de tê-la; “Ele está com o pai, agora, vai passar as férias viajando com ele.”

Desde o ouro de Victor na final do Grand Prix há dois anos, a relação dele com Oleg cresceu de tal forma que nem Yakov entendia. Nikiforov continuava vivendo na Suíça, mas nem mesmo se os dois morassem na mesma casa, ele seria tão presente quanto agora. A tecnologia daquele ano de dois mil e oito permitia uma troca constante de mensagens e Victor tinha adicionado emoticons animados o bastante para todas as letras do teclado e mais sete atalhos diferentes, que poluíam todas as conversas que ele tinha com o pai através do tal msn que Feltsman tinha desistido de mexer antes de sequer tentar. Ainda adepto à ligações telefônicas, os dois também passavam horas conversando aos finais de semana. Os presentes enviados por Oleg, antes apenas em datas comerciais específicas, já não tinham mais dia para chegar, sempre uma revista diferente, CDs com sugestões de programas, cartões postais. E, é claro, Victor não conseguia guardar tanta felicidade apenas para si, dividindo com os colegas mais próximos — e principalmente Georgi —, cada novidade vinda com o remetente de Oleg.

Yakov sempre observava as sutis reações do neto quando Victor o cercava com cada nova tralha recebida, porém, incerto sobre o que dizer, ele recorria ao que sabia de melhor: permanecer calado. E como uma estranha herança familiar, Georgi fazia o mesmo. Entendendo o silêncio como consentimento, Victor continuava a celebrar, sorridente e radiante, a felicidade que era a atual e bem sucedida fase de sua carreira e vida, e Georgi continuava engolindo aquele gosto amargo de um sentimento que ignorava estar provando desde então. Cedo ou tarde aquilo passaria, era nisso que preferia acreditar.

“E você não tem férias, não?” Mila achava bem estranho aquele mundo onde existiam pessoas trabalhando quando ela acabava de entrar de folga.

“Só da faculdade.”

“Tem que estudar quando é adulto também…” Devaneou para si mesma, exausta com a ideia de uma sala de aula depois do ensino obrigatório. Se pudesse viver de patinação para sempre…

“Mas é muito bom estudar, principalmente quando é algo que gostamos.” Georgi precisava dar o bom exemplo. Crianças eram muito sensíveis a qualquer palavra que pudesse ser interpretada mais de uma forma e ele não queria nenhum parente ali reclamando de seus filhos se recusarem a ir à escola por sua culpa.

“Não gosto de estudar nada.”

A forma direta como aquela menina despejava a revolta e contrariedade daquela fase, contudo, o fazia se divertir.

“Bem, quando você treina, está na verdade estudando seus passos e os aprimorando,” esclareceu o que para Mila pareceu um divisor de águas. “Ler sobre o assunto, conversar com outros colegas, pedir instrução, tudo isso é uma forma de estudo. Só não parece porque você gosta.” Babicheva ainda esboçou um “oh…” surpreso e depois compreensivo. Então estudar não era apenas ter raiva de geografia e gritar para o caderno na intenção de evaporar com a existência daquelas folhas rabiscadas? “E se quiser estudar mais sobre o que gosta, Victor estará de volta no começo de setembro para dar algumas aulas especiais, fará, inclusive, alguns workshops para as turmas juvenis. Se quiser, posso te encaixar em alguma delas.”

Nah, prefiro algo mais legal.” A sinceridade daquela afirmação e do aparente desprezo de Mila pelo principal medalhista russo da atualidade, era hilariante.

Muitos alunos pisavam naquela escola como se estivessem entrando em algum templo sagrado, o tempo de Victor Nikiforov. Os pedidos por fotografias e autógrafos eram constantes e depois de um dia inteiro de interrupções, precisaram reorganizar a agenda de horários de Victor para que os ensaios não fossem prejudicados. As crianças, principalmente, ficaram inconsoláveis no começo. As garotas interessadas em disputar o coração de Nikiforov e com isso conquistar o posto de primeira dama do gelo, ainda tentaram rondar os treinos, mas com a ausência do rapaz cada vez maior, aos poucos foram diminuindo o assédio. Georgi não duvidava que se Victor aparecesse de surpresa, o mesmo fariam suas fãs.

Na recepção, Popovich abusou um pouco de sua boa amizade com os funcionários da escola e um bônus não muito justo pelo parentesco com Yakov, e conseguiu não somente uma, mas duas aulas extras para Mila Babicheva, que não conseguiu manter a pose de garota cool e deixou a escola com um sorriso tão largo que qualquer um que olhasse com mais atenção conseguiria ver até a banda prateada do aparelho metálico. Fazer as pessoas sorrirem também o deixava sorridente.

“Já começa mimando os alunos, daqui a pouco terá problemas.” Georgi não tinha notado a aproximação de Yakov, assinando um punhado de papéis atrás de si. O sorriso do avô estava contendo a vontade de fazer piada, mas a felicidade do rapaz era tão genuína que seus olhos chegavam a brilhar. Yakov queria ter tido aquele jeito todo quando começou a treinar turmas infantis antes de Lilia precisar usar de uma duvidosa psicologia infantil para controlar os pequenos pelo medo de entidades mágicas do balé e gelo. “Pela reação das crianças que passaram por aqui mais cedo, devo dizer que você é o novo preferido delas.”

“Acha, mesmo?” Aquilo tudo era bom demais para Georgi acreditar não estar em um sonho.

“Estou falando delas, Georgi, das mães dos seus alunos.”

A recepcionista quase precisou esconder o rosto por trás do monitor de tubo para não rir na frente do rapaz, perplexo e pálido. Yakov sabia que era um tanto errado fazer piada do constrangimento de Georgi, mas enquanto a admiração e suspiros daquelas mulheres fossem velados, estava tudo bem rir da secreta popularidade do neto.

E assim Popovich descobriu que aquele fã-clube não era novidade para ninguém além dele mesmo.

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Correndo com a agulha pela camisa de cetim que decidiu reformar, Georgi continuava com o bordado que decorava colarinho e punhos da peça. Quem sabe quando finalizasse todos os detalhes ele não enfeitaria também o bolso na altura do peito? O desenho bordado em preto, da mesma cor do tecido, daria uma falsa impressão de brocado e a combinação da peça clássica com sua nova aquisição, uma jaqueta de couro sob medida que ele insistiu muito para Yakov o ajudar a pagar, seria de um inusitado interessante.

Interrompendo seu momento de criação, as batidas na porta atravessaram o silêncio do dormitório, ritmadas e ansiosas, clamando por atenção. Ainda era um pouco cedo para Victor estar de volta, mas a insistência e ansiedade daquelas batidas não podiam ser de nenhuma outra pessoa.

Antes de Georgi conseguir abrir totalmente a porta, Victor atravessou a entrada, radiando o dobro do que de costume, jogando-se na cama de solteiro com exagero e dramaticidade, rindo enquanto seus olhos, tão abertos quanto seu sorriso de coração, pareciam enxergar no teto bege, algum tipo de filme maravilhoso. Fosse lá qual teria sido o acontecido, agora Popovich também queria dividir daquela felicidade toda.

“Fico feliz que tenha chegado de viagem e vindo unicamente para me ver, Vitya, tenho certeza que nesses quase três meses ausentes não teve um único dia que não pensasse no seu pobre amigo deixado para trás…” ironizou e Victor só soube responder àquilo com uma risada e exibindo o dedo médio. Estava eufórico demais para raciocinar mais do que a novidade que agitava sua mente e coração;

“Gosha, eu estou apaixonado!”

Os olhos de Victor, brilhantes em expectativa, fitaram Georgi, esperando que ele dissesse alguma coisa, começasse com todas as perguntas que desejava responder, naquele roteiro mental que Nikiforov planejou enquanto voava de volta à São Petersburgo. Para sua frustração, Popovich continuou sorrindo de lado, acompanhado daquele olhar cômico, as finas sobrancelhas franzidas naquela muda pergunta debochada, totalmente descrente dos sentimentos do outro jovem.

“Georgi…” Choramingando, Victor se debateu birrento, bagunçando o antes muito bem alinhado jogo de cama de Georgi.

“Vitya-” Sua tentativa de abrir a boca para tentar consolar o amigo não deu muito certo e logo uma risada calada pela metade escapou de seus lábios em forma de chiado. Com a mão sobre o peito, Victor não poderia estar mais ofendido. “Me desculpe, Vitya, mas é que você sempre se apaixona!”

“Olha só quem fala!” Revoltado e exibindo nas bochechas uma vermelhidão que não era mais de seu coração apaixonado, ele arremessou o travesseiro mais próximo em uma péssima mira que acabou por acertar o trinco da porta. “Mas dessa vez é para sempre!” insistiu, exibindo a cara de choro mais infantil que Georgi já tinha visto. Era melhor não ir contra, tinha aprendido isso na faculdade. Quem diria que psicologia infantil o ajudaria a lidar com um patinador campeão?

Se aproximando do colchão, Georgi devolveu o travesseiro antes jogado de forma bem mais certeira, ouvindo uma risada abafada de Victor quando a almofada atingiu seu rosto, e acomodou-se onde cabia. Encostado contra a parede, ele ficou olhando para Vitya, esperando que ele começasse a falar tudo o que já devia ter ensaiado antes. Aquele tipo de situação traziam memórias de sentimento incerto, quando ambos cabiam em um mesmo colchão estreito sem precisarem se chutar em busca de espaço, patinar era uma brincadeira divertida e a ignorância os abençoava com a inocência.

Mas ali, deitado e encolhido, abraçado ao travesseiro e só deixando os olhos claros a vista, Victor ainda parecia aquela mesma criança enérgica e sonhadora. Georgi gostaria que, por mais desilusões amorosas que o amigo já tinha sofrido, ele continuasse daquele jeito.

“O nome dele é Aleksandr,” confidenciou enfim, voz abafada pelo travesseiro. “Eu o conheci na primeira semana de férias, quando fui com meu pai para aquela semana de cursos que teria em Paris, lembra? Aquele curso que o Chris me chamou para participar?” Com um aceno, Georgi concordou. “Então! Foi logo naquela semana! Sasha também participava do workshop, me contou logo de cara que havia trocado de parceira recentemente. Ele é competidor de dança e na última formação conseguiu ficar na quinta colocação do campeonato nacional! E foi ele o primeiro a puxar assunto comigo, acredita? E ele é tão legal, Georgi, gosta de pop rock, de Velozes e Furiosos, e começou a patinar em Moscou quando criança!” Aquela era uma combinação bem inusitada, mas Victor nem se dava conta disso. “E nós conversamos naquele dia e em todos os outros daquela semana, até que meu pai adiantou nossa viagem para os Estados Unidos. Eu achei que não o veria mais, mas Sasha, ele, pediu o meu contato e, eu juro, Gosha, não sei explicar o que senti, mas eu fiquei tão feliz que até o Chris percebeu que eu fiquei rindo nervoso!” Sentindo novamente toda a vergonha daquele dia ainda tão vivo em sua memória, o rosto de Victor foi tomado pela cor vermelha. “E nós continuamos a conversar depois disso, meu pai dizia que eu estava dando mais atenção para o computador do que para ele…”

“Você disse que ele tem uma parceira…” Georgi tentou avisar, temendo que aquele fosse um sentimento unilateral incompreendido pelo amigo. Uma semana para se encantar e ver-se perdidamente apaixonado, era um exagero até para Victor.

“Se detestam!” comemorou, por pior que soasse aquele detalhe. “Não suportam um ao outro, mas patinarão essa temporada juntos porque não tem mais pra onde irem!” Aquilo era horrível, certamente, mas Georgi não evitou a risada. “E semana passada, quando chegamos em Moscou, meu pai e eu, Sasha estava lá! O pai dele e o meu já patinaram juntos, então fomos os quatro jantar e no meio da coisa toda, Sasha pediu para me levar para sair e o meu pai deixou?!” Victor ainda não conseguia crer na aprovação de Oleg. “E o pai dele, tipo, me adorou?! Ele me comparava com a minha mãe o tempo todo, Georgi, foi a melhor noite da minha vida!!”

Absolutamente todo mundo o comparava com Narkissa, muitos completamente cientes de que aquela afirmação deixava Victor nas nuvens e arrancavam depoimentos e entrevistas mais facilmente, mas quem era Popovich para falar alguma coisa? Sorrindo, ele apenas continuou ouvindo os detalhes do que seu amigo delirava ser um encontro, um passeio por um canto desconhecido da capital moscovita, pubs sujos e um restaurante suspeito no fundo do quintal de alguma casa duvidosa, onde Victor assumiu a maior aventura da noite, quando provou a “melhor vodka caseira do mundo!”. Victor, que nunca havia experimentado nenhum tipo de vodka em toda sua vida. O coração apaixonado era mesmo traiçoeiro.

Contudo, existia algo a mais em todo aquele depoimento cheio de exageros quanto a beleza dos afiados olhos verdes e da personalidade confiante de Aleksandr. A admiração, a felicidade genuína, a emoção com a qual Victor narrava cada encontro, aquela semana dos sonhos que ele sentiu como uma vida perfeita, repleta de sorrisos e patinação. Até então, todos os romances dele haviam durado poucos beijos e uma semana de suspiros decepcionados com a casualidade com a qual seus alvos amorosos tratavam o momento. Victor sempre fora exagerado com a profundidade com a qual via seus relacionamentos — certo, nisso Georgi havia saído igualzinho —, mas com Sasha era diferente. Além do rapaz admitir com todas as letras estar apaixonado, afirmação essa que nunca antes se fez necessária, existia todo um relato de como era Aleksandr quem tomava as primeiras decisões, a iniciativa de levá-lo a experimentar novidades… Enquanto Victor estava acostumado a pegar antigos paqueras pela mão, Sasha era quem indicava o caminho. Quanto mais ele falava, mais Georgi podia ver por trás daquela camuflagem empolgada e cheia de hipérboles, a veracidade daquele sentimento, o primeiro amor de Victor Nikiforov.

Deveria se preocupar?

“... e sabe qual é a melhor parte?!” Sem fazer ideia de tudo o que se passava na mente do amigo, Victor continuava a falar, cada vez mais empolgado. “Ele e a parceira vão vir para São Petersburgo para ficar!” A última informação o fez quicar do colchão ao piso, saltitando de felicidade. “Eles trocaram de coreógrafo e precisarão vir pra cá e é claro que treinarão nesse rinque, Georgi, eu estou tão feliz, vai ser a minha vez de levá-lo em todos os pontos turísticos!”

Conforme Nikiforov continuava falando sozinho, narrando todos os planos e roteiros em mente ao lado de Aleksandr, Popovich percebeu que sim, talvez fosse preciso se preocupar com quão alto estava sonhando Victor.

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A melhor parte em ser um dos primeiros a acordar, era ter o rinque à disposição somente para si. Georgi gostava de poder ter aquele tempo, unicamente o gelo e ele. Sem alunos, sem colegas de trabalho, apenas os dois, como se o rinque pudesse assumir uma forma humana e unir-se a Georgi naquela terapia silenciosa, onde, aos poucos, ambos tentavam fazer as pazes.

Pensar nisso, ainda que rara e cuidadosamente, ainda machucava. Era como um hematoma, doloroso ao toque, que Popovich constantemente prestava atenção, ciente de sua existência, mas evitando-a ao mesmo tempo, a eterna vigilância de seus próprios receios. Yakov já tinha dito algumas vezes sobre os perigos daquela perturbação autoimposta, aconselhado auxílio psicológico, ou um desabafar qualquer que fosse, o alívio daquele tormento que poderia enlouquecê-lo. Georgi não costumava falar sobre isso, mas era o pavor de lidar com aquilo de uma vez por todas que o enlouquecia. Era melhor manter distância.

Sem saber que dentro do vestiário alguém lidava em silêncio com os próprios remendos, outro madrugueiro somou-se a Georgi, que só notou a presença da pessoa quando o ecoar dos passos já havia invadido aquele que Popovich gostava pensar ser seu espaço pessoal.

O susto inicial, responsável por fazê-lo abraçar um dos patins, evaporou-se por completo assim que Georgi se deu conta dos quase um metro e setenta equilibrados em sapatos tão desconfortáveis quanto as lâminas que costumava usar. Com um quilômetro de cabelos negros presos no alto da cabeça, deixando em evidência os grandes e sonolentos olhos igualmente escuros que o faziam se sentir nu, Georgi sequer percebeu que a névoa de seus susto dissipado havia desnorteado-o ao ponto de não notar estar encarando a mais bela moça de toda São Petersburgo, com a boca semiaberta, nem de se lembrar que aquela era a ala masculina.

“É você o neto do Feltsman?”

Naquele momento, Popovich não chegou nem a lembrar o sobrenome do avô.

“Perdão?”

“Yakov Feltsman pediu que eu procurasse pelo neto dele que me apresentaria ao rinque.”

As palavras dela não faziam muito sentido para Georgi, principalmente saídos de lábios tão belamente corados.

Espere, apresentar o rinque?

“Ah sim, me desculpe, você é a patinadora de dança no gelo transferida, não é?” Sem graça, Georgi ergueu-se da cadeira tão rápido que por pouco não provocou a labirintite. “Seja muito bem-vinda, eu sou Georgi Popovich!”

“Anya Pavlova.”

Anya. Dito por ela, parecia um feitiço.

“É a senhorita que acaba de trocar de parceiro? Onde ele está?”

Pavlova não fez questão de esconder a chateação ao ser lembrada daquele inconveniente, revirando os olhos e balançando o longo rabo de cavalo com dramaticidade.

“Nem me lembre disso, por favor, acabei de chegar.” Dona de um humor seco e de poucas nuances, por pouco Georgi não entendeu que aquele comentário se tratava de uma piada. “E pode me chamar de você, não precisa de tanta formalidade comigo, Georgi.”

“C-como quiser, Anya.”

Nunca em suas duas décadas de existência, Georgi conseguiu se livrar da formalidade em suas cantadas com tanta facilidade como com Pavlova, e isso que ele nem havia cogitado tamanha audácia com a patinadora de uma amiga de Yakov. Aquilo era ter o pescoço correndo perigo duas vezes. Aliás, descobrir que as amizades de seu avô existiam fora das cartas trocadas e telefonemas espaçados, foi uma surpresa difícil de acreditar.

“Atrapalho você, ou podemos começar o tour?” brincou ela, mais uma piada descuidada, apenas compreendida pelo sorriso entreaberto que exibia seus dentes da frente, encantadoramente separados. Anya era quase a versão russa e em cores de Brigitte Bardot.

E que cores, Georgi não conseguia não admirar a beleza de contrastes de sua palidez com todos os tons vibrantes que a acompanhavam em maquiagem e figurino. Linda como uma pintura.

“Claro, só um momento, deixe-me guardar meus patins.”

“Tem algum lugar legal para indicar depois daqui, Georgi? Estou ansiosa para conhecer um pouco da cidade grande.”

Eram oportunidades boas demais para quem sempre quebrou a cara — uma piada cortesia de Victor Nikiforov —, de modo que a resposta de Popovich foi o desanimador, porém seguro…

“Eu te arranjo um mapa!” … desastre.

Mais tarde naquele mesmo dia, Yakov o repreenderia por ter sido tão rude com a patinadora de sua amiga Irina Lagutina.

.:.

Durante os primeiros dias da nova instalação de Anya, Georgi se contentou em vê-la de longe. Envergonhado sem saber a razão, o máximo que se atrevia a fazer era passar pela porta do rinque utilizado por ela para treinar, rápido o bastante para não ser notado como inconveniente. Assim foi por quase um mês.

Não sabia dizer o que tanto a presença de Anya causava, mas aparentemente, não somente em Popovich ela passava tamanha impressão, como nos demais aspirantes a patinadores profissionais que a cada dia, somavam-se à arquibancada para assisti-la. O orgulho de Lagutina inflava a cada novo rosto que se juntava aos demais. Georgi, todavia, levou quase uma semana para fazer o mesmo.

Foi Mila, com sua persuasão infantil, quem conseguiu o feito, após uma semana de muita insistência. Ela não aceitou nenhuma das desculpas envolvendo trabalho e cansaço por parte de Popovich, se pendurando em uma das mãos do professor, choramingando enquanto forçava-o para baixo, pronta para derrubá-lo. Georgi apenas cedeu quando seus joelhos já tocavam o chão.

“Certo, Mila, eu vou com você!”

Birra, Georgi Popovich se rendeu por birra.

O ginásio de tamanho médio tinha sua arquibancada ocupada parcialmente, como se a apresentação solo de Anya fizesse parte de uma competição a nível regional. Se o número de espectadores em eventos daquele tipo não era muito encorajador, se tratando de um ensaio, a impressão era muito maior e digna de admiração. E, embora deslumbrado pela moça, Georgi não podia deixar de notar tamanha expressão cênica nos movimentos curvos e teatrais de Pavlova. Ela era impressionante.

Irina Lagutina não gritava tanto quanto Yakov, mas era notável que ela e Feltsman haviam tido o mesmo tipo severo de ensino soviético. Os olhos afiados acompanhavam cada passo de Anya, apertando-se ainda mais com a transição coreográfica que parecia nunca agradá-la.

“De novo, Anya.” O pedido não havia sido gritado, mas a força da voz de Irina reverberou até a última fileira da arquibancada, onde Georgi estava.

“É a quarta vez que me pede para repetir essa transição, treinadora!” reclamou Anya, ofegante e frustrada.

“Se eu estou vendo essa transição, é porque ela está mais grosseira que os óculos de grau de Nabiyev, lembra dele? Você o conheceu em Moscou.” Parte da arquibancada riu, mesmo sem saber qual era o grau do pobre citado, apenas porque Irina inspirava bom humor nas pessoas, mesmo com suas repreensões. Estava ali a maior diferença entre ela e Yakov. “Vamos, mais uma vez, Anushka, nós duas sabemos que você consegue.”

“Não consigo uma boa transição porque meu parceiro não está aqui!” Já Anya não inspirava nenhum tipo de risada.

“Aleksandr está para chegar-”

“Não estou falando dele!”

Pela leve hesitação na expressão de Irina, os mais sensíveis notaram a paciência da mulher esvaindo aos poucos. Por mais discretas que fossem, fofocas eram fofocas, e a da vez dizia respeito a Pavlova, que sem razão aparente teve seu parceiro de dança com quem dividia doze anos de história, substituído por um patinador que a jovem odiava tanto, que nem o nome do sujeito chegou era comentado direito pelos funcionários da escola. A ausência do dito cujo no primeiro mês da nova instalação, no entanto, justificava totalmente a irritação constante de Anya.

“Não se preocupe que eu vou escalpelar aquele moleque quando ele chegar, por enquanto vamos cuidar da sua parte.”

“Me perdoem a interferência,” da porta, Yakov se manifestava com apenas a cabeça para dentro do ginásio. Apenas por precaução. “Mas é que alguns professores estão sentindo a falta de suas turmas.”

Os alunos não gostaram muito do discreto ultimato, mas aos poucos, a maioria foi se arrastando para a saída, cientes de que se não obedecessem de primeira, Yakov começaria a falar alto — e aquilo não seria tão divertido quanto com Irina.

“Ouvi mesmo “escalpelar”?” perguntou Feltsman, assim que a arquibancada pareceu bem mais vazia. “É seguro entrar, aqui?”

“Para você sim, Yasha, não tem nada mais aí nessa careca que eu possa arrancar.”

Haha, Irina, que graça.” Emburrado, ele ergueu um punhado de papéis. “Pode vir na minha sala um momento? É sobre seu novo patinador.”

Irina chiou, antevendo o estresse que a aguardava. Se ela tivesse dinheiro para isso, mandaria todos os envolvidos naquela palhaçada a merda. Ela não duvidava que Yakov fizesse o mesmo.

“Certo, Anya, tire esse tempo de intervalo, na volta retomamos.”

A jovem se mostrou frustrada, mas patinou até a borda e deixou o rinque para descansar em um dos bancos que contornavam a pista. Para Mila, aquela era a oportunidade perfeita.

“Vamos lá falar com ela!”

“O quê?!”

Com Mila não existia diálogo e Popovich via naquilo seu maior fracasso como estudante de pedagogia; sentindo ter sete anos novamente, Georgi ergueu-se rígido e constrangido, incerto sobre segui-la. Foi preciso que Mila novamente o puxasse pela mão, sorridente e saltitante, e guiasse seus passos duros até o rinque, chamando atenção de Pavlova, que virou-se para ver de onde aquela agitação vinha. A cena inusitada era tão engraçada que ela não se preocupou em perguntar a Babicheva se ela tinha ou não aula naquele horário.

“Georgi Popovich…” O olhar de Anya tinha uma leve malícia. “Senti sua falta enquanto desbravava aquele mapa outro dia.”

“Eu-”

“Oi, eu sou Mila Babicheva e treino muito para ser uma grande patinadora!”

Mila não havia entendido nada, mas viu no breve silêncio de Georgi uma brecha muito oportuna para se apresentar. Pela feliz intervenção, Popovich se responsabilizaria pessoalmente para conseguir um mês de aulas extras para aquela menina.

“Muito prazer em te conhecer, Mila. É com esse belo rapaz que você tem aula?”

“Não, eu sou só a guarda-costas dele, sabe como é, o Georgi precisa ser protegido de lobas-”

“Mila, você tem aula agora!” Desesperado, ele soltou a mão de Mila e a empurrou levemente em direção a saída. Sua gratidão passara em tempo recorde.

Aiê! Não precisa ser grosso, eu só te protejo!”

“E eu estou protegendo suas orelhas, ou quer Yakov gritando com seus atrasos?”

Mila queria rebater que Yakov estaria muito ocupado para distribuir broncas, mas nunca se sabe de onde ele podia brotar, vermelho e irritado, urrando até a divisa do país poder ouvi-lo.

“Tá bom!” Mostrando a língua, ela fez de questão de reforçar estar fazendo aquilo porque queria, não porque haviam mandado. “Tchau, senhorita Pavlova!”

“Até mais, Mila!”

Georgi observou Babicheva deixar o ginásio segurando o riso, ou ela ficaria duplamente irritada com ele e o importunaria por dias até Popovich comprar seu pedido de desculpas com um pacote de chicletes. Foi a risada baixa de Anya que retomou a atenção de Georgi.

“Olá, senhorita Pavlova,” cumprimentou, envergonhado por não ter feito aquilo antes. “Me desculpe pelo outro dia, eu não pensei em ser grosseiro…”

“Não tem problema, verdade, eu também não estava em meu melhor.” Ela ainda sorria, mais suave e divertida.

“Perdoe também minha ausência, eu queria ter assistido seu trabalho antes, mas as turmas acabaram me ocupando mais do que pensei a princípio e com o retorno das minhas aulas, minha rotina virou do avesso.” Exceto pelo estranho pavor que sentia perto dela, que não precisava ser citado, logicamente.

“Não se preocupe com isso, eu passei esse mês todo passando raiva, duvido que pudesse passar uma boa impressão.” Tirando a bolsa que ocupava o espaço vago a seu lado, ela ofereceu o assento a Georgi. “Por favor. E pode me chamar apenas de Anya, como eu disse antes, não acho que seja necessária tanta formalidade.”

“Claro, me desculpe, é apenas força do hábito, estou sempre precisando lidar com os familiares dos meus alunos.”

“As lobas que a ruivinha estava falando?”

Georgi virou o rosto para o chão e Anya tentou conter a risada da vermelhidão que tingia suas bochechas.

“Perdoe Mila, pela idade ela nem sempre calcula o que fala.”

“Você está sempre pedindo desculpas assim?”

Georgi ergueu o rosto, sorrindo de lado. Yakov sempre chamava sua atenção para esse tipo de comportamento que ele sabia precisar melhorar. “Só peça desculpas quando for o culpado” era o que o avô repreendia e aconselhava. Ele quase sempre pedia desculpas depois disso.

“Obrigada por estar me fazendo companhia. Sendo tão ocupado, imagino que esse também seja seu intervalo.”

“Sim,” riu, lembrando que fora Mila a pequena intrometida que o tirou do refeitório vazio para fazer plateia ao ensaio de Anya. “Mas foi bom ter tirado a cabeça do trabalho um pouco. Como disse, com o retorno das minhas aulas, eu já fico pensando nos trabalhos e avaliações, antecipando o sofrimento do semestre.”

“Treinadora Irina havia comentado sobre isso. Você cursa Pedagogia, não é?”

“Surpreendentemente, eu gosto de trabalhar com essa criançada.”

“É louvável, de verdade, principalmente conseguir conciliar tudo isso. Peguei meu diploma no semestre passado, mas com toda essa mudança, não pude fazer a prova que me dava licença para atuação, então acabei com cinco anos de Direito pelo ralo.” Após o meio desabafo, ela respirou fundo, se dando conta de quão inconveniente estava sendo com o rapaz que mal conhecia. “Olha, me desculpa, é só que…”

“Não se preocupe,” repetindo as palavras de Anya, Georgi sorriu. “Você também fez uma escolha louvável de profissão. Tenho certeza que depois de se instalar melhor em São Petersburgo, conseguirá se preparar para a prova. Só vamos torcer para que ela não caia no meio de alguma competição!”

Anya riu, um pouco mais calma, a irritação substituída pela revolta.

“E saber que tudo isso aconteceu por culpa do animal que nem aqui está para treinar. Sasha vai ser o primeiro que eu vou processar, você vai ver!”

“Esse Sasha é o seu parceiro? O que conseguiu trocar de dupla depois de um patrocínio secreto? Não que eu procure pelas fofocas, mas elas correm pelos corredores…”

“Já era de se esperar,” mostrando não estar surpresa, Anya deu de ombros, brincando com a garrafinha de água já vazia. “Eu dançava com Afonya desde os dez anos de idade, de repente ele informa que precisa voltar à Chechênia e me diz de olhos arregalados de pavor que não pode dizer o motivo. Não tenho duas horas para me recuperar do golpe e me mandam fazer as malas, porque meu novo parceiro estaria instalado em São Petersburgo.” De braços abertos para o espaço vazio, ela ironizou. “Onde? Estamos com um mês de ensaios atrasados e ele resolveu estender as férias em Moscou até ontem, quando chegou de viagem.”

Ah, a corrupção do meio artístico… Não por menos Pavlova havia escolhido aquela formação acadêmica. Somente os patinadores sabiam — ou eram privados de saber — a sujeira que os afetava, com a bênção dos principais nomes envolvidos em tudo aquilo.

“Sinto muito por todos vocês,” lamentou. Infelizmente, era tudo o que ele podia fazer no momento.

“Eu já não gostava de Osipov antes, agora que ele está unha e carne com aquele estrelinha… Nada me tira da cabeça que ele só veio para cá por causa de Nikiforov.”

“Desculpe, você está falando do Victor?” Georgi sentia ter se perdido em alguma parte do que Anya havia dito. Sem prestar atenção em Georgi, ela olhava em direção a porta.

“Mas olha só, pelo jeito é só falar no diabo.” Irônica, ela se levantou, assumindo aquela postura forte que teria derrubado Georgi se ele não estivesse sentado. “Boa tarde, Sasha,” Anya pareceu cuspir o apelido, usado com ironia. “Finalmente deu a honra de sua presença!”

“Anya, não se comporte assim na frente da visita!” O outro rapaz, tão alto quanto Victor, referia-se a Nikiforov, que o acompanhava sorridente. Ao perceber Georgi ali, o sorriso de Victor alargou e ele gesticulou animadamente para sinalizar de alguma forma aquela coincidência maravilhosa que era o Sasha de Anya ser o seu Sasha!

A reação de Popovich, contrária ao que esperava Victor, não tinha nenhum sorriso; haviam poucas coisas que a memória infantil de Georgi conseguia recordar, e uma delas era a provocação constante de Aleksandr Osipov.

“Gosha, esse é aquele amigo do qual falei!” Sem saber dessa parte, Victor tentou ser um pouco mais claro. Era tão importante para ele que Georgi gostasse de Sasha! “Ah, Sasha, esse é aqui é o Georgi-”

“Georgi Popovich, é claro!” Mostrando, tanto a Victor quanto a Georgi, estar ciente de cada integrante daquela escola, Aleksandr pronunciou o nome de Popovich de forma grandiosa. “Grande patinador, mas o que aconteceu? Há pelo menos dois anos não ouço falar de você!”

Georgi não gostava de Osipov.

“E eu não sei de você há quase quinze.”

Impressionada com a resposta inesperada, Anya abandonou a postura agressiva para encarar Georgi. Ele não precisava fazer mais nada para ter sua simpatia eterna depois daquilo.

“Vocês já se conheciam?” Victor estava um tanto sem graça. Ele queria muito que Osipov e Georgi se dessem bem, mentalizando antecipadamente o casamento cheio de laços e balões de gás hélio em formato de coração, com Sasha como noivo — lógico, duh — e Popovich escalado como padrinho.

Percebendo que Georgi não entraria em detalhes sobre o passado, Sasha decidiu que não precisava se preocupar, rindo para Victor e abraçando-o pelos ombros, falando qualquer coisa como “deixe isso para lá”. Ele não percebia, ou podia muito bem estar ignorando, a vermelhidão quase fluorescente de Victor com aquela demonstração tão aberta de afinidade. Com certeza era por conta daqueles abracinhos e risinhos que Victor estava se rendendo, Georgi tinha certeza, precisava urgentemente parar aquilo!

… Precisava?

Pensando melhor, o que Anya havia dito, mesmo? Havia a suspeita de ter um dedo Nikiforov naquela mudança brusca de competidores e local de treino, uma mudança que Victor já tinha lhe dito antes. Oleg e o pai de Aleksandr eram amigos desde os tempos em que ambos competiam — desde o tempo de Margosha —, outro sinal de que havia sido Oleg o responsável por tudo isso. Àquela altura, já não seria surpresa se ele soubesse das preferências românticas de Victor, ele está tão certo sobre a reprocidade de seus sentimentos por Sasha… E Nikiforov andava fazendo de um tudo pelo filho. O único filho, valia lembrar.

Ainda assim, Georgi não confiava em Osipov. Depois ele perguntaria a Yakov o que deveria pensar a respeito daquilo tudo.

De qualquer forma, saber que Anya e Sasha não se davam bem, o deixou aliviado. Ele poderia fechar os olhos de vez em quando e ignorar um pouco a sensação estranha que rondava a nova paixão de Victor.

.:.

As olheiras de Georgi indicavam quão mal havia dormido na noite anterior. Seu sono, normalmente leve, foi interrompido diversas vezes pelo estardalhaço de Victor, que, ao passar a noite no dormitório de Aleksandr, riu com o dobro de potência de toda e qualquer piada feita por Osipov. A bagunça apenas cessou após três advertências de Yakov e uma bronca final, que daquela vez incomodou o sono do bloco inteiro — isso, três e meia da manhã. Georgi acordou às seis.

Bebendo café como água, ele continuava a pensar naquela situação que se estendia com a mesma empolgação desde antes de Victor lhe contar sobre a nova paixonite, e eles já estavam prestes a entrar em novembro. Eram meses demais. Aleksandr não desgrudava de Nikiforov, parecendo um parasita, como Anya sempre comentava, porém, Victor gostava da sensação de ser tão próximo de Aleksandr quanto considerava que Oleg tivesse sido com Gorki. Para Georgi, aquelas eram esperanças (perigosas) demais, mas não se atrevia dizer aquilo em voz alta, não quando ele próprio sustentava uma fantasia com começo meio e clímax romântico com Anya.

“Compenetrado ou apenas pensando longe?” Depositando a bandeja metálica sobre a mesa, Anya uniu-se a Georgi. O sorriso dela logo refletiu no de Georgi. Todos os dias estavam sendo assim.

Normalmente, era Anya quem buscava por sua companhia, já que Georgi acordava tão cedo quanto ela. Antes de cada um seguir para suas responsabilidades — treinos e estudos —, ambos conseguiam ter uma hora de conversas diversas ou reclamações do mesmo tipo, em geral envolvendo o clima. Irina, quando os via naquele tipo de cenário, os provocava zombando da velhice precoce; “parecem um casal de velhos!”. Georgi só ouvia a parte que lhe convinha; casal. Não que ele estivesse interessado, mas se Anya quisesse…

Aquela era a maior mentira de todas e todo mundo sabia disso.

“Você tem que chamar ela pra sair de verdade, Georgi!” Incomodada com a demora daquele namoro acontecer, mais do que lhe incomodava o atraso de suas fanfics preferidas, Mila decidiu em algum dia qualquer ser a pessoa mais indicada para dar conselhos amorosos para alguém dez anos mais velho e que nem havia tocado no assunto com ela.

“Você não está muito nova para pensar em namoros, mocinha?”

Ai, Georgi havia utilizado diminutivo para falar com ela. Ugh. O que ele pensava que Mila era, algum tipo de criança?

“E você quer que eu espere ficar velha que nem você? Ah é, nem velho você chama Anya pra sair!”

Naquele dia, Georgi achou melhor conversar com a irmã mais velha de Mila, só por precaução.

Receber um sermão infantil de uma pirralha que andava para cima e para baixo com tiaras de orelhinhas felpudas e apelidava os amigos com honoríficos tirados direto de animações asiáticas dos anos oitenta era o cúmulo, ainda pior por ela estar certa! Georgi queria ter a iniciativa de chamar Anya para sair em uma situação mais sugestiva, um jantar, cinema no último horário, arriscar presenteá-la com uma rosa… Era o medo de estar interpretando tudo aquilo errado que o impedia de fazer qualquer uma dessas coisas. E também, era tão mais seguro permanecer apenas sonhando...

“Gosha?” Chamando-o mais uma vez, Anya riu. “Você parece péssimo, isso tem a ver com os gritos de Yakov no meio da madrugada?”

“Você ouviu?”

“Eu não, dormi como uma pedra!” Feliz que Georgi estava um pouco mais acordado, ela começou a comer. “Mas ouvi de algumas meninas do dormitório que elas chegaram a acordar.”

Rindo baixo, os dois olharam ao redor, tomando cuidado para não acabarem falando demais e serem ouvidos pelo alvo de suas risadas.

Se bem que Georgi adoraria ter a oportunidade de falar com Yakov, nem que fosse para levar uma bronca. Tanto ele quanto o avô andavam tão ocupados, que o único assunto compartilhado era o de trabalho. Popovich sentia falta de poder dividir seus sentimentos com alguém, mas também não queria incomodar, não quando já era um adulto. Adultos resolviam seus problemas sozinhos.

“Eu só espero que essa festa do pijama não faça Osipov se atrasar, a treinadora Irina não vai estar nos supervisionando na parte da manhã e as nacionais são para janeiro.”

“Sempre posso pedir para o Yakov acordar ele com um grito.”

“Ah, eu iria adorar isso! Vou pedir, se precisar!”

Naquele raro sábado de sossego, Georgi aproveitou sua manhã para adiantar a pesquisa para montagem de seu próximo trabalho e revisou as pastas correspondentes a cada turma que ensinava. Ao final do semestre as crianças seriam avaliadas e para celebrar a primeira etapa de suas jovens carreiras, Georgi ficou responsável por criar uma apresentação temática. Sua cabeça criativa já estava fervilhando de ideias, que ele adoraria dividir com Victor se não tivesse outra pessoa monopolizando seu amigo.

Se com Victor ele já não conseguia mais conversar, com Anya, Georgi já tinha mais liberdade… Será que com essa desculpa ele conseguia uma chance para passar mais tempo com ela depois do treino?

Foi perto do almoço que Georgi decidiu “aparecer” no ginásio, com a inocente desculpa de lembrá-la ser preciso parar para comer de vez em quando, uma piadinha que eles usavam entre si quando o outro estava muito mergulhado nos estudos ou no trabalho. Contudo, ao invés de encontrar Anya repetindo as sequências espelhadas, Georgi a encontrou sozinha. Chorando.

“Anya?!” Preocupado demais para notar o exagero naquele chamado, ele correu até ela, prestes a pular o muro baixo, quando Pavlova conseguiu o conter.

“Calma, Georgi, não aconteceu nada.” O sorriso por cima da careta chorosa não o convencia nem um pouco.

“Onde você machucou?!”

“O quê?” Ela não queria achar graça da preocupação cavalheira de Georgi, mas era impossível. Anya não conhecia ninguém igual a ele. “Não estou chorando de dor, Gosha, antes fosse, meu choro é de frustração. Aquele filho da puta do Osipov não apareceu a manhã inteira.”

Georgi não conseguia acreditar. Também pudera, dormir o horário que ele e Victor supostamente haviam ido dormir, era de se esperar ainda estarem deitados, mas Aleksandr tinha uma responsabilidade que envolvia terceiros! Ele tinha Anya! Tinha Lagutina! Só não tinha vergonha de fazer pouco caso de nenhuma dessas pessoas.

“Eu vou ensaiar com você.”

Em um primeiro momento, Anya quase não acreditou nas palavras de Georgi, tampouco ele se deu conta do significado delas. Ensaiar não era o mesmo que se apresentar, mas era algo bem maior às aulas geralmente ministradas para seus alunos. Não existiam passos, combinações, treinos valendo classificação, pontos, a chance de uma medalha. Também não existia a culpa lhe rondando. O desejo pela profissão patinador, até dois anos atrás, o fazia sonhar; era só entrar no gelo para esquecer de quem era e dar vida aos inúmeros personagens construídos ao longo de meses de estudo e dedicação exclusiva. Agora, Georgi já não podia se dar ao luxo de esquecer, não quando durante os dias em que se esqueceu, perdeu por completo quem deveria para sempre lembrar.

Anya o olhava em expectativa, fazendo Georgi se lembrar do motivo que o levava a fazer aquela oferta: aquela era apenas uma ajuda, nada mais. Anya ainda patinaria com Aleksandr e qualquer medalha milagrosamente tirada de uma apresentação com Osipov, premiaria os dois. Georgi não havia traído ninguém. Ele ainda tinha sua mãe em mente.

“Só vou calçar os patins.”

Tocar as lâminas no gelo para fazer qualquer coisa além de dar aulas, teve uma primeira sensação estranha. A ponta de seus dedões formigava, os tornozelos pulsavam contra o aperto dos cadarços e seus joelhos tremiam, todos os sinais que seu corpo fazia momentos antes de anunciarem seu nome para uma apresentação. Com o lembrete de que Georgi não se apresentaria em lugar nenhum.

“Podemos começar pelo programa livre? É onde tenho sentido maior dificuldade.” Ao sinal positivo e sem palavras de Popovich, Anya selecionou o número do CD e o deixou em pausa. “Antes, será que eu posso tirar uma foto de nós dois? É para postar no Orkut.”

Só depois da repercussão da foto é que Georgi descobriria, pela histeria de Mila, quão popular era Anya naquela rede social.

“Em qual parte, exatamente, você pensou?”

“Saída e finalização de levantamento.” Deixando Kiss from a rose tocando, ela deslizou até Georgi. “Osipov me ergue como um galão de água e me devolve ao chão com a fluidez de um saco de batatas, treinadora Irina já discutiu com ele várias vezes sobre isso, mas você já deve imaginar que não adiantou de nada.”

“Prometo não te erguer como um galão de água,” riu Georgi, realizando a contagem mental para a sequência coreográfica que exigiria o levantamento. Ele já conhecia o programa por completo, de tanto assistir à versão solo protagonizada por Anya e também em dupla, quando Victor decidia assistir Sasha e fazer torcida ao ensaio.

“Confio em você,” insinuou, aquele tom dúbio que sempre o confundia. “Tenho certeza que esses braços podem fazer isso.”

O tom envolvente da música de Seal não deixaram a passagem menos constrangedora. Claro que se aquilo fosse um ensaio real, Georgi, sendo o profissional que era, não sentiria tanta vergonha, mas se tratando de uma coreografia que montava a atração dolorosa de dois amantes que, entre encontros e desencontros, precisavam demonstrar em abraços e expressões apaixonadas a profundidade do que sentiam, tornava tudo bem mais complicado… Em especial quando Anya quase pareceu tornar o “kiss from a rose” uma realidade. Georgi tinha quase certeza de que uma coreografia como aquela não levava sorrisos tão insinuantes.

A música ainda tocava quando uma risada, maior e mais estridente, interrompeu o ensaio improvisado. Victor nem havia entrado no ginásio e eles já sabiam a quem aquele exagero todo pertencia, especialmente, quem o acompanhava.

“Vejam só!” Forçando aquele humor estranho, Aleksandr apontou para o gelo. Aquele simples gesto fez sumir o sorriso de Anya. “Estou sendo traído, Victor, minha parceira está me trocando!”

“Onde você estava até agora, Osipov?!” Assustado com a reação agressiva de Anya, Georgi nem saiu do lugar. Pela reação de Sasha, ele também nunca havia visto a moça daquele jeito. “Que merda você acha que fazemos aqui?! Você também precisa treinar! Se acha um patinador assim tão bom, tão fodão, mas todo mundo sabe que se não fosse pelo bosta do seu pai subornando todo mundo, você nunca teria saído daquele rinque público!”

Perto da entrada, Victor estava encolhido, olhando para o chão, sem saber o que dizer. Osipov, por outro lado, encarava Anya com os olhos afiados e visível raiva. Existia ali, muito mais do que qualquer um podia imaginar. Contudo, não seria nenhuma surpresa confirmar aquele tipo de acordo informal. Aquele meio era tão belo quanto injusto. A beleza tinha mesmo um preço.

“A culpa foi minha,” desconcertado, Victor tentou acalmar a situação, trazendo sobre os ombros toda a culpa por aquela situação. “Fomos dormir muito tarde, ontem-”

“Você cale a boca, Nikiforov!” Sem conseguir filtrar a revolta e não fazendo questão alguma de tratá-lo bem, Anya deixou claro sua antipatia por Victor. “Diferente de talentos natos como você,” debochou, sua voz cada vez mais alta. “existe gente normal e sem contatos que precisa se dedicar se quiser fazer carreira!”

Georgi deveria falar alguma coisa? Deveria defender Victor? Deveria ir contra Anya?

Ele achou melhor se calar.

“É você quem deveria conter essa língua, Pavlova, ou vai acabar voltando para Irkutsk com o rabinho entre as pernas no fim dessa temporada.” Aquela era uma ameaça séria, da qual Anya não tinha medo nenhum.

No fim, você diz?” ela riu, debochada. “Eu não vou esperar tudo isso pra me livrar de você, Osipov, na primeira apresentação eu vou entrar nem que seja sozinha, do mesmo jeito que eu passei metade dos treinos e todo mundo vai saber disso!”

Anya começava a chorar, trêmula e sensibilizada, o estresse responsável por alterá-la tanto. Já Osipov não conseguia mais manter o sorriso no rosto, mantendo no bolso as mãos cerradas, que evidenciavam o tamanho de seu autocontrole para não partir para palavras mais agressivas. Ele ainda queria se manter como o equilibrado dono da razão.

“Não pode fazer isso.” A rouquidão em sua voz, baixa pela raiva, não podia mais ser mascarada pelo bom humor. “Vai destruir sua carreira.”

“Você é quem está destruindo a minha!” Fora de si, Anya estava tendo uma crise nervosa, o ápice de seu estresse. Nunca antes a dançarina havia chegado a um esgotamento emocional tão grande antes das competições começarem.

Desapontada por estar reagindo daquela forma por culpa de Osipov, ela não percebeu o chamado gentil e preocupado feito por Georgi, notando-o somente quando ele discretamente tocou sua mão, um gesto suave que a convidava a deixar o rinque.

“Você precisa sair daqui, Anya.”

“Não, ela não precisa.” Aleksandr não se importou em como sua interferência seria recebida, ele não tinha o mínimo interesse em Popovich. “Ela não estava até agora gritando, fazendo todo aquele escândalo porque eu me atrasei para o ensaio? Então que seja, ficaremos ensaiando até o fim do dia!”

“Por que está tentando ter razão?” Agora, era Georgi quem se exaltava. “Desde cedo Anya está aqui, sozinha, passando a coreografia que é de vocês dois! A avaliação dos jurados vale por ambos, Osipov, e você tem a deixado fazer tudo sozinha!”

“Também não é assim, Gosha…” Sentindo-se avulso em toda aquela discussão na qual ironicamente via-se culpado, Victor tentou uma última vez defender Aleksandr. “Ele pode até se atrasar, mas não falta a nenhum ensaio.”

“Obrigado, Victor, pelo menos alguém aqui que não quer minha caveira!”

“Não é normal se atrasar, Vitya, você sabe disso!” Georgi simplesmente não queria acreditar que a paixonite de Victor havia consumido com sua capacidade de raciocínio. “Nenhum dos competidores sérios que conhecemos tem esse tipo de comportamento! É preciso disciplina e sobretudo respeito e comprometimento! Ou você acha que vão esperar seu amigo se ele não estiver lá na hora? Que vão perdoar o atraso se apenas Anya estiver no rinque?”

“É diferente, ele não vai se atrasar para a competição!” Aflito, Victor tentou não perder a razão.

“Não é um bom momento para continuar com isso.” Respirando fundo para não assumir uma postura agressiva que não lhe pertencia, Georgi decidiu não levar aquela discussão para frente. “Vamos sair daqui, Anya, depois conversamos com a treinadora de vocês.”

Sasha continuou debochando da situação, fazendo pouco caso do que ele chamava de circo, zombando para as paredes a dramaticidade de Anya e diminuindo com ironia o sermão de Georgi;

“Fala muito pra quem não patina mais.”

Dessa vez, foi Georgi quem se viu fechando a mão em punho.

Foi difícil acalmar Anya, mesmo a levando para longe das dependências de treinamento, uma crise de choro que se estendeu por quase uma hora inteira. Convencê-la a tirar o dia de folga e pular o treino foi uma conquista ainda mais inesperada, mas que inspirou sorrisos na moça e, portanto, em Georgi. Uma tarde tranquila no dormitório de Anya parecia bom para a cabeça de ambos.

Prestes a ir do seu quarto ao dela, leves batidas na porta, quase um pedido de desculpas, pediram para serem atendidas. Antes de abrir para a visita, Georgi já sabia que veria Victor ali.

“Oi, Gosha…” Envergonhado, Victor quase se escondia por trás das tranças platinadas. “Posso falar com você um pouco?”

“Agora não posso.” Quando notou, Georgi já havia o tratado mais seco do que deveria — mas não do que queria.

“Não vou demorar, prometo.”

Ele não estava sendo justo, porém não conseguia se comportar de outra maneira. Não era somente Victor quem estava se deixando levar por emoções tão fortes.

“Entra.”

Victor sorriu aliviado quando encontrou naquela brecha dada por Popovich, uma chance. Menos tenso e amuado, ele entrou no quarto e esperou que Georgi fechasse a porta, aquela falsa segurança sentida quando olhos e ouvidos atentos não podiam mais serem vistos. Eles estavam sempre atentos quando o assunto envolvia o nome Victor Nikiforov.

“Seu amigo ficou lá, treinando? Quem foi que ele ergueu no lugar da Anya, você?”

“Credo, Georgi, como você está agressivo!” Victor reclamou, um tanto manhoso, mais parecido com o Victor que ele conhecia. Era até um alívio.

“Me desculpe.” Vê-lo menos influenciado pelo sentimento romântico, também fazia Georgi abrandar a postura. O problema, afinal, não era entre ele e Victor. “Sobre o que quer conversar? Receio não poder te dar muita atenção, agora.”

“Não tem problema, eu só gostaria mesmo de te pedir desculpas.” Puxando alguns fios soltos de seu penteado para trás da orelha, Victor repetia os cacoetes que antecediam seus discursos culpados. “Parece que quando Sasha discute com a Anya, você é o mais afetado nisso tudo, quem fica bem no meio do fogo cruzado… Eu sei que eles não se dão bem e assumo ter minha cota de culpa, acho que devo ser o maior culpado, na verdade, sempre monopolizando ele, atrasando os horários dos meus treinos, inclusive… E eu acho,” rindo, Victor encostou-se na porta, olhando para Georgi com a maior expressão dolorida que pôde. Os olhinhos pidões, tão associados aos fiéis caninos, eram a marca de Victor e Georgi tinha certeza que Makkachin havia aprendido com o dono. “Acho que no fim você acaba sendo a lixeira de todo mundo, quem aguenta tudo isso. Deve ser cansativo.”

“Eu já estou acostumado a ser o resto,” Georgi tentou rir daquela definição meio cruel  que o contemplava como pessoa, o segundo em prioridade, com a intenção de deixar o amigo mais calmo, contudo, a decisão não ajudou muito.

“Não deveria ser assim, Georgi…” Sem saber quão profundo era aquele trocadilho, Victor continuou a abrir o coração apaixonado. “Não deveria ter tanta briga em algo que, não sei explicar, Gosha, mas… Sabe, parece tão certo! É ele quem sempre me chama e pergunta dos meus planos, quer saber sobre mim e atrasa o retorno para o rinque, de propósito! Sabe o que o Sasha me disse hoje, quando eu perguntei se ele não iria se meter em problemas por deixar a parceira dele esperando? Que não queria estragar o momento falando sobre ela. Digo, estragar aquele momento…” Victor tremia, tentando gesticular aquela ideia que parecia estar em suas mãos. “Aquele momento comigo, Gosha… Eu- eu não vou mentir, estava com medo de me apegar demais e no fim acabar querendo mais do que me oferecem, mas agora? Já faz tanto tempo e nada mudou, pelo contrário, só fica maior, mais próximo… Ele me conta dos planos dele e eu incentivo! E ele fica feliz por eu estar ali, foi Sasha quem disse, essas mesmas palavras! Então eu me pergunto… Será que não devo estar me tornando para ele, o que ele já é para mim? Será que já não sou?” Os olhos de Victor imploravam por uma resposta, mas Georgi não estava certo do que responder. “E, não vá me achar exagerado, mas às vezes eu penso que seria muito legal se ele parasse mesmo de patinar com a Anya, porque aí, não sei, parece que daria certo ele ficar comigo e ela com você.”

Victor tinha razão, Georgi não iria ver nenhum exagero naquilo; a ideia lhe parecia muito boa, na verdade. Ao contrário do que já havia ouvido e poderiam pensar, ele não estava sonhando com Anya e núpcias — ainda não —, mas seria ótimo não ter mais Aleksandr por ali. Pouco interessado como se mostrava, cedo ou tarde ele se afundaria, tornando-se nada mais que uma sujeira na memória da patinação. O problema era Osipov, na atual circunstância, poder levar Victor junto.

“Ora, Georgi, vamos, tente ser menos sisudo, parece até o Yakov! Como vou levar meus filhos na casa do tio Gosha se você matar eles de medo com essa careta?”

E lá estava Popovich mais uma vez, não resistindo ao brilho de Victor. Tio Gosha. Não era uma mentira. Ele adorava o título, inclusive.

“Ele não parece um cara legal para a Anya, Vitya. Depois do que ela disse sobre o possível meio fraudulento que encontraram de colocá-lo aqui, dá para ver que ele não é legal com ninguém, nada garante que ele será bom para você.” Aquilo já não era mais implicância, mas a preocupação real de Georgi com o amigo. Victor estava muito cego do alto daquelas nuvens apaixonadas e uma queda seria desastroso para seu coração.

“Ele já está sendo, Georgi, eu juro…” Brincando com a ponta clara dos cabelos trançados, Victor deixava evidente o desconforto. Ele só queria alguma palavra de incentivo, uma vírgula que fosse… “Depois das primeiras apresentações, acho que todos estarão mais calmos, então, sei lá, né, por que a gente não sai? Se conhece melhor? Nós três?”

“Eu já o conheço o bastante, Victor.”

“Quinze anos, Georgi, dê uma chance!” dramatizou novamente. É claro que depois de quase dois meses instalado em São Petersburgo, Aleksandr daria sua versão dos fatos, e Georgi nem pensou em questionar.

“Tá, tá bom, eu vou pensar melhor no seu caso!” Entrando na brincadeira, ele se rendeu, abrindo a porta do quarto e libertando pela abertura, toda a tensão que estivesse ali presa.

Pelo menos por enquanto, Georgi seria conivente para acalmar Victor e, quem sabe, conseguir um pouco de paz para Anya também.

“Só por favor, não deixe seu amigo-futuro-namorado se atrasar de novo. Ele já não tem mais defesa.”

“Vou falar com ele, prometo.” Erguendo os dedos em V, Victor reforçou com toda seriedade do mundo seu comprometimento. “Agora vai lá, sei que você está indo ver sua amiga-futura-namorada.”

“Não tão rápido, Victor, ainda é muito cedo…” Disfarçando o rubor nas bochechas por gostar da possibilidade, Georgi tentou mascarar a vergonha com o mínimo do bom senso.

Cedo?! Para você?!” Ah, Victor jamais perderia a possibilidade de tirar sarro de Georgi, não quando oportunidades para pegar no pé do amigo eram tão raras. “O que aconteceu, Gosha, por muito menos você estava idealizando um casamento e filhos, você não me engana!”

“É, mas eu mudei, estou muito mais sério e pé no chão, estou dando tempo ao tempo-” Nem ele estava acreditando na defesa criada.

“Aham, Georgi Popovich, desde quando você precisa de tempo?! Aurora só precisou de um beijo e já saiu de uma soneca para um casório!”

Georgi não sabia porque aquela comparação era tão tragicômica para ele.

“Eu não sou Aurora.”

Não Aurora, não a princesa, nunca no papel de protagonismo. Nunca.

“Mas é o príncipe!”

Um príncipe? Georgi riu, desconcertado. Perguntava-se se, tal como ele, Carabosse não se sentiria estranha ao ser associada com a realeza depois de tanto tempo em segundo plano.

.:.

Depois do incidente envolvendo o atraso extremo de Aleksandr Osipov, as pessoas descobriram que Irina Lagutina tinha mais em comum com Feltsman do que a amizade, uma potência vocal que alcançava decibéis o bastante para ser ilegal. Desde então, Anya nunca mais relatou nenhum atraso, como também não arranjou mais tempo para tal. Compensando com afinco o que a treinadora chamava de relaxo — ela teria problemas por conta daquela língua comprida, Yakov já havia alertado… —, a dupla de dança no gelo estava passando por um treino olímpico, monitorando cada tempo dentro e fora do gelo, acompanhando as refeições ao ponto da cena de Irina cobrando Osipov de comer até o último legume no prato nutricionalmente equilibrado, se tornar uma piada chegada além das fronteiras da recepção. Era muito divertido para Georgi ver Aleksandr andando por aí tão contrariado, mas ele ainda sentia falta de Anya…

Inspirado por Irina, Yakov, que sempre confiou na organização de Victor para manter o ritmo dos ensaios, voltou a tratá-lo com a mesma seriedade de quando ele e Georgi eram crianças aspirantes na patinação e aquela interferência tão inesperada em sua rotina estava fazendo Victor se comportar como um infante, com direito a bater com os pés no chão e choramingar. Se um dia ele se jogasse no chão e começasse a rolar, exigindo todos os mimos dos quais se sentia no direito, não surpreenderia ninguém. Tamanha sensibilidade dava-se a falta que ele sentia de passar longas horas na companhia de Sasha e a dramática sensação de estar tendo sua história de amor boicotada. Naquela versão moderna de Píramo e Tisbe, o que salvava sua comunicação com o outro rapaz era a abençoada existência do msn.

Georgi não era tão desinibido quanto o amigo para mandar uma mensagem para Anya, vendo todas as horas possíveis para uma conversa como inapropriadas. Com Irina buscando Aleksandr na porta do quarto toda manhã, seus dias não começavam mais dividindo uma refeição, reduzidas a acenos distantes que conforme os dias passavam, deixavam de serem trocados. Era como voltar à estaca zero. Era como perder Anya.

“Não se perde o que nunca se teve,” Georgi repreendeu a si mesmo, voltando a olhar a lista de composições clássicas a serem usadas na apresentação que estava montando. Enquanto Anya e Victor se ocupavam com seus treinos, ele se ocupava com sua turma e mais doze outros alunos para ensaiar. Yakov havia estendido as cobranças a Georgi, pelo jeito.

Aquilo era tão estranho! A idade adulta não deveria trazer mais certezas e dissipar com as inseguranças da juventude? Por que era tão difícil falar com Pavlova, a jovem de quem se aproximou em pouco tempo e que numa passagem de dias ainda menor, tornou-se novamente a bela mulher que ele apenas via de longe, temeroso de encontrar?

Não ter com quem conversar todos aqueles medos e incertezas que considerava tolos, apenas piorava a sensação inadequada, a visão de insuficiência, de resto. Se naquele cenário profissional Georgi estava sobrando, o que poderia garantir que para Anya e todos os outros, não seria dispensável? Pensando em tudo aquilo, ele deu um tempo das aulas e deixou que seus alunos patinassem livremente pelo rinque antes do horário acabar. Longe do pequeno agito, Georgi sentou em um dos bancos do vestiário masculino e tentou descansar a mente, um desgaste emocional refletido em todo seu físico. Georgi precisava de férias em isolamento total em algum lugar muito paradisíaco para não acabar em estresse constante como Yakov. Tentando mentalizar como seria o cenário ideal para o idealizado ano sabático, ele fechou os olhos, deparando-se com uma praia isolada e de areia fina. Perfeito. Se Georgi deitasse no chão para tirar cinco minutos de cochilo, ninguém poderia julgá-lo.

Sua imaginação já começava a incluir calor e maresia quando passos barulhentos demais para serem uma corrida pelas areias de Koh Lanta invadiram o vestiário, obrigando Georgi a voltar à realidade revestida em cerâmica. Havia sido ilusão demais pensar que, tal como a tranquila praia tailandesa, ele teria ali algum sossego.

“Professor Gooosha!!” Se manifestando da melhor forma que podia, a vozinha fina de Daria o chamou do lado de fora. “Eu caí de novo!”

Mais inconformada do que machucada, a pequena Dasha sempre corria para Georgi, reclamar de todos os erros e mau desempenho que volta e meia a fazia chorar. Sendo uma das poucas crianças sem vigilância constante dos pais durante as aulas, restava a Georgi consolar a menina, que acostumada ao tratamento zeloso, o esperava do lado de fora.

“Já estou indo, Dasha, me espere no gelo, sim?”

Pelos passinhos se afastando, aparentemente Dasha havia aceitado o acordo.

Deixando o banco, Georgi andou até a pia mais próxima, jogando uma dose ou duas de água sobre o rosto, tentando se recompor. Ninguém ali precisava perceber quão abatido estava.

Foi com sorrisinhos inocentes e desdentados que sua turma o recebeu. Aquele bando de crianças, contentes em assumir papéis de biscoitos de gengibre e doces diversos, eram a única coisa que andava inspirando Georgi um pouco de sanidade. Até o fim de dezembro, ele se obrigaria a sorrir para cada lágrima que tentasse forçar saída, independente do motivo que tanto bagunçava seus sentimentos. Era a primeira experiência artística da sua turma que valia a pena, ali. Era o choro medroso e inseguro daquelas crianças que ele teria de lidar antes de qualquer outro. Até o fim daquele ano, nada mais seria importante, nada...

…até Oleg aparecer no rinque.

Popovich só se dera conta daquela visita surpresa ao fim da aula, quando as conversas paralelas passaram a sobressair as das empolgadas crianças de sua turma. Perdendo alguns segundos de sua atenção na porta aberta para o corredor, Georgi tentava descobrir quem ali atraía assim tantas pessoas juntas, sem nenhuma razão específica além da curiosidade natural, quando se deu conta de que Victor, o líder daquele tour interno, trazia Oleg Nikiforov pela mão.

Já fazia dois anos, um período que dependendo do ponto de vista, poderia ser muito pouco ou muito tempo. Para Georgi, parecia uma vida, outra existência.

Enquanto aqueles vinte e quatro meses passados amadureciam as feições finas de Popovich, no rosto de Oleg a mesma passagem de tempo era um pouco mais ingrata. Os olhos, naturalmente fundos, estavam mais acentuados e as olheiras escurecidas não o davam o mais acolhedor dos olhares. No que poderia ser o afastamento da patinação, Nikiforov apresentava uma visível perda de peso, rosto cavado e ombros mirrados que se perdiam dentro do blazer sob medida. Nem mesmo a qualidade da alfaiataria fazia a imagem abatida de Oleg fugir à atenção — e assombro — de Georgi.

A atenção excessiva em cima de sua imagem enfim se fez ciente a Oleg, finalmente notando de quem se tratava, não disfarçou a surpresa seguida de aparente felicidade expressada pelo largo sorriso, ao reconhecer Georgi, do outro lado do rinque.

Popovich poderia ter optado por fingir não ter notado nada daquilo, disfarçadamente dar as costas para a perfeita cena de pai e filho, tão impecável que poderia ter sido encomendada, e continuar se despedindo dos alunos, até mesmo aceitar conversar com as mesmas mães que comentavam tanto sobre sua boa aparência… Mas Georgi não sabia se o que o traía era sua educação ou tê-la como desculpa para justificar o deslizar de lâminas em direção a Nikiforov. Se pudesse dar mais uma de suas desculpas para si mesmo, ele poderia facilmente dizer estar seguindo seu caminho sobre o gelo até Victor. Era uma pena Vitya não estar ciente de nenhum de seus planos mentais, aproveitando a guarda baixa de Yakov para se afastar animadamente em direção a Osipov, tão logo Georgi alcançou o muro.

“Há quanto tempo, Georgi Popovich,” cumprimentou Oleg, oferecendo a mão enluvada. Era estranho vê-lo de perto depois de tudo. “É um prazer revê-lo.”

“É um prazer revê-lo também, senhor Nikiforov.” O que incomodava Georgi, era não ter certeza se falava mesmo a verdade.

“Não tive a oportunidade de falar pessoalmente antes, mas eu sinto muito por sua mãe.”

Aquele tipo de condolência deveria servir como um bálsamo, mas o acertou como uma bofetada.

“Obrigado.”

Sua voz era baixa, fraquejando com a memória daquela tragédia. Naquelas horas ele percebia que os últimos dois anos, quando se tratava de relembrar o incêndio, estavam tão frescos quanto os acontecimentos daquela manhã. Dentro do gelo, sentia que o fogo era incapaz de alcançá-lo, contudo, ao mesmo tempo em que a patinação o protegia daquela dor abrindo bolhas em sua memória, Georgi sentia-se queimar pela culpa; ele não deveria estar ali.

“Parece pálido…” O abalo emocional de Popovich não escapou aos olhos azuis de Oleg, mas o rapaz já não conseguia encará-lo para perceber as sobrancelhas finas franzidas em preocupação. “Não deveria ter tocado nesse assunto, me desculpe.”

Vindo da direção oposta, correndo com os longos cabelos soltos o acompanhando como em um cômico comercial de shampoo, Victor se aproximou com um sorriso enorme, uma felicidade faiscando de seus olhos, brilhantes e cheios de expectativa.

“Pai! Pai!” Aos risos, Victor chamou por Oleg, não parando de saltitar nem quando o alcançou. “Vou almoçar com o Sasha, nos vemos mais tarde?” Um pouco surpreso com o pedido, Oleg só soube rir como resposta. Entendendo risadas como reações positivas, Victor aceitou aquilo como confirmação, voltando o convite para Georgi. “Quer vir com a gente, Gosha?”

Georgi sabia para qual restaurante suspeito Victor ia quando estava acompanhado de Osipov, que com apenas um sorriso conseguia apagar o bom senso da cabecinha avoada de Nikiforov. Almoçar um borsch requentado — sabe-se lá quantas vezes — na companhia de Aleksandr, enquanto precisaria assistir Victor se derreter com cada palavra que o dançarino do gelo dizia? Definitivamente não.

“Ora, Victor, eu já convidei Popovich para me acompanhar.” O tom levemente cúmplice passou despercebido pelas lentes rosadas de sua paixonite, compreendida apenas por Georgi. Era estranho como tanto estava acontecendo em poucos minutos. Oleg nunca precisou de muito mais do que isso para revirar com sua vida.

“É verdade, Vitya.” Georgi também não precisava de muito para se deixar levar; ele era extremamente conivente com desculpas favoráveis como aquelas. “Fica para a próxima.”

“Que pena…” Victor expressou um muxoxo chateado, embora a oportunidade de ficar a sós com Sasha depois de tanto tempo de castigo o fizesse logo recuperar o brilho nos olhos. Ah, ele teria tanta história nova para contar a Georgi por causa daquele almoço! “Então até mais tarde!”

Brilhando, como só ele sabia brilhar, Victor se afastou em direção a Osipov, que provavelmente não tinha ido até Oleg como o bom puxa-saco que aprendera a ser com o pai, por estar muito distraído com o que parecia uma discussão com sua parceira de gelo. Georgi devia um pedido de desculpas à felicidade de Victor, mas o alvo de seus pensamentos conseguiu logo ser preenchido pelo belo rosto de Anya. Georgi não se importava nem um pouco se ela não estava sorrindo, a beleza de Pavlova não conseguia ser manchada com nada.

“Três meses sem vê-lo e meu filho não vai almoçar comigo,” comentou Oleg, bem humorado. Longe deles, Anya terminava de conversar algo com Aleksandr e marchar para longe assim que Victor se aproximou, provocando as pernas de Georgi que por pouco não as obedeceu, correndo em direção a ela. “Não queria se juntar a eles, não é?”

Sem Victor ou Aleksandr se importarem com a saída visivelmente contrariada da dançarina do gelo, os dois rapazes trocaram sorrisos e fizeram seu caminho em direção a saída, levando a leve agitação que os acompanhou até o momento, para longe. Para surpresa de Georgi, já não era mais Oleg quem atraía multidões.

“Não gosto de Osipov.”

Nikiforov riu baixo, imaginando que as razões de Georgi eram as mesmas que as dele.

“Pelo que Victor fala, ele se saiu igual ao pai.” Não podia dizer que Gorki era um bom amigo seu, mas o que o puxa-saquismo do homem lhe ajudou ainda fazia Oleg sentir-se em débito. “De qualquer forma, Georgi,” deixando de olhar o corredor e imaginar para onde os passos de Anya a estavam levando, Georgi conseguiu encarar Oleg, enquanto seu semblante fechado atenuava lentamente. “O convite era sério. Se quiser se juntar a mim, adoraria companhia para hoje.”

Uma chance de poder passar algumas horas na companhia de Oleg, por convite do próprio. Seu eu de cinco anos teria sonhado com algo assim. Seu eu atual não se deixaria levar facilmente pelos desejos infantis. Aquele era um golpe muito grande em seu coração que ainda guardava traços de ingenuidade.

As ilusões e expectativas sonhadoras lhe pertenciam desde que se conhecia por gente, e desde esse mesmo período de tempo, ele conhecia Margosha. Mas Margosha não estava mais ali. Depois de tudo o que não tinham lhe dito e de todos os segredos que permaneciam calados, aquela situação apenas o fazia sentir-se como um traidor. Havia tanto o que podia falar sobre Oleg, tantos argumentos contra apenas da pouca vivência de seus vinte anos, que nem precisava saber mais nenhum detalhe do que ele e sua mãe viveram para estar ciente não precisar tê-lo por perto.

“Professor Gosha, olha só pra mim!!”

Inocente, a criança ignorava todo e qualquer conflito interno que a rodeasse, pronta para mostrar sua nova conquista da patinação, o elemento que já a fazia se ver nas principais competições mundiais; um sit flip. Aquela imagem, tão pura e inocente, o resgatou do rancor, fazendo Georgi aplaudir com energia, uma plateia de um homem só, ovacionando aquela menina que não deveria ter mais que sete anos e a troca completa dos dentes de leite.

O giro oscilava e aquele joelhos mal dobrados estavam longe de ser a postura perfeita, mas existia tanta felicidade naquele sorrisinho desfalcado, que era impossível que aquela imagem não evocasse lembranças muito semelhantes. O mesmo giro, o mesmo brilho esperançoso, a expectativa… Oleg jamais imaginaria que uma cena tão adorável fosse um resgate tão amargo de sua memória.

“Incrível, Dasha, você melhorou muito desde que começou a treinar!” Contente, a pequena Daria não conseguia prender as risadinhas baixas, apertando os olhinhos verdes enquanto o fazia.

“Eu fiz o que o senhor pediu, professor, eu me concentrei em um ponto fixo e não caí!” Aquela era, sem dúvida nenhuma, a maior realização de sua jovem vida. Ela nem se lembrava mais que há menos de meia hora estava chorando por uma queda boba.

“Eu não disse que você conseguiria?” Inflando-a com um pouco mais de confiança, Georgi encorajou a recente conquista, ganhando mais uma das amáveis risadinhas como recompensa. Se não precisasse do dinheiro para cobrir seus gastos num mundo capitalista, Georgi poderia muito bem viver apenas daquele tipo de momento. “Parabéns, Dasha! Isso só foi possível porque você continuou insistindo e treinando!”

“Com trabalho duro!” ela se lembrou, aquele encorajamento disfarçado em conselho que Georgi sempre dava aos alunos mais desanimados. E pensar que há poucos meses, Daria quase havia desistido. “Eu vou fazer de novo! Pode me ajudar, professor? Por favorzinho?”

Ah, aquela carinha… Como negar alguma coisa para aqueles olhinhos pidões?

“Claro que eu ajudo, Dasha!” Depois de respondê-la, ele se virou para Oleg, sem conseguir entender o que o olhar daquele homem estava significando. “Sinto muito, senhor Nikiforov, mas não poderei acompanhá-lo hoje.”

Georgi deu as costas para Oleg antes de ter sua decisão questionada. Para quem por tanto tempo pôde escolher dar as costas ao mundo, era estranho ver, como fora em seu passado, tantas costas se voltarem para longe.

“Claro. Uma boa aula para vocês.” Como se fosse um fantasma, ninguém pareceu ouvir Nikiforov.

Oleg Nikiforov estava morto. É, ele tinha que começar a se acostumar com aquilo.

.:.

Com os fones encaixados na orelha, Georgi ouvia repetidas vezes todos os trechos originais das composições escolhidas, comparando-as com os recortes arranjados para a apresentação. Produzir tudo aquilo paralelo aos estudos por vezes o fazia travar e se esquecer momentaneamente do que estava fazendo. Eram nessas horas que Georgi se via obrigado a parar um pouco e respirar fundo, tentando reorganizar as ideias antes de algum slide de educação infantil acabar sendo finalizado com um arranjo musical.

Tendo sua compreensão do mundo afetada pelo cansaço de esforço mental ininterrupto, Georgi não ouviu seu nome sendo chamado nas primeiras quatro vezes, nem a embalagem de isopor ser colocado a sua frente. Somente após uma conhecida mão enluvada acenar na frente da tela do notebook, Popovich notou Oleg ali, divertindo-se às suas custas. Ou às custas de sua distração, ele também não podia ser assim tão severo gratuitamente.

Com a guarda alta dentro de si, Georgi abaixou os fones, pausando o trabalho feito. Seus ouvidos pareciam pulsar pelo tempo em que foram submetidos a tantas músicas diferentes, em tempos e recortes mil, um prelúdio da dor de cabeça que o acompanharia mais tarde.

“Victor comentou o quanto você trabalha, por isso achei que não sairia para almoçar após sua aluna ir embora.” Oleg disse com tanto conhecimento fornecido pelo seu principal informante e traidor de Georgi, que o rapaz quase sentiu-se ofendido. “Estou errado?”

Por mais contrariado que estivesse, não podia dizer o contrário.

“Não, senhor. Mas não será por muito mais tempo, só preciso terminar algumas coisas.”

“Se tem algo que eu aprendi, é que refeições negligenciadas não garantem o sucesso de ninguém.” Puxando o comprido banco posicionado em frente a Georgi, Oleg tomou assento, sorridente e confortável em dividir aquela refeição encomendada com Popovich. “Gosta de pelmeni?”

Georgi não era uma pessoa de paladar difícil, principalmente quando não era ele quem estava pagando pela refeição.

“Para mim está ótimo, muito obrigado, senhor Nikiforov.”

“Quanta formalidade…” sorriu Oleg, abrindo a tampa de uma das embalagens. A porção unitária era generosa, de modo que ambos poderiam facilmente ter dividido apenas uma refeição. “Nos conhecemos há tanto tempo, pode chamar pelo primeiro nome, se quiser.” Georgi não fazia ideia do que fazer com aquela informação.

“Pelmeni acompanha bem com vodka quente, quer que eu peça uma dose para o senhor na cozinha?”

Surpreso pela oferta, Oleg arregalou os olhos, parecendo considerar a ideia antes de negá-la por completo.

“Oh não, rapaz, está muito cedo para beber! O que você está pensando, quer me embebedar?” rindo, ele forçou aquela piada, mostrando-se sem graça logo depois. “Bom, a fome ruge e arranha, vamos comer.” Apanhando os talheres plásticos, Nikiforov cutucou uma das trouxinhas recheadas de carne, querendo logo encher a boca de comida para não correr o risco de falar mais alguma coisa que deixasse Georgi Popovich com aquela expressão neutra tão desconcertante.

Levou doze mastigadas e dois pelmeni para Georgi finalmente respondê-lo;

“João e Maria?”

No meio de mais uma mordida, Oleg o encarou de volta com a mesma surpresa.

“Você conhece a ópera?”

Dando o primeiro sorriso sincero desde a aparição de Oleg, Georgi virou o notebook para o outro homem ver a programação de fim de ano que ele cuidava com tanto afinco, uma versão colorida, gelada e bem menos traumatizante do conto de fadas alemão, com leve inspiração na ópera composta por Engelbert Humperdinck.

“Tem me deixado louco.”

“Então é nisso que vem trabalhando?” Sorrindo para a detalhada planilha de programação e fluxogramas medindo seu avanço, era de se esperar o cansaço de Georgi. “Parece bem complicado para uma apresentação de turma infantil iniciante.”

“É, confesso que me excedi na idealização dessa peça,” rendendo-se à leveza na qual a situação se encaminhava, Georgi se permitiu apoiar o rosto cansado em cima do braço, dobrado sobre a mesa, quase deitando o rosto dentro da comida. “Mas as crianças estão se divertindo.”

“Se divertindo? A citação das “crianças-biscoitinho” me tirou o sono quando eu vi a peça pela primeira vez e eu devia ter uns quinze anos!”

Georgi riu alto daquela informação, totalmente inusitada à imagem que todos sempre fizeram do ambicioso e ridiculamente simpático Oleg Nikiforov. A presença de Oleg ali já não lhe fazia sentir tão mal. Finalmente, Georgi substituiu a guarda pelo garfo descartável, acompanhando, em silêncio, a refeição. O pelmeni estava muito bom.

“Me desculpe por não ter te procurado após a tragédia.” O pedido fora tão sincero e inesperado, que Georgi deixou de olhar o próprio prato para encarar Oleg, notavelmente surpreso. Ele havia entendido bem? Havia existido uma situação há dois anos onde falar com Georgi havia sido cogitada?

“Está tudo bem, senhor, eu nunca esperei uma posição da sua parte.” Aquela era a verdade e foi dita com a maior delicadeza possível. Georgi não esperava, porque teoricamente, ninguém sabia sobre seu parentesco com Oleg, nem o envolvimento do ex-patinador com a figurinista do Bolshoi. Como ele esperaria os pêsames de uma pessoa que não possuía consigo nenhuma ligação? “Mas obrigado por falar agora.”

Em silêncio, Oleg engoliu aquela verdade com o caldo amanteigado, de acordo com as palavras de Popovich. Que estranho era sentir culpa pelo óbvio.

“Se eu posso perguntar,” Nikiforov começou, aguardando pela permissão silenciosa de Georgi. “Aquela moça que faz par com Aleksandr, você e ela…?” O rubor chegou ao rosto de Georgi antes que ele tivesse a chance de inventar alguma desculpa. “Já entendi, deu para ver de longe seu interesse nela.”

“Não é isso, nós não temos nada!”

“Mas pelo visto, você queria.” Divertindo-se com o nervosismo de Georgi que nada conseguia dizer para a própria defesa, Oleg deixou o garfo de lado. “Espero que vocês deem certo.”

Era uma surpresa muito boa e positiva ouvir aquelas palavras de alguém que não era Victor, mesmo que esse alguém também fosse um Nikiforov. Parecia mais sincero, uma vez que não existia nenhum interesse por trás daquele desejo.

“Obrigado. Eu também-” Se interrompendo no meio daquela confissão, Georgi tentou entre um suspiro e outro, decidir se era uma boa ideia estar falando aquilo com Oleg. “Eu também gostaria, senhor, mas não sei se vai deixar de ser um desejo.”

Evidentemente Oleg não era o maior exemplo de uma pessoa entendida em relacionamentos, mas não deixava de ser um alívio poder falar aquilo para alguém. Se existisse um atalho para aquela situação, ele aceitaria ela mesmo vinda do próprio diabo.

“Não vai saber se não tentar. E não falo de insinuar, mandar indiretas, nada disso, rapaz, se quer uma resposta concreta, seja ela negativa ou não, precisa chegar diretamente na pessoa e conversar, ser sincero. Um bom diálogo pode salvar o mundo.”

A surpresa novamente se fez visível nos olhos de Georgi. Aquelas palavras eram tão sábias, tão verdadeiras, certeiras demais para uma pessoa que aparentemente não as usava. Deveria existir algum provérbio conhecido por Yakov para aquela situação, um provérbio bem velho.

“Obrigado pelo conselho. Vou tentar criar coragem até janeiro.” Oleg riu da insegurança do rapaz, que se impunha até uma data limite para conversar com Anya.

“Por nada, fico feliz em poder falar coisas desse tipo, Victor sempre lidou sozinho com essas situações,” comentou, lembrando-se de como o filho sempre manteve em segredo as aventuras adolescentes, embora Oleg soubesse desde sempre decifrar a razão romântica por trás de tanta afobação. “Fico pensando quando ele me apresentará uma namorada séria. Claro, se ele quiser namorar sério um dia.”

Georgi achou melhor apenas dar uma risadinha conveniente e voltar a comer. Se Victor não havia contado, não seria Popovich o primeiro a fazer isso, nem direito seu aquilo era.

“Mas então, Georgi, se quer esperar até janeiro para falar com a moça, isso significa que irá assistir às nacionais?”

“Eu sempre assisto.” Aquilo não dependia de ninguém para acontecer.

Oleg conseguia identificar o desconforto naquela afirmação. Ele sentia a mesma coisa.

“Sente falta de patinar.”

“Muita.” A resposta quase atropelou a afirmação. “E eu sei que faço isso todos os dias, trabalho com isso, mas…”

“Não é a mesma coisa, não é?”

“Nunca é a mesma coisa,” concordou, sentindo seu interior se esvair lentamente de todas as palavras guardadas ao longo daqueles dois anos. “Sem uma plateia para fazer coro às suas falhas ou vibrando pelas boas execuções…”

“Sem o nervoso que antecede a competição, o resultado no placar…” Oleg também tinha uma lista mental a somar com Georgi.

“É querer ultrapassar os outros patinadores, enquanto deseja que eles se saiam bem.”

“Eu nunca quis um rival meu se saindo bem!” Georgi, ao contrário do que deveria e mandava sua consciência, riu. “Não ligue para mim, toda vida fui assim.”

Toda vida, era o que dizia Oleg? Isso incluía a vida que ele passou ao lado de Margosha?

“O senhor sente falta de alguma coisa? Sabe, daquele tempo?”

Era um desejo traidor aquele. Não fazia sentido querer que Oleg sentisse falta de sua mãe, mas Popovich sentia que ela merecia. Não uma pessoa como Nikiforov, mas uma somatória de pessoa sentindo sua perda, um mundo que não a conheceu e não ovacionou direito a existência daquela mulher incrível. E assim como esperado por Georgi, Oleg não respondeu.

Para sorte de ambos, prestes a mergulharem em um desconfortável e culposo silêncio, Victor surgiu risonho e saltitante, buscando pelos dois. Provavelmente algum funcionário havia comentado ter visto Oleg almoçando junto a Georgi, o que para Victor era perfeito, por encontrar no pai um protetor dos sermões de Yakov, e em Georgi, um confidente para relatar em detalhes a fuga daquela tarde.

“Boa tarde, esfomeados!” Aproveitando-se da liberdade que o parentesco lhe dava, Victor se abaixou para abraçar Oleg, acidentalmente lembrando Georgi qual era seu lugar. “Pai, finalmente alguém conseguiu fazer o Gosha comer na hora certa!”

“Valeu a pena pela companhia.” Sorrindo para Popovich, Oleg não chegou a notar que a suavidade havia deixado a expressão do jovem estudante. “Onde está seu amigo?”

“Foi ligar para o pai dele, aparentemente ele virá antes da nossa viagem para a final do Grand Prix, talvez até nos acompanhe, pai!” E o olhar brilhante de Victor para Georgi gritava um muito entusiasmado “já imaginou se eu viajar com meu sogro?!”. Todavia, nem ele, nem Oleg, conseguiram reagir de forma positiva. Não que Victor tivesse se importado em notar.

“Eu agradeço pelo almoço, senhor Nikiforov, mas acho melhor ir terminar minha peça.” Dando uma desculpa qualquer, Georgi se levantou, trazendo o notebook junto. Já que o assunto ali começaria a envolver Osipov, ele queria estar bem longe.

“Boa sorte com o trabalho, Georgi. Boa sorte com aquele assunto, também.”

“O quê?! Que tipo de assunto?!” Traído, Victor estava pronto para deitar no chão e exigir respostas. “Eu sabia que deixar vocês para trás seria um erro, o que é que vocês estavam falando de mim?!”

Rindo de tanto drama, Oleg continuou olhando para Georgi, o observando até que o rapaz deixasse o refeitório. Era estranho demais estar se importando tanto.

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A Rússia conquistar o ouro pelos patins de Victor não era surpresa para ninguém, mas mesmo assim, a mídia continuava a mimar o campeão como se cada quad flip fosse uma novidade. Mal Nikiforov pode pousar seus pés no aeroporto de Pulkovo e lá estava a recepção de câmeras e pôsteres celebrando seu brilhante retorno ao lar, sem deixar escapar absolutamente nada, o que incluía Oleg, os longos cabelos platinados do medalhista e o chaveiro particular que apareceu em cada frame das últimas semanas, Aleksandr Osipov. Só não o chamavam de sombra porque esse título já cabia a Georgi.

Com a amizade entre Victor e Sasha trazendo cada vez mais luz sobre o dançarino do gelo, muito começou a se especular sobre o desempenho do rapaz, até então, meio ignorado pela mídia. Aos poucos, um fã clube estava nascendo em volta de Osipov, clube esse que ignorava sem remorsos a existência de uma segunda pessoa, a razão pela categoria competida por ele ser em dupla. Anya já nem tantava mais se fazer relevante em todo aquele circo, a pessimista certeza de que todo o árduo trabalho cultivado ao longo dos anos, seria jogado fora. Com os vinte e dois anos recém completados, Anya sentia ter perdido muito tempo de carreira. Aleksandr era a exibida anunciação do fim.

Não apenas Victor voltou a São Petersburgo trazendo a vitória, como a chegada de Sasha junto a ele, fez brotar na recepção do centro de treinamento, Gorki e sua esposa. Foi quase um susto para Georgi chegar para trabalhar em uma manhã gélida e se deparar com o casal que ele conhecia unicamente por foto. O que sobrava de sisos em Aleksandr, certamente faltava em sorriso na mãe.

Georgi não se lembrava de ter conhecido Svetlana Osipova, mas podia ver de onde Aleksandr se parecia com os pais. O nariz de ponta afunilada com certeza era herança genética dela, sempre arrebitado e intrometido. Georgi só não estava certo quanto a cor dos cabelos, um acinzentado apagado que enfeitava em desalinho a cabeça de Sasha, mas que em Svetlana ganhava os cotovelos em tom descolorido. Ela tinha os olhos afiados em tom indistinguível e uma eterna expressão desgostosa, que Georgi não tinha bem certeza se atenuaria com a estadia em São Petersburgo.

Disfarçando a surpresa e estranho interesse no casal, Georgi abaixou a cabeça e pegou o corredor contrário ao caminho normalmente feito por ele, desejando poder fugir de mais uma pegadinha do passado. Se Aleksandr o importunava quando criança, de algum lugar ele havia aprendido.

“Veja, Sveta, aquele é o menino de Margosha!”

Não bastava apenas gritar anunciando a presença de Georgi, Gorki também fazia a indelicada questão de esticar o indicador e ter Popovich mirado na ponta da falange. Com toda certeza, Aleksandr não negava as raízes.

“Bom dia e sejam bem-vindos.” Nem Georgi negava as dele. Se fosse preciso cumprimentar aquela gente, ele faria isso. “Eu preciso me dirigir ao rinque, estou ocupado com um teste de som, mas por favor, fiquem à vontade.”

“Educado como a mãe,” riu Gorki, transparecendo um saudosismo mais falso que os sorrisos do filho. Georgi não gostou nem um pouco de ter Margosha recordada por Osipov.

“Mas a cara é do pai.”

O desgosto passou para ser substituído por uma sensação gélida subindo pela espinha, terminando por enrolar em seu pescoço. Georgi não soube dizer o que era mais perturbador naquela mulher, se o olhar ou a certeza de que sua ligação sanguínea com Nikiforov não era secredo para ninguém.

Coroando a situação constrangedora, Oleg saiu pelo corredor que Georgi pensava em entrar, quase dando meia volta ao perceber o casal Osipov parado junto à porta. O sorriso estranho dado por Svetlana e o marido, explicava o que os unia como casal.

“Meu grande amigo Oleg!” celebrou Gorki, como se isso fosse um prêmio, o tipo de medalha que ele nunca na vida recebera enquanto patinador. “Bom te ver de novo!”

“Como vão, Gorki, Svetlana?” A habilidade de Oleg em lidar com o público não estava bem calibrada aquela hora da manhã, resultando em um cumprimento muito aquém a expansão esperada. “Se procuram pelo filho de vocês, ele está no refeitório com a treinadora Lagutina.”

“Ah, com certeza, estamos ansiosos para ver nosso campeão-!”

“Que ótimo, não? Georgi!” Percebendo que Popovich aproveitava a situação para sair discretamente, Oleg tomou a atitude não muito inteligente de interromper Osipov usando Georgi como artifício. O olhar de Svetlana afiou ainda mais depois daquilo, como uma adaga. “Victor esqueceu de te entregar o CD que havia emprestado no meu carro, se importa em me acompanhar? Tenho um compromisso depois daqui, não posso demorar.”

É claro que não havia CD nenhum e provavelmente todos ali sabiam disso, mas Georgi não se importaria em concordar com Oleg se fosse para fugir da sensação gélida que era ter os olhos atentos do casal de abutres sobre si. Ele tinha a desconcertante impressão de que nem durante o teste de som teria paz.

“Claro, só preciso guardar minha bolsa,” disse, alto o suficiente para deixar claro seu rápido regresso. Georgi não poderia ir muito longe sem seus pertences.

O casal Osipov não estava mais na recepção quando Georgi voltou para a entrada, nem Oleg o esperava, fazendo-o considerar voltar a decisão inicial de repassar a sequência musical da apresentação com dias contados para acontecer. Contudo, provando a Georgi mais uma vez estar errado, os faróis de um carro estacionado mais adiante piscaram algumas vezes. De dentro do veículo, com a identidade protegida pelo vidro fumê, Oleg o esperava. Georgi não resistiu muito em deixar o aquecimento interno e meter as mãos nos bolsos para a breve caminhada até o carro alugado, se esquecendo brevemente não ter nada a fazer ali, uma vez que o problema Osipov já estava sanado.

“Hey, rapaz, não fique nesse frio, entre!” convidou Oleg, aumentando a temperatura interna. Sem entender, mas também sem desconfiar, assim Georgi fez. “Achei que não fosse conseguir me livrar deles,” riu, aliviado pela façanha. “Principalmente de Gorki, ele consegue ser bem inconveniente às vezes.”

“O filho teve a quem puxar.” Incentivado a manter a conversa, Georgi não viu problemas em somar uma piadinha àquela fofoca inofensiva.

“Nem me lembre disso, estou certo de que Osipov dará um jeito de querer passar o ano novo conosco.” O conosco incluía apenas Oleg e Victor. Nikiforov também não apreciava muito bem a ideia de Aleksandr somar ao festejo. “Está muito ocupado ou podemos dar uma volta?”

Ocupado não era exatamente a palavra. A peça de Georgi já estava pronta e os ensaios finais começariam apenas após o almoço, ele só estava ali porque seu perfeccionismo e apelo artístico falavam mais alto.

“É algo que o senhor queira falar comigo?”

“Sim e não.” A resposta evasiva mais atrapalhava do que ajudava. “É um pouco complicado para ser conversado aqui, entende?” Gesticulou ele, sem tirar as mãos totalmente do volante revestido em couro. “E eu também preciso te entregar uma coisa.”

“Que coisa?” Georgi não estava pegando nenhuma dica daquela conversa.

“Está no meu flat.”

“Assim como o CD que emprestei ao Victor?” Oleg sorriu com a provocação, girando a chave na ignição.

“Esse é de verdade,” piscou, porém mantendo a expectativa. “Então?”

“Se não tiver nada, ajudarei os Osipov a terem uma linda ceia em família com o senhor.”

Divertindo-se com Georgi, Oleg tomou aquelas palavras como incentivo e seguiu trajeto até o condomínio de apartamentos onde estava instalado. Não houve muita conversa ao longo do caminho, apenas comentários genéricos sobre o tempo e a confirmação do que Oleg já sabia acerca da apresentação temática organizada por Georgi. Victor fez muita questão de falar e mostrar todas as fotos da pré-produção informal de Popovich naquela bagunça colorida chamada de ateliê. Ele até parecia certa costureira…

A fachada do prédio que abrigava os famosos apart-hotel no ponto alto de São Petersburgo, trazia a diferença refinada garantida apenas por cifras. A cada metro percorrido em frente ao estabelecimento, um novo detalhe caro e muito dourado somava um zero a mais naquela contagem mental feita por Georgi, o tipo de gasto que nem com muitos anos de trabalho e dinheiro poupado o dariam direito a desfrutar. Chegava a ser desconfortável estar ali com suas roupas reformadas, sabendo ter a meia de lã remendada por dentro da bota.

Confortável com o ambiente bem iluminado, Oleg assumiu a frente, guiando Georgi atrás de si, tímido como a criança que fora. Do pouco lembrado daquela época, ele se pegava pensando se Nikiforov o teria levado a um lugar como aquele quando o ofereceu um jantar com borsch.

“Gosto desse tipo de apartamento porque eles são pequenos como os que eu costumava morar antes de ir embora, mas confortáveis o bastante para eu não me sentir assombrado por aquela época.” Oleg tentou fazer um comentário levemente engraçado, mas que resultou em um amargo na própria boca. Que jeito horrível de lembrar do passado. Dividindo do mesmo julgamento, Georgi nada respondeu.

Numa coisa, Oleg tinha razão, o flat tinha o tamanho de um apartamento russo padrão, com uma diferença moderna e tecnológica permitindo aquecimento interno individual, que dispensaria totalmente o par de luvas que Nikiforov insistia em usar. Aquele luxo, Georgi adoraria ter.

“Como o espaço do quarto não possui parede divisória, por favor, feche os olhos ou olhe pela janela, quero fazer uma surpresa.” Sem entender onde tudo aquilo iria chegar, Georgi permaneceu olhando para Nikiforov desconfiado. “Não terá graça se você continuar me olhando assim.”

“Já não está tendo graça, senhor Nikiforov.”

Georgi não havia sido grosso — ele gostava de crer não ter sido —, mas a falta de clareza o deixava receoso.

“Certo…” Por fim, Oleg acabou se rendendo, sem nunca perder o meio sorriso. Desconfiado, Georgi o observou mancar levemente até o criado de gaveta única ao lado da cama arrumada, retirando de dentro dela, uma pequena caixa aveludada. “Que tal um presente?”

Por isso, Georgi não esperava.

Surpreso e sob a mira divertida de Oleg, Georgi apanhou a caixinha com as duas mãos, costume infantil de quando ganhava algo considerado muito legal e precioso, necessitado de cuidados extremos para preservação eterna. Qualquer fosse o recheio daquela caixa, acabara de entrar na lista de preciosidades, apenas por lembrá-lo de tal época.

“Posso abrir?”

“Claro! É seu!”

Meio empolgado, meio temeroso, Georgi abriu a tampa da caixa de uma só vez, como se puxasse o lado adesivo de um band-aid cobrindo há muito tempo um machucado. De certa forma, a decisão fora certeira:

“Nana?”

Os olhos azuis de Georgi encheram-se de lágrimas. Ele não se lembrava, mas sim, era verdade, os pedaços quebrados de Nana, seu amuleto de força, responsável por trazer em seu tom escuro as principais lembranças boas de toda uma vida, foram recolhidos por Nikiforov momentos antes de seu programa longo, com a promessa de ter a jóia refeita como nova… Ele havia cumprido. Oleg Nikiforov havia cumprido sua promessa.

Sorrindo satisfeito para a alegria comedida de Georgi, Oleg o consolou com leves batidas em um dos ombros antes de se afastar, afirmando precisar fazer uma ligação, ou qualquer outra coisa que para Popovich não foi importante no momento. Tudo o que Georgi queria era ver cada detalhe da peça recuperada, desde o polimento refeito ao novo modelo de corrente acompanhando o pendente.

Era possível reconhecer um leve remendo cortando Nana em duas, mas o acabamento era tão profissional que olhos desatentos jamais notariam. Trazendo a peça no meio da mão, Georgi conseguia sentir seu peso, bem maior do que se lembrava, devido ao adorno prateado, grosso e bem preso, que margeava e protegia a pedra. No verso do pingente, o acabamento em prata de lei polida, refletia como um espelho, onde era possível ver o sorriso de Georgi. Linda e de muito bom gosto.

Com o monólogo de Nikiforov ao fundo, Georgi abriu a corrente, grossa e de fecho firme para aguentar o pingente reformado, e o colocou em volta do pescoço, rindo aliviado em ter Nana de volta. Sua mão logo buscou pela joia, a memória corporal daquele cacoete jamais esquecido, apertando a pedra e colhendo dela, toda a força esvaída nos últimos dois anos.

A pressão dos dedos, contudo, fez Georgi sentir estalar no meio da palma algo que não era a força emocional ligada ao objeto; era um clique baixo, acionado por um de seus dedos, na lateral da forma ovalada, responsável por abrir o pingente como um pequeno e brilhante livro. Nana viera melhorada, um relicário que possibilitava guardar mais do que a pedra sozinha tinha. O que Oleg colocara no espaço vazio?

Dentro do relicário, uma foto de Margosha.

“Uns vinte minutos? Tudo bem, Drozdov, acredito que não vá atrapalhar. Ok, ficamos no aguardo.” Desligando o celular, Oleg respirou fundo, enchendo os pulmões de ar e o psicológico de coragem, antes de se virar para Georgi e notá-lo olhando fixamente para a foto da mãe. “E então? Ficou ótima, não? Eu te disse que o ourives era excelente! Foi Victor quem me ajudou a escolher o modelo!” Sem resposta, ele aguardou, até a espera ser maior do que a expectativa podia suportar. “Victor também pensou que por se tratar de uma espécie de amuleto, seria melhor se a corrente fosse de um tipo reforçado, assim não tem perigo de perder...” Ainda, sem resposta. “Você- você não gostou? Victor achou que iria gostar, foi ele quem me deu a dica do relicário-”

“Victor tem um ótimo gosto,” ironizou, sem erguer o olhar para Oleg.

“Sim, eu acho que sim, Victor sempre teve muito interesse nesse tipo de coisa.”

“Vocês se dão tão bem, não é? A família perfeita.”

Nikiforov não entendeu a consternação naquelas palavras, mas não pôde ignorar a verdade sendo esfregada em seu rosto.

“Não foi sempre assim, é claro. Eu ainda sinto como se estivesse muito distante, de Victor, como se tivesse perdido muita coisa… E o pouco que tenho resgatado, não é capaz de completar tudo o que não sei.” Completa a confissão, ele tentou voltar ao pingente. “Só não entendo o que isso tem a ver com essa pedra-”

“Tive a terceira melhor nota em Fundamentos e Práticas da Educação Infantil, nesse semestre.” Georgi o interrompeu, aquela falta de respeito pelo discurso alheio que não era de seu feitio.

Confuso com o que acabara de ouvir, sem conseguir entender aquelas palavras, Oleg continuou com os olhos sobre Georgi, que agora o encarava com notável dor. Notar as lágrimas margeando os cílios negros e o franzir das sobrancelhas evidenciar a expressão desnorteada de Popovich, terminou de dar aquele nó na mente de Oleg, que continuou calado, esperando que opções surgissem em sua frente para ter ao menos a oportunidade de escolher por alguma resposta.

“E meu trabalho instruindo turmas infantis, fez meu artigo em Psicologia da Aprendizagem ser tão elogiado que ele foi, desde o semestre passado, integrado como opção no material de consulta sugerido aos alunos.” Aquele era de fato um feito impressionante, mas Oleg ainda não conseguia entender. Rindo nervoso, Georgi moveu as mãos em um sinal de incentivo, tentando com isso arrancar alguma palavra de Nikiforov, qualquer que fosse. “Vamos, pergunte- pergunte sobre mim.”

“O- o quê?”

“Pergunte sobre mim,” insistiu Georgi, deixando o tom de voz cair junto com poucas lágrimas. Oleg não conseguia entender aquele abalo emocional tão de repente, paralisado da cabeça aos pés, evitando até mesmo respirar de forma minimamente ruidosa. “Pergunte, sobre mim!” Tão inesperado foi o rompante nervoso de Popovich, que Nikiforov se viu agitado pela raiva repentina, trazendo o celular que segurava em frente ao corpo. “Você também não sabe nada sobre mim, então pergunte! Vamos, pergunte qualquer coisa! O que deseja saber? Ou será que, se tratando de mim, você não deseja saber?!”

“Georgi, eu não-” Mas nem Oleg saberia dizer qualquer que fossem as palavras que poderiam acalmar o jovem em sua frente.

“Diz ter perdido muito sobre Victor, não é? Bem, eu passei minha vida inteira ao lado dele e posso dizer com certeza que eu nunca ouvi uma pessoa falar tanto sobre Narkissa Nikiforova em toda minha vida!!” Berrou com rancor, uma mão sobre a pedra, a outra fechada ao lado do corpo. “Metade da minha infância em São Petersburgo foi preenchido de Life and Love!” A ironia gritada trouxe ainda mais lágrimas para seus olhos, um sentimento totalmente contrário ao memorável programa da falecida patinadora. “E ele só sabia falar dela, falava dela o tempo todo e me acordava só para mostrar a foto preferida dela, a mãe que ele não tinha mais e que eu estava sendo privado de ter!” Engasgando entre um soluço e outro, Georgi prosseguia falando sentimentos e amargores que não se lembrava em ter guardado. “Tudo sempre acaba no Victor para você, logo o Victor que a vida toda só olhou para ela! Mas era eu, eu quem toda vida olhava para você, pai-”

Georgi se calou, levando as duas mãos aos lábios, como se aquele ato pudesse pegar as palavras soltas no ar e ele as conseguisse engolir ao esquecimento. Não era aquela sua intenção, não era para ele ter dito aquelas palavras… Tão rápido tinha sido a raiva explosiva, foi o arrependimento, pressionando os dedos pálidos sobre os lábios trêmulos e lavando seu rosto de lágrimas.

“Como…?”

Georgi não conseguiu erguer os olhos para encarar Oleg — também não era sua obrigação, não era o único ali a evitar a verdade —, incapaz de testemunhar em um primeiro momento o derrame de lágrimas que o mundo da patinação caçou por tantos anos. Que material inédito era ver Oleg Nikiforov aos prantos.

Afrouxando os dedos, ainda mais pálidos que o normal, Georgi ainda soluçou aquelas palavras arrependidas, sem forças para calar a dor ou erguer os olhos. Depois daquele rompante, ele não sabia dizer se ainda era capaz de erguer a si mesmo. Era irônico perceber que o silêncio no qual Oleg se escondeu — ou teria escondido os filhos? — durante tanto tempo, era seu espaço mais seguro. O conforto do conformismo era mesmo muito cômodo.

“Mantenha aquele garoto nas sombras…” murmurou, palavras aquelas que lhe doíam muito mais que qualquer outra algum dia poderia ferir. “Me chamava de “aquele garoto”...” Triste e sentindo aquela cicatriz ser remexida até estourar todos os pontos cuidadosamente cultivados desde então, Georgi sentiu o corpo todo fraquejar e com ele sua voz, saída num sussurro. “Você… quando eu não estava por perto, eu sequer tinha um nome para você…”

No fim, Nana havia sido, de fato, o curativo arrancado daquela ferida antiga. Georgi já estava arrependido de ter puxado aquele band-aid.

“Foi Yakov?” Oleg não sabia porque buscava o responsável pela verdade revelada. Quem ali era o único culpado, mesmo?

“Não foi necessário,” confessou, ainda aos prantos. “Eu te olhava tanto, te buscava tanto, uma hora eu acharia…” E o que Georgi havia achado, era um desespero sem fim. “Eu te olhei por tanto tempo, que acabei esquecendo dela, como você se esqueceu quando a abandonou!” Aquela acusação alarmou Oleg.

“Não! Eu amei a sua mãe!”

“Você não ama ninguém! Só sabe amar a si mesmo!”

Abrindo o relicário, Georgi lamentava todos os pormenores colecionados a respeito de Nikiforov e ignorados a respeito de Margosha. Ele sempre trouxe em suas coleções, recortes sobre o patinador, e sobre sua mãe, a saudade. O sorriso daquela foto, lhe era negado; para Nikiforov, havia sido uma verdade. Quantos anos Margosha tinha naquela imagem? Parecia tão jovem! Oleg não tinha esse direito, o direito de guardá-la em souvenirs, de manter seus sorrisos, negar a Georgi um passado e depois presenteá-lo com migalhas revestidas em prata.

“Sabe por que eu não patino mais?” questionou, aquela pergunta que não precisava de permissão para ser dada a resposta. “Porque toda vez que eu piso no gelo, eu imagino como minha mãe deve ter morrido. Mesmo que a autópsia tenha indicado asfixia, eu só consigo pensar em fogo, gritos, sofrimento e dor… Pensar que enquanto eu me sentia realizado por estar ao seu lado, ela poderia estar lá, tentando escapar, presa dentro do apartamento-!” Nauseado, Georgi continha-se para não pôr para fora mais do que aquela culpada confissão. “Eu piso no gelo, mas sinto o fogo- eu sinto culpa… E eu nem lembro qual foi a última coisa que disse para a minha mãe!”

“Não foi culpa sua,” Oleg murmurou o óbvio, ainda afetado por tudo aquilo.

“Eu a amava tanto…” O lamento de Georgi logo transformou-se em revolta. “Mas não tive, em quase dezoito anos de vida, como descobrir mais sobre ela! Porque você fez com que eu fosse levado para longe, você nos separou, e agora me devolve isso aqui com uma foto dela?! Você não tem esse direito!! Você não deveria ter nada dela, nada!! Éramos felizes sem você, eu era feliz quando você não passava de um sonho! Quem é um sonho agora é ela!” Chorando ainda mais, Georgi cobriu a boca com uma das mãos. Contendo os reflexos nauseantes de seu corpo ou a vontade de despejar mais palavras amargas?

Ele decidiu que não iria conter mais nada. Já estava sendo forçado a engolir coisas demais há muito tempo.

“Queria que você tivesse ido no lugar dela.”

Oleg recebeu o ferido desejo de morte de peito aberto, sem desviar o olhar ou expressar qualquer sentimento que pudesse fazer Georgi se sentir culpado. A afirmação sofrida, contudo, não deixava margem para que ele duvidasse nem por um instante daquele desejo.

Sem despedidas ou pedidos de licença, Georgi atravessou a pequena sala, passando por Oleg e deixando o flat para trás enquanto soluços de tristeza e revolta o acompanhavam. Ele trazia não somente Nana no peito, mas todos os sentimentos contrários que engalfinhados uns nos outros, ardiam e o feriam. Não existia mais nada que pudesse ser ferido em Georgi, mas ao mesmo tempo, faltava tanto para tê-lo completamente destruído…

Achar o caminho de casa se mostrou um desafio para quem saiu a esmo pelas ruas e se meteu na primeira estação de metrô que viu pela frente. Entre linhas desconexas e direções contrárias, Georgi perdeu algumas horas até conseguir se encontrar no trajeto que o levaria novamente ao local onde nunca deveria ter saído, ou melhor pensando, onde ele nunca deveria ter chegado. Ele deveria ter ficado em Moscou, deveria ter engolido toda aquela fumaça.

Foi com surpresa que alguns dos funcionários o viram chegar em um horário tão diferente ao habitual, trazendo aquela expressão nervosa e agitada que não encorajou nenhum cumprimento. Era melhor avisar Yakov diretamente do que passar adiante o recado dado por Feltsman.

A única pessoa a não notar que alguma coisa errada cercava Georgi naquele dia, foi Victor, não por falta de tato ou atenção ao amigo, mas por estar extremamente sensibilizado pela decepção. Mais uma. Em desgraça, ele e Popovich tinham muito em que somar.

“Se não é a pessoa que eu mais desejava encontrar!” gritou Victor, frustrada tentativa em mascarar o tom embargado que ameaçava fazê-lo chorar.

“Agora não, Vitya, eu não estou bem.” Um pouco mais blindado pelo catarse de outrora, Georgi tentou dispensar a presença de Victor, desvencilhando as mãos que abraçavam seu braço.

“Que ótimo, porque eu também não,” murmurou de volta, lábios virados e as primeiras lágrimas começando a verter para fora dos olhos azuis-esverdeados. “Vamos ficar péssimos juntos, por favor…” Aquilo foi o bastante para Georgi se dar conta da seriedade naquele pedido.

Como era normal acontecer em sua vida, Popovich não teve tempo de questionar, percebendo Victor se escondendo atrás de si assim que, do rinque, Aleksandr saiu em companhia de Anya. Pela risadinha zombeteira ao ver a cena de Nikiforov indiscretamente encolhido atrás do outro rapaz, Georgi logo entendeu de quem era a culpa; sustentando aquele sorriso irritante, Aleksandr riu baixo, fazendo pouco caso do que considerava um mal entendido. A paciência de Georgi esvaiu por completo.

A mão de Georgi, antes fechada seguramente dentro do bolso, agora fechava-se na gola da camisa de Sasha. A força usada, além de pegá-lo desprevenido, foi o suficiente para chacoalhá-lo antes de Georgi empurrá-lo contra a parede, preso entre a mão de Popovich e a alvenaria. Assustado pelo ataque repentino, Osipov tentou se livrar do gesto raivoso que começava a erguê-lo do chão.

“O que foi que você fez ao Victor, Osipov?” A pergunta raivosa feita entredentes, fez Georgi se assemelhar às bruxas responsáveis por assombrar as mais fantásticas reviravoltas nas tramas mágicas. Sasha, que nunca viu graça nessas criaturas malvadas, conseguia agora sentir medo da bruxa de Georgi. “Diga!”

O medo não o deixou responder, a raiva não deixou Georgi escutar; enquanto Anya e Victor tentavam apartar o ataque, funcionários nervosos tentavam contatar Lagutina e Yakov, o único ali capaz de lidar com aquela situação. Quando qualquer um ali imaginou ver Georgi agressivo daquele jeito?

“Georgi, solte ele!” Anya implorou. “Você sabe que Osipov não vale tudo isso!”

“Gosha, por favor!” Victor ali era o mais abalado. Seu coração apaixonado não o deixava desejar a dor de Aleksandr, por mais ferido que as palavras do dançarino de gelo tivessem lhe deixado.

Com dificuldade ele abriu os dedos trêmulos, liberando Aleksandr que não demorou muito para recobrar a postura, ofendido e irritado pela audácia. Seu pai certamente daria um jeito naquilo mais tarde.

“Você!” Acusando-o com o indicador evidenciando a raiva que o tremia por completo, Georgi ergueu a voz para que qualquer canto da escola conseguisse ouvir. “Você sugou o Victor de todas as formas, se aproveitou das mordomias que o dinheiro e o nome dele te deram, e agora que não te serve mais, joga fora como se ele fosse descartável?! Você é um lixo, Osipov!!” Novamente precisando ser contido, Anya o abraçou de frente, enquanto Victor segurava o braço esticado, tentando trazê-lo para baixo.

“Deixe para lá, Gosha,” tentando sorrir, tudo o que Victor queria era deixar aquele lugar e chorar até a virada do ano. “Todo mundo sabe que o único amor que interessa é o de mãe!”

A brincadeira doeu até em Anya, a menos simpatizante de Victor. Sem conhecer o amor materno e tendo o romântico negado, era doloroso vê-lo sofrer por não ter nenhum dos dois.

“A mãe que não te quis?”

Pasmos em ouvirem a voz de Aleksandr se erguer depois de tudo, os três o encararam, cada qual expressando um sentimento confuso diferente.

Amor de mãe, Victor Nikiforov?” Inflamado pelo desprezo, Aleksandr debochou. “Como acha que seria com ela aqui? Mimos, telefonemas, a mamãe escovando seu cabelo e penteando vocês dois exatamente da mesma forma?”

“Cale a boca, Osipov!!” Horrorizada com aquelas palavras, até Anya tentou intervir.

“Seu pai a odiava!” zombou. “E nem ela queria você!”

“É mentira!” Ferido e com a voz falha, Victor não conseguia erguer a voz em defesa à memória de Narkissa.

“Você só nasceu porque o aborto deu errado!”

O oco do soco dado por Georgi distraiu a atenção sobre Victor, que não conseguiu assistir a surra, atormentado pela possibilidade real daquelas palavras. O amor materno, a idealização da maternidade invejada por tantos anos, o tipo de relacionamento mãe e filho que ele via Georgi ter com Margosha, não teria lhe sido uma realidade se Narkissa tivesse sobrevivido ao parto?

Surpreso e em choque, Yakov, avisado por um dos funcionários, surgiu para presenciar o embate, onde seu neto levava uma vantagem quase covarde. Desferindo um soco seguido de outro, o filho de Gorki pouco tinha chance de revidar, limitado a tentar se defender enquanto Pavlova fracassava em impedir Georgi. Após olhar para Victor, preocupado e confuso, o rapaz pareceu quebrar, correndo para dentro da escola enquanto choro e soluços altos podiam ser ouvidos naquele rastro dorido. Em dúvida sobre quem socorrer, Yakov decidiu ir atrás de Victor.

Nervoso como seus alunos nunca antes o deixaram, Feltsman conseguiu acompanhar os passos de Nikiforov, podendo vê-lo, mesmo de longe, correndo, tropeçando para as salas mais afastadas, encontrando refúgio onde Georgi mantinha guardado o figurino da apresentação dos alunos. Quando finalmente Yakov conseguiu fazer seus joelhos se mexerem até o ateliê, era possível ver o brilho laminado da tesoura riscar o ar com violência.

“Victor, solte essa tesoura!”

Ele não ouviu.

Cego de um sentimento confuso oscilante entre ódio e dor, Victor picotava os cabelos sem direção certa, desesperado em se livrar dos fios longos cultivados por tanto tempo, longos como os cabelos de Narkissa.

Quem também não conseguia se fazer ouvir, era Anya. Nenhum pedido, nenhum grito, era capaz de parar nem a Georgi, nem a Victor.

Um soco, uma tesourada.

Pelo menos três pares de braços tiraram Popovich de cima de Osipov e foi necessário que Yakov levasse ele mesmo e Victor ao chão para que o rapaz largasse a tesoura, que em direção errada ainda o faria se ferir.

Sentados sobre o piso, entre fios caídos junto a um coração despedaçado, Victor se agarrou a Yakov, chorando ao técnico o que ele nunca mais conseguiria colocar em palavras; abraçado por Anya, Georgi chorava à moça o segredo que ele nunca conseguiria falar em voz alta.

Naquele dia, pelo mesmo motivo e ainda por razões diferentes, Victor e Georgi choraram juntos a certeza de que não existia Life and Love.

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Oleg não sabia totalmente porque estava batendo, mas Gorki sabia todos os pormenores do porquê estava apanhando. Narkissa era os dois extremos que explicavam toda aquela bagunça somando duas décadas de segredos.

Como Gorki podia explicar o que Narkissa Smirnova significava para ele e para o mundo gelado em que viviam? Quando a garota começou a ter aulas individuais no mesmo rinque cinzento que ele e Oleg, Osipov colocou seus olhos castanhos sobre ela, para nunca mais poder tirar.

Tal qual as demais crianças, Nikiforov não economizava palavras para criticar a menina, a irônica princesa soviética, a bonequinha dourada em que a URSS apostava todas as fichas. Se sua personalidade vaidosa e intragável era responsável por reduzir sua opção de amigos, Gorki não achava que a culpa cabia totalmente à ela, mas sim à criação dada para uma pessoa tão importante, descendente de um dos principais nomes da Revolução Russa, a caçula da virada histórica de 1917. Era fácil sentir inveja de alguém que havia nascido acima de todos eles.

Mesmo sem se aproximar de Narkissa mais do que o recomendado naquela regra silenciosamente imposta por seus protetores, Gorki se fazia sempre próximo, chegando pelas beiradas, olhar baixo, aguardando ansioso por atenção, um cachorrinho paciente. Gorki sabia se calar sempre que necessário e, de tanto ouvir, acabou aprendendo exatamente o que falar. Era fácil convencer Oleg de sua lealdade, bastando apenas abrir a boca para rir e concordar com absolutamente tudo o que ele dizia; de Smirnova, contudo, ele não ouvia muita coisa, restando muito pouco a ser dito. Quando se tratava dela, Gorki se limitava a olhares mais sutis, sorrisos contidos, um discreto convite à chance, que nunca recebia uma resposta totalmente positiva. Mesmo sem brechas, ele continuava esperando. Gorki tinha muita, muita paciência.

Quando se espalhou o boato de que Narkissa, uma estrela em ascenção da categoria júnior, migraria da categoria solo para as duplas, Osipov sonhou em ser aquele que teria a maravilhosa chance de se aproximar da garota, na época, com treze anos, assim como ele. Smirnova e Osipov tinham tudo para brilhar mundo afora, assim ele gostava de pensar, juntos, teriam uma década ou mais de carreira pela frente. Gorki já conseguia até se imaginar erguendo Narkissa acima da cabeça, acima de todos os gritos e ovações, ajudando a colocá-la um pedestal acima do qual já estava acostumada. Gorki não iria incomodar, ele podia jurar! Narkissa só precisava de um patinador competente, mas não muito especial, uma pessoa sem relevância, sem nome, sem história, um completo ninguém. Ele era esse tipo de pessoa! Ele era um ninguém, um ótimo ninguém!

No entanto, antes de notarem sua falta de importância, outro ninguém chamou atenção primeiro, com menos história e mais talento para acompanhar os programas floridos de Narkissa. Oleg Nikiforov, orgulhoso, invejoso, porém infinitamente mais ambicioso, fingiu jamais ter dito uma única palavra maldizendo a protegida da URSS e sequer pensou em negar a oferta quando viu quanto lhe pagariam para dividir o estrelato com Smirnova — ele nunca viu aquele trabalho como a preciosa chance de ser a sombra dela. Quando Narkissa menos esperasse, seria ela sombreada pela luz de Oleg.

Foram três longos e cansativos anos aqueles que Osipov foi obrigado a ver Oleg disputando com Smirnova as entrevistas e qualquer chance midiática que rondava os treinos da dupla preferida da União Soviética. Narkissa, o estereótipo da boa moça daquele solo fértil onde força e trabalho eram plantados para germinar gente como ela, talentosa e de garra, era elogiada e ambicionada como o delicado rosto que enfeitaria campanhas milionárias pelo mundo. Logicamente, quando questionada sobre isso, a adolescente negava gentilmente, fiel à pátria-mãe. Já Oleg, intrometido e sorridente, ria por cima das palavras suaves, atravessava a frente da parceira com toda sua altura, e sem se importar com o que diria o governo que sempre o sabotava em prol da favorita, garantia que “se Narkissa não quer, eu quero!”. Um desertor de alma e coração, esse era Oleg Nikiforov.

Nikiforov era incontrolável, e não existia punição, ameaças ou desconto na folha de pagamento que o fizesse abaixar a cabeça ao planejamento feito para alavancar rosto e nome de Smirnova no mundo da patinação. Gorki até achava que ele havia aguentado muito bem o primeiro ano e meio antes da rivalidade com Narkissa começar a ser notada. Se ele não tivesse orientação de Yakov, tão apegado ao jovem, uma briga no meio do gelo teria acontecido logo na estreia.

Àquela altura, pelo menos, sua fingida dedicação a Oleg o deixou próximo o bastante de Narkissa. Competições a nível internacional? Um patrocinador grande? Ser um patinador reconhecido? Chegar pelo menos no top 5 da União Soviética? Ah, não... O pequeno Gorki teria realizado seu sonho infantil apenas em ter conseguido cumprimentar Narkissa pessoalmente. Poder falar com ela? Osipov não precisava de mais nada em sua vida. Para muitos, cumprimentos de bom dia e despedidas secas, feitas puramente por educação, não eram nada demais, um costume de quem havia sido criada para tratar bem os fãs. Para Oleg, principalmente se tratando de Smirnova, era algo totalmente dispensável. Mas não para Gorki Osipov. Se a vida estava lhe presenteando com as sobras jogadas por Narkissa, pois bem, Gorki se contentava com pouco, mesmo. Era por isso que namorava Svetlana.

Quando Oleg anunciou, aos dezoito anos, estar deixando a dupla para partir em carreira solo, até Gorki se surpreendeu. Ele, que sempre ouviu toda a ladainha grandiosa de Nikiforov em primeira mão, se sentiu traído, especialmente considerando a forma com a qual essa retirada foi informada, mídia nacional, sem aviso prévio aos patrocinadores, técnicos e claro, Narkissa. Era mesmo um desgraçado, exibido filho de uma puta… O que aquela anta pensava conseguir com aquele showzinho público? Já teria alguma proposta vinda de fora? E não o contou?! Desgraçado! Que Oleg fosse para o inferno! Ele não queria mais saber daquele bastardo sem pai, cujo a mãe provavelmente fora uma vadia leviana como o filho! Devia estar no sangue imundo dos Nikiforov!

O que mudou rapidamente a decisão de Gorki, foi ter ouvido desde a sala vizinha a reação de Narkissa. Frustrada, irritada, usando cada fibra de seu ser para odiar Oleg por aquela dispensa vergonhosa feita publicamente, ela gritou, chorou e chegou até a quebrar coisas. Exposta ao ridículo, passada para trás; era Oleg quem deveria ter arremessado Narkissa ao estrelato. Ao invés disso, ele a soltou no meio de uma death spiral, largando na frente. E nenhum dos agentes do governo fez nada!!

A chance de Gorki veio naquela hora. Não foi nem difícil, ele se lembrava bem. Uma oferta de ajuda muito conveniente, ele já estava mesmo acostumado a bajular Nikiforov… Estando ao lado do patinador, teria como vigiá-lo de perto, repassar informações consideradas importantes — a União não queria mais um desertor somando aos inúmeros escândalos de fuga —, ajudar Narkissa no que ela mais precisasse. Ele ainda era fiel como um cãozinho e finalmente ela havia parado de lhe atirar farelos para oferecer um osso inteiro. Depois de muito pensar, feito complicado para adolescentes tão imaturos, Smirnova concordou, desde que seus tutores não soubessem. Eles já sabiam coisas demais de sua vida. Ter um segredo só entre eles, encheu o coração de Oleg daquele tipo de sobra que o alimentava por dias.

Os dias seguiram normalmente, depois daquilo. Gorki já estava tão acostumado a agir daquele jeito abobado e incondicional, que não teve problemas em levar aquela vida dúbia, levando informações à Narkissa o suficiente para tornar os dois primeiros anos da carreira solo de Oleg uma verdadeira odisseia. Não foi o bastante para fazê-lo desistir, nem para escondê-lo por muito tempo de patrocinadores fascinados por seu trabalho em gelo, mas ele e Smirnova conseguiram se divertir um pouco. Ela até o considerava um amigo! A vida estava completamente ganha!

Sempre havia um porém. A contradição naquilo tudo era que Oleg continuava feliz, cada dia mais sorridente, maior, melhor… Enquanto para Gorki, restou uma aposentadoria prematura por razões como corte de gastos. Ele não foi competente o bastante para conseguir mais do que um aperto de mão dos jurados e recebeu como retorno de anos de pés feridos e fraturas internas, a recomendação de uma nova carreira. Aos vinte anos, Gorki abandonava a patinação para entregar cartas e dividir um quarto sem acabamento de cerâmica com Svetlana, garçonete de um estabelecimento tão antigo, que o próprio Lênin deveria ter frequentado.

“Que pena…” lamentou Oleg, quando soube da dispensa. Osipov quis mandá-lo à merda, mas o costume de sorrir e bajular, não deixou ele fazer mais que se conformar.

E Narkissa? Ah, Narkissa estava lá, patinando para um mundo que não a merecia. Ninguém jamais valorizaria ela como Gorki gostaria de ter tido a chance. Agora, tudo não passava de um sonho, a última pá de cal jogada para finalizar sua sepultura vinda em forma de um bebê que ele registrou como Aleksandr.

Se levar um chute do mundo artístico o levou para longe dos segredos dos bastidores, o meio das correspondências trouxe uma carga totalmente nova de informações, em uma dimensão muito maior do que o imaginado. Entre chás de limão e separação de encomendas, Oleg Nikiforov passou a receber alguns envelopes diferentes… E quem melhor para entregar as encomendas secretas do que um velho e fiel amigo? E Oleg era tão bondoso lhe pagando por fora, apenas “um agrado para a família!”, como gostava de dizer, abrindo uma carteira cheia de rublos. E Gorki negava aquela gratidão disfarçada por trás do suborno? Nenhum centavo. Ele arrancaria tudo de Nikiforov, e quando não restasse mais nenhuma dúvida sobre a partida dele para os Estados Unidos, Osipov ofereceria a denúncia a Narkissa em uma cara caixinha de veludo, como um anel de noivado. Ela poderia fazer o que quisesse com aquela informação, mas uma coisa era certa; a gratidão seria eterna. Svetlana saberia se virar com Sasha, ela era forte o bastante.

Como tudo na vida de Osipov, não demorou para ele descobrir outro golpe injusto dado por Oleg, antes que ele tivesse como compensar todos os outros que sentia ter sofrido;

“Eu dormi com Smirnova.”

Oleg disse aquilo com claro arrependimento, uma aversão visível na expressão fechada e na recusa em chamá-la por algo além ao sobrenome, a cabeça apoiada entre as mãos, cada vez mais apertadas em volta dos cabelos claros, forçadas como se eles pudesse expurgar da memória aquele ocorrido. Álcool em excesso — e quando aquele beberrão não bebia em excesso? — e após isso, ele só se lembrava da enxaqueca e um quarto de hotel que não era o dele. Não existiam muitos detalhes, mas Gorki não precisava de muito para imaginar ele mesmo o pior dos cenários, aquele em que a mulher de seus sonhos esteve nos braços do homem que sempre afirmou veementemente desprezar sua existência.

“Isso nunca aconteceu,” afirmou Nikiforov, querendo convencer mais a si mesmo. Gorki queria pensar a mesma coisa.

Mas Gorki Osipov não iria esquecer.

Pareceu um pesadelo quando Narkissa anunciou, fora dos holofotes, estar dando uma pausa na carreira. Ela, que havia tido o mesmo ano sabático quando Oleg abandonou a dupla, deixou fãs e entusiastas do esporte órfãos, apegados à última apresentação brilhante, o memorável Life and Love. Gorki tinha certeza que a razão daquele sumiço era Nikiforov.

Pareceu um sonho quando Narkissa enviou uma carta a Oleg. O envelope nunca chegou às suas mãos pálidas.

A caligrafia de Smirnova não era bonita, torta e sem capricho, mas esse detalhe era totalmente dispensável para a impressão lúdica que ela causava. No papel, grande demais para informações de menos, ela exigia dele uma quantia muito elevada para uma tramitação bancária não levantar suspeitas. O dinheiro precisava ser entregue em mãos e o endereço estava no envelope. Gorki não tinha o dinheiro — ele adoraria —, mas tinha o endereço. Svetlana nunca entendeu porque o marido partiu no trajeto transiberiano para Vladivostok em maio de 1987.

Não era Gorki que Narkissa esperava ver quando abriu a porta do apartamento naquela manhã, mas vendo nele o correspondente oficial de Nikiforov, ela até se deixou abrir um pequeno sorriso de coração para Osipov, tão desejado por ele nos últimos anos. O sorriso, todavia, não durou muito quando ele afirmou estar ali apenas para entregar o recado de que Oleg não lhe mandaria nada.

“Ele precisa me ajudar! Ele precisa, Osipov, senão não dará mais tempo!”

Narkissa Smirnova estava grávida. Aquele erro, grande arrependimento de Oleg, havia resultado em uma dor de cabeça maior que qualquer ressaca.

Narkissa não poderia lidar sozinha com aquela situação, tendo o governo de olho em cada passo seu desde a infância. O procedimento ilegal custava uma pequena fortuna que ela não tinha acesso desde que as autoridades limitaram seus pertences por aquela pausa forçada e mesmo que em outro cenário Narkissa pudesse fazer saques à vontade, se muito dinheiro fosse tirado de sua conta pessoal, não demoraria para baterem à sua porta, exigindo explicações. O mesmo dinheiro desviado da conta de Nikiforov não daria tantos problemas, já que ele era acostumado a esbanjar. Ela estava a um pulo do Japão, a maior concentração de fãs que possuía depois dos Estados Unidos, encontrando refúgio entre os asiáticos, ela logo teria como pagá-lo, embora aquele problema fosse de interesse dos dois. Não deveria ser difícil para Oleg apenas emprestar aquela quantia. Onde ele gastava todo o dinheiro que ganhava, afinal de contas?! Ou melhor; com quem?

Gorki só percebeu o tamanho daquele problema quando Narkissa chorou em seus braços o perigo que seria ter o departamento soviético de propaganda descobrindo sua gravidez. Jamais a deixariam assumir uma criança sozinha, ou livrar-se dela, quando poderiam reutilizar a imagem da dupla Smirnova-Nikiforov agora como casal. Ela, que já crescera presa naquele meio, estaria ainda mais atrelada à cama de gato política e do jeito que Oleg não sabia medir o tamanho da boca, ele acabaria condenando os dois. Narkissa não queria morrer, ela queria ser livre. Osipov daria um jeito; ele também queria ser livre.

Não existiu nenhuma dificuldade quando Gorki voltou de viagem para ver Oleg pessoalmente e pedir a quantia em questão. “Era para Sasha”, afinal de contas, e Nikiforov andava tão generoso quanto ao assunto família, que quando Gorki prometeu devolver com juros o empréstimo, Oleg apenas sorriu e acenou displicente, irrelevando os milhares dispensados para seu velho amigo, além de desejar melhoras ao menino e mandar lembranças jamais passadas à Svetlana. Que grande imbecil. Não era preciso nem ser muito inteligente para conseguir as coisas de Oleg, bastava ter meio cérebro e uma dose de destilado.

Aquele dinheiro resolveria muita coisa para Narkissa, para eles dois. Mas ela precisava mesmo receber aquela quantia toda?

“Oleg não quis mandar o dinheiro.”

Na cabeça de Osipov, o plano era perfeito; sem o apoio de Oleg, Narkissa teria que buscar suporte em outra pessoa. Foi para aquele momento que ele esperou a vida inteira, a chance de finalmente ser visto com outros olhos, de ser uma opção para Narkissa — a única opção. Se eles precisassem fugir, a hora era aquela. Ele nem se importava em assumir a paternidade de um filho de Oleg, já assumira tantas broncas em nome dele! Além disso, ele tinha certeza que a criança seria a cara da mãe.

Mas Narkissa não recebeu bem a notícia e partiu para cima de Gorki como se ele fosse o próprio Oleg. Gritos, acusações, tapas fortes demais para quem sempre se mostrou tão delicada, naquele rompante de fúria Smirnova o expulsou, jogando porta afora a mala trazida por todo o trajeto que atravessou o país de ponta a ponta, sem saber que aquela bagagem trazia todos os pertences de Osipov. Ele ainda implorou, se humilhou de joelhos, garantiu que ela não precisava de Oleg e prometeu a ela coisas que estavam fora do alcance de qualquer um. Ele só queria a chance de fazê-la feliz!

Gorki permaneceu rondando o apartamento de Narkissa por alguns dias, comendo lanches embalados ainda em Leningrado para a viagem até não restar mais nada, esperando embaixo da janela sempre evitada por ela, algum sinal de que ele podia voltar, a resposta positiva esperada com toda esperança do mundo… Nada. Se alguma chance estava por vir, ele não teria dinheiro o bastante para esperar. Depois de quase duas semanas dormindo na estação de trem e enchendo o estômago de um chá enjoativo, Gorki precisou voltar com o dinheiro que ele pensou servir para recomeçar longe dali. Aquele dinheiro ficaria muito bem guardado até que ele pudesse decidir qual era o melhor destino para sua pequena fortuna.

Desiludido, Gorki retornou para Leningrado e para o emprego que por muita consideração a Oleg Nikiforov e o suborno por ele prestado, o aguardava. Svetlana exigiu explicações daquele sumiço, mas depois de poucas tentativas frustradas, desistiu. Ao contrário do marido, ela tinha um emprego pelo qual prezava e que na falta de Osipov, sustentou o filho deles. Olhando para Aleksandr, Gorki se perguntava se algum dia ele seria capaz de patinar.

Durante o restante de 1987, nada mais se ouvia falar além de Oleg Nikiforov e seu brilhantismo, tão grande e faiscante, que cegava até os que evitavam olhá-lo. Ter de aturar tanto brilho queimando suas vistas foi sendo aumentado e piorado conforme as tentativas de contato com Narkissa continuavam infrutíferas, incontáveis envelopes sem resposta, mas que não encontravam retorno ao remetente. Ela estava de fato recebendo todas as suas mensagens ou os envelopes estavam sendo interceptados? Foram meses enlouquecedores, até que chegou dezembro;

A cena não poderia ter mais a cara de Oleg do que ter Yakov Feltsman socando seu rosto em transmissão internacional, na data mais cristã possível, dia vinte e cinco de dezembro. O inimaginável acontecendo aos olhos do mundo, chocando até o governo soviético que não tinha o patinador como preferido. Feltsman, que levara Oleg embaixo das asas desde os dez anos de idade e o assessorava mesmo quando seu treinamento cabia à equipe de Narkissa Smirnova, gritava e o acusava de todos os palavrões russos que especialistas conseguiram traduzir até a equipe de segurança do campeonato levarem-no para longe. Confuso pelo ataque e atordoado pela dor, Oleg subiu ao pódio com o olho roxo e um grande ponto de interrogação pairando sua cabeça. Na agência de correios, Gorki deixava encomendas de lado para assistir a confusão mal explicada, até um dos funcionários entrar correndo, quase subindo pelas paredes com a imperdível fofoca que acabava de estourar em Leningrado, chegando ao resto da União com a rapidez que nenhum trem tinha; Narkissa Smirnova havia dado entrada em um hospital local e naquele mesmo instante, estava dando à luz a um filho de Oleg Nikiforov. A gravidez havia vingado. Aquela criança estava vindo ao mundo.

O que veio em forma de escândalo, logo converteu-se em tragédia, quando Narkissa, aos vinte e seis anos de idade, falecia pouco depois de nascida a criança, um menino ainda sem nome divulgado. Quando questionado a respeito do nascimento do filho, Oleg não expressava mais do que a desconcertante surpresa. Quando noticiado o falecimento da patinadora, Gorki não expressou mais que lágrimas. MortaNarkissa estava morta. Gorki não tinha nem mesmo direito de guardar luto por isso.

Por outro lado, Oleg obteve de uma hora para outra todo o direito do mundo em expressar seu choque ao vivo e em reprises, desnorteado, surpreso, em conflito. Herdando todo o respeito que Narkissa tinha das autoridades, ele foi preservado e cultivado como pobre viúvo, uma vez que atribuíram seu nome ao da falecida campeã — e Nikiforova foi a punhalada mais dolorosa que poderia ser dado em Osipov. Ainda assim, Oleg o chamou na primeira oportunidade, sua orelha favorita onde poderia reclamar e choramingar a vontade, para confidenciar mais um detalhe escandaloso de toda aquela reviravolta ocupando até os folhetins estrangeiros. Oleg precisava encontrar Margosha Popovevna, filha de Feltsman, a mocinha que Gorki nunca teve nada contra, e que descobria agora ser uma noiva oculta, a pessoa envolvida nos planos de fuga de Nikiforov, que com a morte de Narkissa vindo à tona e a paternidade de Oleg caindo como uma bomba, desaparecera de Leningrado com o filho de ambos.

Espera, Oleg tinha mais filhos nessa contagem?!

“Você precisa encontrá-la para mim, Gorki!”

Gorki sorriu e concordou.

Gorki não procurou merda nenhuma.

E ele ainda fez tanta coisa depois daquilo… Tantas mentiras, manipulações, ocultação de encomendas, extravios propositais de cartas, um inferno desconhecido aos alvos de seu ódio, para que pudesse assistir de uma distância segura a crescente tristeza alheia. Dava um pouco de trabalho causar danos a terceiros para preencher o vazio particular, mas se lhe perguntassem…

“Eu não me arrependo de nada.”

Aquela contente afirmação feita num sorriso manchado de sangue fez subir a vontade de Oleg em continuar surrando Osipov, mas por sorte — de Gorki e de Oleg —, a cena foi apartada antes que Gorki precisasse ser hospitalizado. Para quem encontrava-se debilitado há alguns anos, o punho de Oleg ainda era muito forte.

“Eu vou destruir a sua vida e a do seu filho!” jurou Nikiforov, esbravejando como um cão preso por uma coleira apertada. “Vou me assegurar pessoalmente que ele nunca mais coloque um único patins!”

Sob gritos e juras de desgraça sem fim, Oleg foi levado para longe, todo o cuidado do mundo que prestariam às mãos doloridas e o nervosismo paterno tão cativante. Quanta hipocrisia.

No chão, Gorki tocava com cuidado todos os cantos do rosto que sentia inchar, imaginando como estaria. Svetlana, apática com a cena que esperava acontecer há muito mais tempo e por motivos bem mais pessoais, jogou um lenço ao marido e o ajudou a ficar de pé, servindo de apoio para que pudessem sair dali. Ele, que sempre procurou por um fantasma, fez da existência real da pessoa ao lado, um nada.

Ainda assim, Gorki Osipov não se arrependia de nada. 


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Notas finais do capítulo

Gorki Osipov parecia ser só mais um figurante besta, né não? :v Quem diria que a maior parte das merdas que aconteceu teve dedo exclusivamente dele? (bem, eu diria, porque eu já sabia :v Bah, vocês entenderam xD)

Curiosidades do capítulo:

— Koh Lanta é uma ilha da Tailândia;

— A linha Transiberiana usada por Osipov para se encontrar com Narkissa é uma das maiores linhas da europa. Ela termina na Coreia do Norte, onde Vladivostok faz divisa.
— Irina Lagutina é OC criada por Mileh Diamond, kibada descaradamente de suas outras obras para a minha, risos risos risos. A personagem, amiga de infância de Yakov e sua parceira enquanto ele ainda competia em dupla, volta e meia é citada, como na lindíssima fanfic Two Shades of Blue. Ela tem uma participação maior em Philia.

ALIÁS, VOCÊS JÁ FORAM LER PHILIA, HOJE???

((P.S.: Embora seja citada uma tentativa de aborto no capítulo, a intenção aqui não é demonizar Narkissa por essa escolha. Quem sabe se em condições favoráveis, Narkissa não tivesse levado adiante essa gravidez?))



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