Memento Mori escrita por AloeGreen


Capítulo 1
Capítulo Único




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Uma sensação deveras complacente.

A maciez daquele véu que resvalava pela minha pele tão pálida quanto os lisiantus que circundavam a região. Senti-lo por inteiro e receber o triunfo. A emancipação do corpo e da alma.

Meus lábios já retomavam a cor. Até mesmo as bochechas, antes escuras e delgadas, eram floridas por um rosa primaveril e salpicadas por um começo de sardas, mas quase imperceptível. Ele dizia que era por causa do sol que banhava intensamente essa área. Porém, eu queria acreditar em algo mais. Eu estava mudando de pele.

Metaforizar o meu renascimento a partir da delicada metamorfose da lagarta, que, no fim se transforma em borboleta, seria delicado demais para representar uma transmutação tão miserável e sofrida quanto a minha. A lagarta quando se converte em borboleta, abandona sua essência pela vaidade. Eu tinha a necessidade de abandonar a minha casca para enfim poder abraçar a vida novamente. Do mesmo modo que um artrópode necessita trocar o seu exoesqueleto para poder crescer. Um inseto. Essa sempre foi e continuará sendo a minha essência.

─ Sente-se mais aliviado? ─ perguntou Potter, finalizando o desenho do feitiço no ar.

─ Contente em saber que meu alívio não provém somente dos deleites deste feitiço calmante. ─ respondi entreabrindo um sorriso acanhado, mas logo, me censuro.

─ Nada faria mais sentido! Há três semanas acorda quase todos os dias na hora do almoço com uma alimentação baseada em guloseimas e massas. Quem não se sentiria realizado com uma rotina assim? ─ dera-me um soco amistoso no joelho e eu também não pude conter algumas risadas abafadas. Ainda me sentia muito desconfortável com toda aquela proximidade que Potter havia desenvolvido em apenas uns dias. Mas, contudo, sentia uma inveja delirante dessa capacidade.

─ Por Salazar! Se gostasse de abóbora entenderia a tentação que aquele doce com cravo e canela me dá, Potter. ─ resmunguei, porém tom de divertimento.

─ Pedirei a Monstro que prepare uma trouxa com o doce de abóbora para você levar. Pretende continuar na mansão? Tem outro lugar para ir? ─ lamentei inconscientemente a sua pergunta. Claro, já estava planejada a minha saída para o fim da tarde, mas algo me lograva a mente, fazendo-me crer que eu não precisava partir.

─ Não posso mais continuar naquele antro de memórias mortas. Infelizmente, também não me recordo quando aquela casa se tornou um âmbito tão fúnebre e negativo. Talvez mais tempo do que eu gostaria. ─ minhas divagações foram longe, buscando todas as memórias dos jantares que ocorreram naquela casa. Cada vez menos enfeites natalinos, ornamentos exóticos na árvore de natal, o brilho que atribuía calor a casa. As palavras diminuíam a cada noite, até que se tornaram apenas suspiros inquietos e hesitantes na mesa de jantar. ─ De toda forma, eu tenho um lugar para repousar sim.

─ Draco... Posso te chamar assim? ─ pigarreou Harry. Apenas assenti com a cabeça. ─ Depois de tudo o que passei nesses anos conflituosos, cheguei a conclusão de que para tudo há um significado. Você ter aparecido para mim nesses tempos só me faz crer em uma reconciliação. Está disposto a esquecer todo o nosso passado? ─ ele soergueu a mão para um cumprimento. Sem demora, mas hesitante pelo orgulho, a apertei. Sua mão tão quente contrastou com a frieza da minha, criando um arrepio pelo meu ser. Tempo duvidosamente longo eu segurei aquela mão. Segundos preciosos de um contato afável.

─ Absolutamente.  

Em mãos, carregava apenas a minha maleta de couro. Frente à porta, o meu então salvador apertara o meu ombro e me presenteou com olhos serenos e um sorriso amigo. Pude sentir meus lábios se entreabrirem na expectativa de dizer algo, mas eu me contive. A realidade sussurrava em insatisfação. Minha consciência ordenava que eu retomasse as rédeas de minha vida e partisse. Entretanto, meu coração cobiçava ardentemente por companhia.

E então, eu parti.

O ar que eu respirava sanava os meus pulmões. Um ar salgado e úmido, vindouro de uma intensa mescla provocada pelos mares tempestuosos. Era uma casa que trazia calorosas lembranças. Poucas, de fato, mas tê-las já representava alguma coisa. Mamãe costumava trazer-me aqui nas férias, enquanto papai se ocupava com afazeres do Ministério. Lapsos de memórias desciam em espiral pela minha mente. Narcisa trajada em vestes claras e delicadas. Tão leves quanto o seu dançar natural. E comumente, um sorriso de tom avermelhado, coralino.

Azkaban permitia contato com meus pais através de cartas. Era um privilégio por eles terem abandonado o Lorde das Trevas no momento mais significativo da guerra. Tal regalia concedida pelo Ministério nunca me pareceu tão lisonjeira, eu estando na situação deplorável de antes. Agora, enfim, ofereço as palavras mais bonitas para minha mãe.  

Selada a carta, caminho até o corujal próximo ao morro e envio uma coruja para os tormentos de Azkaban. Protegido das vigorosas rajadas de vento que seduzem as ondas do mar, me acolho perante as labaredas da lareira e permito-me refletir sobre os últimos dias que tive na companhia de Harry Potter. Visualizo as cinzentas nuvens movimentarem-se em sincronia com a revolta dos mares. Em seguida, a praia e os morros são presenteados com a pureza da chuva. A casa torna-se um aconchego indescritível.

Há duas semanas, sob uma mesma intempérie, meu salvador recebia-me. Eu, próximo de um desmaio, tive de enfrentar a fraqueza e chamar por sua ajuda. Pouco me recordo do que aconteceu após isso, pois a escuridão transpassara e me puxara para um sono profundo. Mas de algo eu me lembro intimamente: o jurado de luz carregando-me para dentro de sua casa, entoando um socorro com sua rouca voz.

Acordado, percebo que estou sozinho. Ao pé da cama, as roupas que trajava ao vir para cá devidamente dobradas e aparentemente secas. Este detalhe faz-me crispar os lábios de desgosto. Não queria que ele tivesse visto a situação precária de meu corpo. Pouco procurei pensar neste fato e mais obriguei-me a levantar da cama e explorar o cômodo. Próximo a janela, prontifiquei-me nas pontas dos pés para poder visualizar um delicado jardim no andar de baixo. Ter aquela visão florida me recompôs da frieza da alma. Tanto tempo que não via saturadas cores.

─ Crisântemos. ─ as pernas bambalearam com a voz, sendo pego tão distraído. Harry Potter adentrava o quarto. ─ Nunca gostei muito deles. São as flores dos mortos.

─ Eu gostei. ─ digo suavemente, voltando os olhos para fora. ─ São coloridas. Expressam vida, por que seriam então as “flores dos mortos”? ─ creio que tenha indagado mais a mim mesmo do que diretamente a ele.

─ O crisântemo é um mediador entre o céu e a terra, a vida e a morte. A morte, então, não poderia ser colorida? ─ rebateu.

─ O que eu senti provinha da Morte. Devo dizer que não foi algo muito prazeroso. ─ o tom de voz foi decaindo juntamente com o sarcasmo.

─ Não posso dizer nada, pois já experimentei a morte duas vezes. Mas chega de filosofias questionáveis. O café nos espera. ─ Potter esboçou um sorriso cordial e logo se pôs a descer as escadas.

Meu estômago traiu minha vontade e em instantes estava perante a mesa de jantar, fartando-me de maravilhas que sequer sabia o nome.

─ Nunca pensei que veria um Malfoy de pijama. ─ disse Potter procurando descontrair, mas tudo o que eu pude sentir foi um borboletamento de vergonha.

Longos minutos se passaram e minha boca só abria para ingerir um doce que eu simpatizei mais do que os outros. Era uma espécie de doce de abóbora desfiada e adoçada, além de temperada maravilhosamente com cravos e paus de canela. Por Salazar, há quanto tempo eu não comia tão divinamente!

─ Não lhe forço a dizer nada. Não quero que se sinta pressionado. ─ neste instante, soergui os olhos para ele, mas logo voltei a abaixá-los. ─ Preciso ir para o Ministério agora, mas Monstro estará aqui para lhe servir. Aliás, eu o incumbi a trazer algumas vestes suas. Elas já estão lá em cima. ─ prosseguiu e eu aquiesci em um aceno de cabeça.

Suas palavras foram digeridas com dificuldade por mim. Meu cérebro estava em um estado alarmante; eu não queria ser deixado sozinho novamente. E isso significava que eu queria intrinsecamente a sua presença. Mas o que me revirava o estômago, é que meu orgulho não permitia tal desejo.

Quando ele partira, de início não soube exatamente o que faria. Eu sentia uma mescla de procrastinação e tristeza. Entretanto, acende-se a vontade de explorar cada cômodo da casa, mas antes disso, tratei-me de trajar vestes apropriadas. Com os dedos deslizando pelo tecido de algodão, alinhei uma camisa social branca e ajeitei suas mangas na altura da dobra do braço. Botões fechados uma brecha antes da gola. Como em tempos não fazia, visualizei minha imagem perante o espelho. Recordo-me bem da aparência adunca e esguia que minha silhueta refletia há algumas semanas. Agora já estava ligeiramente mais alinhado. O rosto com menos linhas escurecidas da magreza. Ainda assim, sinto um temor hesitante em observar tão minuciosamente o estado de meu corpo por tanto tempo.

Era uma casa tipicamente inglesa; com cômodos fechados, decorados em papel de parede de diversos temas. Havia poucos quartos. Na realidade, só havia uma suíte e um quarto de hóspedes, que era o que eu fora instalado. Atrevido, puramente curioso, adentrei o quarto de Potter. Antes, tendo soerguido os olhos ao corredor para certificar que Monstro não se encontrava por ali. Uma onda de perfume amadeirado persuadiu meu gosto para eu adentrar mais ainda àquele antro. De fato um quarto deveras ordinário. O papel de parede verde escuro contemplava uma árvore com galhos sinuosos que percorriam todas as paredes. Uma cama disposta próxima à janela, um criado mudo e uma elegante cômoda ornamentada por fios dourados com algumas quinquilharias acima dela. Reuni estes detalhes e deduzi que Potter não tinha uma companheira, ou pelo menos, escondia isso muito bem. Sobreposta na cama encontrava-se a roupa que Potter usava antes de sair para o Ministério. Persuadido pela fragrância tão atraente, abaixei-me na mesma altura da cama e permiti me afogar em suas vestimentas. Um aroma essencialmente sedutor. Emanava uma característica homérica, valente, digníssima de sua personalidade épica. Percebendo estar perdido tempo demais em devaneios, me desvencilho das peças de roupa e ponho-me para fora daquele cômodo, afastando todo e qualquer pensamento relacionado à Potter.

Mais tarde, algumas nuvens recheadas começavam a enegrecer o céu. Antes da chuva limpar as ruas, aquele que eu tanto esperava adentrou apressado. Acompanhei cada movimento seu. Desde o retirar daquele sobretudo elegante e aveludado até o esfregar de sapatos no tapete áspero da entrada. Eu o olhava fixamente e acredito que ele tenha percebido isso, porém fiz de tudo para demonstrar que eu estava concentrado, lendo avidamente um livro trouxa que eu havia encontrado.

─ Dickens? ─ comentou.

Eu o olhei com surpresa e abaixei o olhar para o livro, observando a capa e o nome do autor. Realmente não tinha me importado tanto com seu dono, mas sim com a capa chamativa e delicada.

─ Parece que aproveitou sua tarde. ─ em um movimento de varinha, acendia-se uma faísca na lareira e em instantes uma língua de fogo estalou crescendo em direção à chaminé. ─ Ouvi dizer que haverá geada esta noite e essa não é uma casa muito calorosa. Deixarei alguns cobertores extras no seu quarto.

─ Obrigado. ─ agradeci, fechando o livro.

Devo admitir que tê-lo ali ao meu lado era deveras confortante. Ele emanava um calor do qual meu corpo não estava acostumado. Então eu permiti aquela proximidade, ludibriando a minha consciência e afirmando com afinco que aquilo era em prol de minha saúde.

Novamente, uma mágica trouxera da cozinha alguns aperitivos que repousaram suavemente na mesa de centro da sala de visitas. Para acompanhar, uma pomposa garrafa de vinho.

─ Toda noite após o trabalho eu costumo comer algo na presença de um bom vinho. Aceita? ─ ofereceu-me uma taça.

─ Chá preto, apenas. ─ nisso, enlacei o indicador pela orelha de uma xícara e, magicamente, o líquido esfumaçante começava a enchê-la.

─ O Ministério estava particularmente agitado hoje. As pessoas estão preocupadas com alguns recentes atentados envolvendo Azkaban. ─ revelou, levando à boca um cubo de queijo e logo o banhando em um pequeno gole de vinho. ─ Como sempre, a lealdade dos dementadores me parece questionável. Criaturas abomináveis. Poderia conjurar um Patrono por dia naquele ambiente detestável. Nem o mais nefasto prisioneiro deveria habitar o mesmo local que tais criaturas.

─ Não poderia realizar este feito. Sequer consigo conjurar um Patrono. ─ percebendo a aleatoriedade de meu comentário, xinguei à mim mesmo. Ninguém precisava e nem queria saber isso.

─ Você não pode estar falando sério. ─ arriei o olhar, entristecido. ─ Oh... Bem, é uma magia relativamente complexa mesmo. Admito que demorei um tanto para realiza-la com êxito. ─ comentou, provavelmente na tentativa de amenizar a minha vergonha.

─ Simplesmente não consigo efetuá-la. Para uma magia tão pura, necessita-se de lembranças igualmente puras. ─ clandestinamente, as palavras voam de minha boca.

Fustiguei-me pelo silêncio incômodo que exalou pela sala. Apenas me levantei e tomei a frente da janela, desembaçando o vidro para poder apreciar os flocos caírem da escuridão. Meus olhos sentiram por um momento a sensação do pesar, novamente. Eu odiava estar revelando toda aquela fraqueza para Potter. Parecia algo irreprimível; meu corpo tinha um poder irracional quando se tratava dele.

─ Estou indo para meus aposentos, com sua licença.

─ Malfoy, espere. ─ eu o acompanhei ir até um armário próximo à sala de jantar. Trouxera alguns cobertores consigo. ─ Eu levo até seu quarto. ─ fiz um gesto discordando na intenção de pegar os cobertores e levar eu mesmo para cima, porém ele me impedira. ─ Eu insisto.

Brevemente, adentrei o quarto e em um rápido balançar de varinha, cerrei as janelas que estavam entreabertas. Em determinado momento, Potter entregara a pequena pilha de cobertores para mim. Ligeiro, encaixei minhas mãos por baixo destes e uma espécie de choque efetuou-se no instante em que minhas mãos se encontraram com as de Harry. Mãos tão quentes... Um contato tão singelo, porém tão brando e agradável para mim. Creio ter deixado muito clara minha reação àquele toque e logo o deixei com os olhos em minhas costas. Desejei-lhe boa noite em um murmurar e apenas o visualizei anuindo com a cabeça. Elementar, meus pensamentos buliçosos me impediram de cair nos braços de Morfeu àquela noite.

Cada dia transcorreu da mesma maneira. Potter acordava religiosamente às nove horas da manhã, tomava um café na companhia do Profeta Diário e logo menos já partia para o Ministério da Magia. Mas antes disso, ele abria silenciosamente a porta do meu quarto, certificando-se da minha presença. Eu não compreendia exatamente o porquê, mas não posso negar a tranquilidade que era saber que alguém importava-se com a minha existência.

Certo dia, levantei-me da cama após ouvir os passos descalços de Potter no assoalho ruidoso. Eu me sentia frio novamente; por um momento, achei que a praga estava se alastrando por mim, ou pior, ela só estava camuflada. Aquela sensação e a dúvida eram elementos do meu desespero.

─ Oh, bom dia, Malfoy. ─ disse Harry entusiasmado, adicionando um segundo prato à mesa.

Em prolongados passos, sentei-me junto a ele. Estava completamente distraído, mergulhado nos acontecimentos de um pesadelo obscuro que eu havia tido. Meus polegares se chocavam em alheamento, logo as mãos começaram a suar frio pela ansiedade evidente.

─ Infelizmente precisarei sair mais cedo ho-

─ Não! ─ o cortei, ralhando em anseio. Minhas mãos foram à boca e eu me levantei estupefato com a censura. ─ Não vá. ─ prossegui, sendo acorrentado a minha consciência. ─ Por favor...

A visão estava ligeiramente embaçada sob uma fina camada de lágrimas. Contive o pranto, formando um bolo angustiante na garganta. Meus punhos estavam cerrados amassando a bainha do suéter. A vergonha me impedia de erguer os olhos para Potter.

─ Permanecerei então, se é esse o seu desejo. ─ meu estado era lastimável, pois agora sequer detinha o poder de controlar minhas lágrimas. Os nós do dedo esbranquiçados relaxavam com o efeito que aquelas singelas palavras trouxeram. Uma espécie de relento cobrira meu coração inquieto e serenamente, encontrei a calmaria. Senti seu polegar enxugar uma grossa lágrima furtiva e só neste instante tive a capacidade de olhar para suas esmeraldinas. ─ Algo precisa sair daí de dentro. ─ revelou, indicando o meu coração.

Então, libertei minha voz. Cada gota de meus desesperos. Até a última partícula de treva que se acumulou em mim, trazendo a miséria do meu corpo e da alma. A cada palavra que saia, o sentimento revelado poderia ser representado pelo desabrochar de uma flor. Toda a mágoa. O pesar. As aflições contidas em um acanhado botão.

Não pude contar as horas que aquele desabafo roubou, mas quando eu visualizei a primeira estrela a brilhar no céu de Godric’s Hollow, tomei conta das decisões de minhas palavras.

─ Peço perdão por roubar seu tempo. ─ os olhos inchados pelo pranto encarniçado, piscavam freneticamente. Eu já não sabia mais pelo o que me desculpar. Foram tantos os absurdos que eu fiz Potter passar... ─ Ah, a blusa, me perdoe por isso também. ─ indiquei a notável mancha em seu ombro causada pelas primeiras lágrimas.

─ Sabe que não dou a mínima para essas coisas. Eu sempre saio sujo de qualquer aventura mesmo. ─ explicou em tom de divertimento, alongando o braço e apertando meu ombro. Estávamos a uma distância consideravelmente pequena, mas ainda assim amistosa. Eu o queria mais perto, pelos céus.

─ Shackleboth ficará furioso com você. Estava encarregado pela investigação em Azkaban, não? ─ indaguei, preocupado. Não era intenção minha intenção criar problemas para si.

─ Não se preocupe. Quando se é Harry Potter, detém-se de alguns privilégios. ─ disse presunçoso.

─ Digno de ti, Potter. ─ retruquei e desatamos num coral de risos. Acredito que esse momento tenha sido um dos poucos em que eu não estava tragicamente imerso nas minhas melancolias.

E sua risada era tão contagiante, como se os anjos decidissem recitar o mais belo dos concertos. Eu o apreciei imensamente naquele ato. Os lábios rosados e os olhos estreitos. Tudo decorrendo de maneira lenta, mesmo que tenham sido mínimos instantes.

Então, algo aconteceu: sua mão roçou na minha ao lado da cama e ali permaneceu. Algo tão inocente e, graças a Merlin, tão irrelevante e indiferente para ele, pois assim eu tomei a liberdade audaciosa e revigorante de sobrepor a minha mão na dele e enganchar alguns poucos dedos entre os seus. A sensação de estar ligado a ele sob aquela linha de ternura entre nossos dedos me manteve acesso pelo resto dos dias. Cafés da manhã em sua companhia, tardes absortas em alguns clássicos livros trouxas e novamente, recebe-lo à noite com vinho e seus queijos favoritos. Tão rápido começaram, estes preciosos momentos se findaram.

E agora estava eu, sozinho com memórias que não levam a lugar algum, ou melhor, levam a vários caminhos questionáveis e absurdos.

─ Maldito Potter. ─ esbravejei num murmuro rápido, atiçando o fogo da lareira apenas com um apertar de olhos.

Sua imagem não ousava desgrudar de minha mente. Sequer pregar no sono eu conseguia, pois a ansiedade banhava-me com seu toque, suas esmeraldinas brilhantes, a maciez inconfundível de sua pele em contato com a frieza dos meus dedos... Eu novamente pude sentir o sentimento que era contar os minutos no relógio da cozinha aguardando-o voltar do Ministério. Um segundo mais próximo de sua presença calorosa, podendo adentrar na sua onda perfumada.

Quão louco eu estava? Quanto eu teria que aguentar até essa mescla fervente de emoções se extinguisse? Cômico, creio ser o bruxo mais confuso da história! Uma hora, mergulho na mais dantesca escuridão, tornando-me subordinado da amarga treva. Salvo pelo meu jurado de morte, encontro-me agora numa imensidão de sentimentos ansiosos, um verdadeiro limbo.

─ Céus, eu preciso de chá. ─ digo, voltando para o meu mínimo de realidade do dia, adentrando a charneca e preparando uma generosa xícara de chá. Nem percebi que não estava usando magia para isso. Francamente, havia ficado tempo demais com Harry.

A mesa de jantar estava repleta de cartas enviadas por mamãe. Algumas poucas de papai. Ver todas aquelas cartas, resvalar as mãos sobre elas, fez-me ter um desejo incontrolável de escrever para Godric’s Hollow. Mas algo me impedia. A intrépida força que as minhas vontades tinham perante a minha própria consciência, acredito eu. Então, limpo esse pensamento da cabeça e concentro-me na fumaça perfumada do chá.

A neve vedou absolutamente tudo àquela semana. Inclusive o pouco calor que a casa me proporcionava. O tédio já começava a inundar minha cabeça de pensamentos negativos e aquilo fazia crescer um temor no meu coração, fazendo-me perceber que eu precisava desesperadamente distrair-me. Eu necessitava do seu calor novamente. Mesmo que aquilo parecesse loucura para mim. Minha cabeça não me deixava vestígios para a compreensão daquela fusão de emoções. Eu sentia algo selvagem, algo que estava encarniçado para sair de sua jaula. Precisa degustar daquela sensação que era tê-lo por perto apenas emanando sua energia serena e apaixonante. E em um piscar de olhos, as chamas esverdeadas da lareira irradiaram, levando-me até a lareira de Potter.

O estrondo emitido pela lareira o fizera levantar surpreso da poltrona em que estava sentado. Entretanto, o silêncio instalou-se sútil no ambiente apenas com a companhia de olhares recheados de sentimentos.

─ Acho que estou louco. ─ anunciei, cortando o silêncio e abrindo um filete de sorriso.

─ Creio que compartilho da mesma loucura, então. ─ no instante em que eu visualizei os jornais caírem de sua mão, o seu vulto se apossou de meu ser numa espécie de lampejo. Seus lábios molhados inclinaram-se de forma exasperada sob os meus. Mantive-me de olhos semicerrados por alguns instantes, apreciando, distraído, as linhas de expressão que se formavam por seu rosto. Ele também parecia sentir o mesmo fogo que eu. Então, ali eu o desejei. O desejei da forma mais singela, mas ao mesmo tempo atiçando todo o fogo que nos circundava. Nos beijávamos de forma apaixonante, fazendo acender uma centelha antes desconhecida por mim.

Era claro; eu estava sentindo o amor. Talvez o estivesse sentindo muito antes sem reconhecer, mas agora estava tão nítido que eu poderia simplesmente tocá-lo, como se este sentimento fosse algo físico.

Não demorou para que estivéssemos colados ao emaranhado de lençóis de sua cama. Eu sentia rastros de fogo por todo o meu corpo vindouros de sua língua sedenta pela luxúria. Por vezes, me permitia espelhar alguns sorrisos que poderiam ter inúmeros significados. Um, o corisco da felicidade eminente. Dois, os picos de prazer agreste, quase grosseiro. Três, a ávida espera pelo desmanchar. E tão breve o viria, de fato.

─ Não conseguirei aguentar por mais tempo. ─ digo, começando a sentir um gracioso arrepio dançando pelo meu corpo.

─ O faça. ─ disse-me, ao pé do ouvido, brincando com o lóbulo de minha orelha.

Suas palavras causaram o gatilho que eu ansiosamente esperava. Como borboletas atiçadas em sua gaiola, eu me desmanchei por inteiro ainda o sentindo friccionar o meu corpo. Do mesmo modo que o véu da brandura repousou sobre mim, um deleite intrínseco envolveu o meu corpo. E novamente, tão rápido começou, tão logo se findou.

Alguns finos flavos de luz me acordaram, trazendo a tona os acontecimentos da noite passada. Algo dentro de mim cochichava-me que aquilo não ocorrera de fato. Uma maculada voz dizia-me: “Aproveite o dia, mas lembre-se que é mortal.”. O resquício mínimo da essência negra que ainda escondia-se dentro de mim. Sempre fazendo-me lembrar de que as trevas cedo ou tarde poderão voltar.

─ Bom dia. ─ anunciou Harry, perante a porta. Pisquei algumas vezes, sentindo o gosto agradável da realidade. ─ Tem doce de abóbora e croissants te esperando lá embaixo. ─ um tímido sorriso de lado se abriu e eu novamente deitei a cabeça no travesseiro, o olhando levemente corado. Ele saiu do quarto, deixando-me absolutamente perdido em brancas emoções, brincalhonas e prazerosas.

Tão incrédulo de que algum dia eu poderia sentir esse sentimento. Um homem tão honrado, digno de toda a luz que carrega, ainda lhe sobrando benevolência para salvar alguém tão vil como eu. Todo o vasto caminho que nos espera será regado dos meus mais sinceros agradecimentos. Eu o amo, como nunca esperei amar ninguém.


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