Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 31
Um Homem Chamado John Smith


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Desculpem o atraso: Malas de viagem nãos se desarrumam sozinhas... Ou será que sim?

Bem, o importante é que estamos de volta!!!!

"O nome dele é John Smith... De onde ela conhece esse nome?
Hoje, ainda mais mistérios passam a rondar nossa Luisa, porém, não há tempo para refletir: a casa ainda está de pernas pro ar, e com o Doutor e Melissa por perto, a confusão só podia ser maior".



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Uma oportunidade de fugir: era só o que Ela tinha. Não podia fracassar! Ela tinha que escapar dessa vez para o mundo real. Tinha que aproveitar a atualização do HD do Universo Compacto, o único momento em que o programa ficava realmente vulnerável, e encontrar alguma brecha para pular de volta para a sua versão da realidade. Precisava usar isso á seu favor ou então nunca mais encontraria o homem que amava. Aquela idéia maluca e absurda seria sua única chance. Muitos de seus amigos tentaram convencê-la de que tentar escapar de um paraíso como aquele seria loucura, ou até mesmo idiotice. Mas ninguém entendia que ela não conseguiria ser, de fato, feliz naquele lugar. O dia mal começara e os bancos de dados da grande Biblioteca já vibravam com as atualizações. Era possível sentir a grande variação no sistema inclusive as fraquezas do programa, o que a menina esperava poder usar em vantagem para conseguir escapar. Por causa dos novos Back-ups, algumas coisas se alteravam dentro daquele compacto: O céu ficara vermelho, as horas passavam na velocidade de minutos, tudo parecia estar de cabeça para baixo. Em meio a tanta confusão, a garota de cabelos loiros e levemente ondulados escapou para as ruas e atravessou correndo um grande jardim. Ela espiou por um binóculo até encontrar uma fenda vulnerável na paisagem: Lá estava ela. Uma rachadura vermelha bem no meio de uma árvore, quebrando o tecido da realidade. Luisa Parkinson fez seu olhar mais determinado, como se estivesse cravando as mãos na rachadura. Dessa vez ela conseguiria! Então, sem pensar duas vezes, ela correu e se atirou contra o alvo mais fraco de todo o banco de dados do sistema, que se amplificou ainda mais com a sua interferência, dando uma pane geral nas atualizações. Quando finalmente abriu os olhos, Luisa já estava nos corredores da imensa biblioteca. Ergueu-se do chão com certa delicadeza, tirou os vestígios de pó do vestido branco e caminhou com passos largos para fora daquele lugar. Foi a ultima coisa que se lembrava antes de ter vindo parar no planeta Terra, no tempo e época certos. Conseguira chegar na realidade certa. Realizara seu maior sonho! Aos poucos, começou a viver por lá diariamente, como se nunca houvesse passado por um tempo em que não estivera caminhando sobre aquele chão poeirento e respirando aquele ar poluído. Passara por tudo aquilo e nunca comentava nada de seu passado com ninguém. Ela apenas seguia em frente: aprendera essa lição com alguém muito especial para ela. Três meses se passaram e lá estava ela agora: Fazendo uma boquinha num café local chamado Milk-Express, já ás dez para as sete da noite. O garçom aproximou-se dela com a bandeja cheia de aperitivos, mas depositou na mesa apenas uma xícara de chá com biscoitinhos, obviamente o restante das coisas eram os pedidos dos outros clientes. Ela nem ergueu os olhos por detrás do livro que estava lendo, quando o garçom serviu-a e murmurou um “Bom apetite, senhorita”; ele também não se incomodou: a garota já havia deixado a gorjeta em cima da mesa para que não tivesse que atrapalhar sua leitura. O garçom, satisfeito com o dinheiro, afastou-se deixando-a a sós com seu divertimento matinal: ler um livro. Automaticamente, ela levou a xícara à boca e bebeu um gole do chá, sem tirar das páginas amareladas, os grandes olhos cor de mel que moviam-se rapidamente de um lado para o outro enquanto lia.

Enfim a noite caia, o tempo lá fora ficava mais escuro, e chegavam cada vez mais pessoas no estabelecimento –não a ponto de enchê-lo, mas mesmo assim, havia uma quantidade bem grande de pessoas. Quase todas as mesas estavam ocupadas, a tv foi ligada por Ademir, o dono da estalagem, que colocou na novela das sete a pedido de sua mulher, que estava preparando doces caseiros próximo ao balcão principal. Era uma noite muito quente e o ar-condicionado foi logo posto para funcionar, junto aos ventiladores, no ponto em que o vento gélido deste não alcançava. O burburinho local ia aumentando conforme as pessoas iam entrando, a sineta da porta não parava de tilintar com esta toda hora abrindo e fechando, anunciando a chegada e a partida de toda a gente. O relógio cuco da parede marcou sete e meia, guinchando muito para divulgar o horário, mas nem mesmo isso, nem todo o barulho em geral, conseguiram desconcentrar a garota atrás do livro. Luisa continuava altamente interessada na história. Seria bem capaz de não sair de trás do livro mesmo que o comércio pegasse fogo. Quando ela começava uma coisa, queria ir até o fim, sem interrupções, nem mudanças de planos. Aquele era o seu passatempo noturno e nada era capaz de quebrar a sua rotina. Nada mesmo! Talvez exceto algo muito mais interessante que o livro, o que era praticamente improvável...

A sineta da porta tilintou de novo, mas dessa vez foi diferente. O sino soou como algo longínquo e belo, como se avisasse à aproximação de alguém muito importante... E o impossível aconteceu. Luisa ergueu os olhos de seu livro pela primeira vez naquela noite, mas ainda sem ameaçar guardá-lo. Um rapaz de roupas sociais, camisa, calça, óculos e tênis passou por ela carregando uma maleta e se dirigiu para a mesa vizinha, que comportava uma só pessoa, assim como a dela. A garota tentou voltar a atenção para o que realmente importava: o seu livro, mas dessa vez foi quase insuportável tentar fingir que não estava interessada na movimentação ao lado. O rapaz parecia muito concentrado, tirou o notbook da maleta e colocou-o em cima da mesa; devia estar procurando um bom lugar para continuar um projeto ou um trabalho especial para seu emprego. Ela pegou-se várias vezes olhando para ele. Mesmo assim, seguiu com sua leitura, dando uma espiadinha vez ou outra, na direção do homem, por cima da capa dura; Podiam chamá-la do que fosse, mas havia uma coisa em especial em que ninguém poderia julgá-la: Ela conseguia ser determinada mesmo quando sua mente caia em tentação. Por fim, depois de algum tempo, o livro finalmente conseguiu prender novamente sua atenção, de modo que ela se esqueceu de todo o resto ao seu redor: as pessoas, o falatório, o relógio cuco e o rapaz trabalhando. Quando finalmente deu por si, e percebeu que já havia dado um imenso intervalo entre suas espiadas, voltou a fazê-lo por cima do livro, mas decepcionou-se ao constatar que o rapaz havia ido embora. Felizmente, sua decepção não durou muito tempo: logo um alvoroço pouco comum tomou conta da entrada do estabelecimento; alguém levantando a voz para alguém. Luisa fechou o livro de imediato, tentando descobrir o que estava acontecendo lá fora...

Do lado de fora do café local, um trio de homens mau-encarados acabavam de cercar o rapaz de óculos, roupas sociais e notbook na maleta, bem no momento que ele estava saindo.

Passa pra cá, cara!—avançou um primeiro, de boné ao contrário e barba por fazer.

—O quê? –o homem do notbook pareceu alarmar-se. –E-eu não posso... –gaguejou.

Como não pode?—rugiu um segundo, vindo em cima dele. –Você acha que nós estamos te pedindo essa maleta emprestada? Nos exigimos que você a entregue pra nós!

—Não... Por favor! Todo o meu trabalho está aí dentro... –suplicou o homem.

—E nós por acaso temos cara de quem se importa com os seus problemas? –reagiu o primeiro, de novo. –Passa pra cá!

É cara! Você por acaso quer encarar essa barra, meu irmão? —falou outro marmanjo, ameaçadoramente. 

—Eu... Eu... –o rapaz de óculos ficou sem reação.

—Olha só Túlio! Ele não passa de um daqueles chorões... –caçoou um dos marmanjos. –Esse tipo não é muito valente...

—É, mas vai acabar nos dando trabalho... –constatou o ladrãozinho de boné e barba por fazer. –Vai logo cara! –eles o empurraram, ao que ele foi obrigado a soltar a maleta. Depois dois dos caras vieram e deram-lhe um soco no abdome, para que ele perdesse todo o fôlego. O rapaz de óculos caiu de quatro, respirando com dificuldade, enquanto o líder do grupo, o cara de boné, apanhava a maleta do chão, com um sorriso satisfeito no rosto. Os três o observaram de longe, o mocinho no chão deixara os óculos caírem: estava totalmente vulnerável.

—Dá pra acreditar nesse panaca? –riu um dos caras, seguido pelos outros dois, que já se preparavam para fugir, mas foram detidos pelo rapaz de boné.

—Esperem! Vamos terminar de dar uma lição nesse fracote...

—O quê, cara? –gemeu um outro, preocupado. –Nós já conseguimos o computador! Se bobearmos, podemos ser pegos...

—Ah, se liga, Ross! –ralhou o líder da gangue de rua. –Eu só quero dar mais uns sopapos nele...

O moleque de barba vinha vindo, estralando os punhos, na direção do rapaz no chão, ainda se recuperando do soco na boca do estômago. O marginal estava a apenas alguns metros do outro quando alguém se pôs entre eles: Luisa.

—Qual é a boa, meninos? –ela disse, como se fosse destemida. Não sabia o que estava acontecendo consigo, mas era quase como se estivesse fazendo as coisas da forma que sempre quis, mas que nunca obteve coragem para realizar. Havia algo de estranho naquele lugar e naquele dia: o mundo inteiro parecia estar girando no ritmo dela, em sincronia com ela, funcionando a seu favor. O mais hilário de tudo, foi ela não ter hesitado uma só vez, perante ao que estava prestes a fazer: se meter em uma baita de uma enrascada.

—O que você quer, estranha? –perguntou um dos moleques, com rispidez.

—Uh! Rebeldes...—ela fingiu tremer, fazendo cara de pouco caso. –Essa não é a forma certa de se tratar uma dama, sabiam? –o rapaz aos seus pés fitou-a demoradamente, enquanto tentava ficar em pé.

—Ah! E você vai fazer o quê sobre isso, hein? Vai nos ensinar a dançar valsa? –caçoou um dos moleques, acompanhado pelos risos dos outros dois.

A garota estreitou os olhos, um sorriso ainda mais motivado nos lábios.

—Ora, não me subestimem rapazes: Eu não sou muito do tipo que dança valsa... –então ela tirou de dentro do casaco, um espelho prateado de aparência antiga e com base para segurar, e ergueu-o na direção dos marginais: –Que tal uma charada? Por acaso já se olharam no espelho hoje...?

Os rapazes se entreolharam, nervosamente.

—Foi o que pensei! –e, num segundo ela apertou um botão oculto na base achatada do espelho, onde suas mãos o seguravam, e uma luz pálida saiu de dentro dele, junto de um zumbido estridente. –Gerônimo!

Na mesma hora os ladrões cambalearam e caíram desmaiados sob a calçada. O zumbido estridente que saiu do espelho quase estourou seus tímpanos, a partir dos fones de ouvidos que eles tinham nas orelhas. Por hora, serviu para fazê-los caírem desacordados.

—Espelho sônico –ela assoprou o objeto, como se fosse o cano de uma arma. –Nunca saem de moda!

Então agachou-se próxima deles, com ar superior, dando uma boa olhada no estrago que fizera.

—Foi muito bom falar com vocês, cavalheiros, mas agora peço que me dêem licença que eu vou ajudar o meu amigo ali, que vocês trataram feito capacho... –ela apanhou do chão a maleta do computador. Ergueu-se, ignorando-os totalmente e seguindo na direção oposta, onde estava o rapaz de roupas sociais, boquiaberto.

—Tudo bem com você? –ela perguntou ao rapaz. Seu tom agora era gentil e caloroso. Ele apenas a encarou, com total incompreensão. Ela, vendo que ele não reagiria, tratou de entregar a maleta de volta ao dono. Fez o mesmo com os óculos dele.

Pela primeira vez, Luisa hesitou por um momento, quando ficou cara a cara com ele.

—Eu vou colocar os óculos no seu rosto, tá? –pediu permissão, antes de tocá-lo. Ele assentiu, ainda tremulo. –Pronto. Se sente melhor agora?

—Eu não preciso deles todo o tempo. –ele falou, de repente.

Ela franziu o cenho, um sorriso jovial ainda no rosto.

—Como é?

—Os óculos. Estou falando que não preciso usá-los durante todo o tempo. Na real, os uso só quando preciso enxergar algo muito pequeno, de perto... –ele tagarelou inconscientemente. –É que eu sou escritor. Bem, tento ser, na verdade... Guardo meus textos no computador. Seria uma pena perdê-los... –ela sorriu, amigavelmente, e ele parou de chofre, esfregando a cabeça, confuso. –Espere um instante... Por que estou contando isso tudo a você? Desculpe a grosseria, mas eu nem a conheço...

—Ah! Desculpe a indelicadeza... A culpa é do meu sorriso. Ele é bem amigável, na verdade. Acaba sendo um ótimo cartão de visitas. Tendo-o sempre estampado no rosto, então, me permite livre acesso à todos os caminhos possíveis. Imagine só! –ela disse, sonhadora. –Em geral, as pessoas costumam se sentir confortáveis o bastante para se abrir comigo por inteiro. Acredite: nem conseguiria imaginar quantos pormenores sou capaz de descobrir sobre a vida alheia em apenas vinte minutos... –ela garantiu, arregalando um pouco os olhos. –Enfim... Recapitulando: Então... Isso é um sim?

—“Sim” o quê?

—Estou apenas me certificando de que você está bem agora. Não está machucado, está? –ela insistiu, preocupada.

—Eu vou ficar bem. –ele garantiu, mas sua voz não a convenceu. Parecia ainda levemente perturbado.

—Eu posso... –ela pediu, apontando para sua camisa. –Dar uma olhada?

—Vá em frente –disse ele, ainda com falta de ar. Permissão concedida, ela avaliou seu estado. Luisa abriu sua camisa e fitou seu peito, por alguns instantes.

—Hum... –ela fez, pensativa. Quando tocou o tórax dele, sentiu o corpo estremecer todo, como jamais acontecera antes. Ela recuou assustada, dando as notícias à ele o mais superficial possível. –Parece que não foi nada. Não sofreu nenhuma lesão grave. Você teve muita sorte. Só vai ficar um pouco dolorido durante os próximos dias...

 -Menos mal. –ele sorriu, com um pouco de dificuldade de manter a expressão feliz no rosto, enquanto ainda sentia o abdome latejar internamente. Quase que instantaneamente, ela sentiu um aperto no coração, como se fosse chorar a qualquer instante. O que estava acontecendo com ela?

—Moça, mas o que foi aquilo que você fez? –ele perguntou, confuso, à uma Luisa perdida em pensamentos. –Você derrubou os três caras de uma só vez... Como foi que fez isso?

—Golpe de sorte. –mentiu ela.

—Então você tem que me ensinar esse tal de “golpe de sorte”. Parece ser bem útil...

Ela riu do comentário dele, abertamente. Mas mesmo assim, não abandonou a desconfiança: Seu corpo estava se comportando de modo estranho desde que ela vira aquele rapaz pela primeira vez. Não podia anular as suspeitas de que ele também fosse algum tipo de “armadilha” preparada sob medida para ela.

De repente, Luisa o fitou com mais convicção que antes: acabara de ter uma idéia.

—Ainda dói? –indagou, abertamente.

Ele assentiu, desgostoso. Ela crispou os lábios, lamentando aquilo tudo.

—Eu posso ajudar você... –ela sugeriu, atenta a reação dele. –É só... Confiar em mim.

—Eu confio! –respondeu ele de prontidão, mais ansioso do que pretendia demonstrar. –Confio. Acabou de salvar minha vida...

Ela assentiu, concentrando-se para fazer seu próximo ato. Não pôde deixar de observá-lo enquanto se aproximava. Era como se algo a atraísse para perto dele. Uma força muito maior do que ela seria capaz de impedir, como fizera mais cedo para concentrar-se no livro. Ela inclinou-se sobre ele e tocou sua pele, na região machucada. No mesmo instante ele arfou, um pouco assustado ao ver que saiam das mãos dela uma corrente de luz dourada que, ao entrar em contato com seu corpo, dissipou a dor, de imediato. Aos poucos, Luisa se afastou para ver o trabalho concluído, mas as mãos dele estavam em seus braços, impedindo-a de criar distância. Seus rostos estavam muito próximos. Os olhos cor de mel dela brilharam ainda mais intensamente com a reação dele. Um feixe de luz prateado cintilou no fundo, deixando seu olhar ainda mais lindo. Ele acariciou com a mão, o rosto dela, colocando delicadamente uma das mechas loiras de seu cabelo, atrás de sua orelha. Ela se arrepiou toda.

—Parou de doer... –ele sussurrou. –Como você fez isso? –seu rosto se dividia em um misto de abismado e interessado. Não sabia se ficava horrorizado com o que ela conseguia fazer com as mãos, ou se a prendia junto a si, como desejava o seu coração. Lá estava de novo aquele velho dilema entre o emocional e o racional. Qual caminho deveria seguir?

Felizmente, Luisa agiu de prontidão, tomando distância.

—Quer ajuda? –ela estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar o que ele aceitou de prontidão. Já não sentia mais as dores abdominais quando suas pernas sustentaram o peso de seu corpo. Ele estava curado. Curado e intrigado. Já ia dirigir-lhe novamente a palavra, quando percebeu que a garota já estava dobrando a esquina, quase sumindo de vista. Sem pensar duas vezes, desatou a perseguí-la, antes que desaparecesse por completo.

—Ei! Espere! –disse apertando o passo, conseguindo alcançá-la. -Eu nem tive chance de agradecer... Estou em dívida com você!

—O senhor já agradeceu agora... Considere-se livre da divida.

—Por favor, não me chame de senhor, eu tenho vinte três anos!

Ela parou de chofre. Já ouvira aquela frase em algum lugar...

—Luisa. –falou.

—É seu nome? –ele animou-se.

—Acho que sim, já que vivia assinando “Luisa Parkinson” em todos os meus boletins de escola e, atualmente, em todos os papéis que me são entregues até hoje. –ela falou, indiferente. Ele sorriu, empolgado.

—Eu sou John. John Smith.

—Muito prazer John. –disse ela formalmente, apertando-lhe a mão. –Agora, deixe-me ir.

Ela deu-lhe as costas e deu uma corridinha, agarrada ao casaco e a uma bolsa que tinha junto do corpo, onde guardava seu livro e mais uma centena de coisas. “A Bolsa Que Tudo Tem”. Porém, ficou entediada quando percebeu que ele estava na cola de seus calcanhares. John definitivamente tinha passos largos ou pernas muito longas... Eles atravessaram uma ponte que dava direto no oceano logo abaixo, perto do porto.

—Por que está fugindo de mim?

—Fugindo? Eu não estou fugindo... Acho que a questão aqui é: “Por quê você está me seguindo”.

—Não estou te seguindo. Estou te fazendo companhia.

—Contra minha vontade? Sem que eu tenha convocado sua presença?

—Existem vários modos de se aproximar de alguém...

—Assim como existem várias maneiras diferentes de se bancar o imbecil e levar um chute nos países baixos! –retrucou ela, irritada, mas nem por isso ele deixou de segui-la. Pelo contrário, correu até ultrapassá-la e bloquear seu caminho.

—Isso é uma ameaça? –ele deu um sorriso torto.

—Pros seus países baixos sim! –ela contestou; o vento bagunçando seus cabelos dourados de uma maneira angelical.

—Pode doer no começo... –ele começou a dizer. -Mas não doerá tanto quanto perder você de vista agora.

Ela ficou sem palavras. Contemplou o oceano no horizonte, por cima dos ombros dele, para não ter que olhá-lo nos olhos, já que ele estava bloqueando a passagem na ponte.

—Luisa...? –ele chamou-a, fazendo-a voltar a si. –Então. O que você me diz? Voltaria comigo para o Milk-Express para trocarmos umas idéias?

Agora?—ela franziu a testa. –Mas você acabou de ser assaltado por aqueles caras!

—É, mas foi isso que acabou fazendo a gente se conhecer... –ele sorriu, inspirado. –Diga que aceita!

—E eu tenho escolha? –ela colocou as duas mãos na cintura e ergueu as sobrancelhas, questionadora. –Você está impedindo a minha passagem... Não há como eu ir à lugar algum!

—Mas você sabe que pode me contornar sem dificuldade! –ele pegou-a no pulo. -Qual é? Você é mais forte que eu! Mais forte que aqueles três ladrões juntos! Tem alguma coisa diferente em você que eu não consigo ver em mais ninguém... –ele fez uma pausa sugestiva e ela desviou os olhos, dengosa. -Você é especial.

—Tudo bem garanhão! –ela revirou os olhos. –Vamos voltar...

Ele sorriu satisfeito, quando deram meia volta.

—Então quer dizer que você não é daqui? –puxou assunto.

—Sim e não. Bem, quando se vive agarrado à crosta de um planeta como esse por muito tempo, é fácil se sentir parte dele... -disse ela com o olhar pródigo e misterioso.

—Você tem um jeito bem interessante de fazer comparações... –disse ele meio abismado. –Você é sempre assim, tão criativa?

—Só quando estou em público. –disse ela, com ar intelectual.

—Mas você é tão peculiar... –desabafou ele, um pouco incomodado. –Quando você fala, até parece coisa de outro mundo!

—E você continua me ouvindo. –acusou-o ela estrategicamente, com um sorriso discreto nos lábios. 

—Posso...? –John estendeu-lhe o braço para que ela pudesse andar junto dele, mas a garota recuou instintivamente.

—Nada disso! Você ainda nem me pagou uma bebida e já está querendo andar de braços dados comigo? Não sei como esse lugar funciona, mas eu gosto das coisas mais devagar... Ai!—ela tropeçou e quase perdeu o equilíbrio, mas no ultimo segundo foi amparada pelo rapaz, que a segurou junto dele e, aproveitando a oportunidade, a ergueu em seus braços.

—Estava indo tão devagar que até a pedra quis que você apertasse o passo!—brincou ele.

—Me ponha no chão! –trovejou ela, emburrada.

—Não! –ele disse, provocando-a. –Você me ajudou quando precisei, agora vou fazer o mesmo por você “senhorita Luisa”, mesmo que você me chute, dizendo que não me quer por perto...

—E eu chutaria, se meu pé não estivesse doendo! –ela reclamou, massageando o pé que raspou na pedra. De um lado estava irritada, sem saber ao certo porquê. Do outro, estava adorando aquele jeito galanteador de John, apesar de telo acabado de conhecer. Ainda meio relutante, ela passou as mãos em volta de seu pescoço e deixou-o carregá-la de volta para o café local. Lá eles conversariam, e ela poderia conhecê-lo melhor. Poderia ser teimosa e até mesmo complicada de se lidar, mas uma coisa que ela não era, era ser trouxa a ponto de dispensar um rapaz tão gentil e bonito, quanto ele, sem antes ouvir o que ele tinha a dizer.

A imagem tremeluziu, perdendo o foco, fazendo a cena do casal desaparecer de vez. Luisa abriu os olhos e olhou ao redor: estava deitada em sua cama. Por um só momento perguntou-se o que estaria fazendo lá, então recordou-se devagar do que acontecera na noite passada, de todos os imprevistos ocorridos com o decorrer do tempo e como fora dormir tarde. Não dormira por preferência, nem por obrigação; caiu de sono quando o relógio marcou três e meia da manhã, sem opção nem escolha. A ultima coisa que se lembrava era de ter sentido muito medo por um instante, seguido de uma vontade louca de rir, além de um suposto rebuliço envolvendo penas de travesseiros e no fim, um ultimo suspiro, antes de desmaiar completamente de cansaço. Mas antes de fechar os lhos completamente, vislumbrou, já com a vista bastante turva, um Doutor curvando-se sobre ela e lhe dando um beijo de boa noite na testa. Mas agora já era de manhã e ela sentia como se não tivesse passado a noite toda dormindo. Aquele sonho que tivera tomara proporções tão reais que ela sentia como se sua energia toda tivesse sido desviada exclusivamente para seu cérebro poder fabricar o devaneio, portanto, o cansaço ainda tomava conta de si. Contradizendo as reações normais de uma noite mal dormida, Luisa ergue-se da cama com pressa, observando seu corpo que ainda vestia a mesma camisola curta, e não aquelas roupas de passeio do suposto sonho; apanhou o espelhinho que estava em cima do criado-mudo e desatou a se olhar: seus olhos e cabelo estavam da cor de sempre: castanhos. Não havia sinal algum de mel ou amarelo neles. Por que então ela tivera um sonho em que estivera tão mudada? Nem sabia que seu cérebro era capaz de fazer photoshop!

Que sonho estranho...—ela murmurou esfregando a cabeça, ainda meramente confusa. –John Smith? Eu já ouvi esse nome antes... Mas onde?—o raciocínio lento da falta de sono começara a dar vestígio, mas ela não se pegou com isso. Não adiantaria quebrar a cabeça para se lembrar de fatos sem nexo, afinal, o devaneio todo não fazia o menor sentido, e já que no mesmo momento em que recobrou a consciência, ela também se esquecera de quase todo o sonho, de que adiantaria a busca por nada? Se esquecera de quase tudo, com a exceção de sua própria imagem diversificada representada nele, e daquele nome: John Smith. Intrigada, e sem explicações suficientemente convincentes, ela sentou-se novamente na beira da cama, foi quando se deu conta de um pequeno detalhe: Estava sozinha no quarto.

—Cadê Melissa e o Doutor? –ela saltou da cama, tirou o pijama desajeitada, vestindo rapidamente uma blusa rosa com um colete vermelho por cima, junto da sua saia preta com bolinhas brancas favorita, calçou os sapatos e disparou para o corredor. Era manhã de domingo e a música *Friday Nigth –Katty Perry foi ressoando em seus ouvidos conforme ela ligou o rádio e andou pela casa, vendo a bagunça que se espalhava por quase todos os cômodos. Estava tudo de pernas pro ar: no seu quarto haviam penas do travesseiro espalhadas por todos os lados (vestígio da briga de travesseiros da noite anterior); no banheiro estava tudo alagado (culpa do registro emperrado); ela esquecera a vela no quarto dos pais, de modo que esta derreteu e transbordou do castiçal, sujando toda a parte de cima da camiseira (uma meleca!); ao descer as escadas a primeira coisa que viu foi a tv estilhaçada, com um buraco enorme no centro, e o raque afastado da parede, com um bolo de fios todos amarrotados:

—Ta legal... Dessa encrenca o Doutor não escapa! –pensou ela com seus botões. –Falando nele... Onde será que ele está?

De repente bateu um desespero: E se ele foi embora enquanto ela estivera dormindo?

—DOUTOR!

Ela saiu correndo desembestada para o quintal, cruzou a sala de estar e abriu a porta, na velocidade de um vendaval.

—Luisa! –o Doutor sorriu a vê-la na porta. O coração da garota se acalmou ao ver que ele continuava lá, mas logo em seguida deu um salto ao ver o que ele estava fazendo.

—Ai meu Deus! –ela arregalou os olhos ao ver o estado do jardim: As árvores estavam rosas, a grama estava roxa, o portão da frente estava amarelo, o chafariz estava vermelho, até Nik, o cãozinho de Melissa, que brincava de tentar pegar uma borboleta verde, estava azul; e o céu, laranja. –Que diabos você fez? –acusou-o lodo de entrada.

—Eu? Nada! –disse ele animado. –Quero dizer, eu andei mexendo na minha chave sônica e adivinhe só!

—Eu preciso mesmo dizer? –indagou ela, pasma.

—Eu acabei de encontrar uma nova função pra ela! Localizei a freqüência hoje cedo... Agora, além de abrir portas ela também pode...

Colorir o jardim todo feito uma aquarela maluca!—adivinhou ela, quase sem reação.

—Ah! Estraga prazeres –ele bufou. –Como foi que descobriu tão depressa?

—Eu simplesmente abri a porta de casa e cá estava: tudo colorido! —disse ela, ainda espantada. -Mas você tinha que alterar até a cor do céu? Eu sempre gostei do céu sendo azul! –ela protestou.

—Eu não tive muita escolha, já que é a chave sônica que está manipulando a mudança de cores –explicou ele. –Esse programa é novo, eu acabei de ativá-lo. Ainda não sei muito bem quantos padrões diferentes existem, mas vou continuar xeretando até trazer tudo de volta ao que era...

—Eu acho bom! –ela bronqueou-o com as mãos na cintura. 

—Adivinha o que mais eu fiz?

—Deixou o Nik azul com bolinhas amarelas? –sugeriu ela, sarcasticamente. (ele era um dálmata).

—Você é mesmo boa adivinha. –disse ele, abismado por não conseguir esconder nenhuma “surpresa” dela.

—E se quer saber, eu também sou boa com previsões! E já até prevejo o tapa que a Melissa vai te dar quando descobrir que você coloriu o cachorro dela...

—Isso não é um problema pra ele. Foi ele mesmo que escolheu a cor... –interveio o Doutor, com as mãos no bolso.

O cachorro sentou-se na grama ao lado do rapaz e observou Luisa, com a cabeça inclinada, como se dissesse “Eu gosto desse cara, ele é maneiro!”. A garota revirou os olhos, já sentindo a cabeça latejar logo cedo.

—E como é que você sabe que ele quis ficar azul? –disse ela, cansada de lançar-lhe abordagens diretas.

—Azul com bolinhas amarelas. Não se esqueça das bolinhas –corrigiu ele. –Elas são muito importantes...

—Tudo bem: “Azul com BOLINHAS AMARELAS”, satisfeito? –disse impaciente. –Pode responder minha pergunta agora?

—Eu falo cachorres. Não se lembra? Foi uma das primeiras coisas que eu te falei quando nos conhecemos...

—Quer dizer, uma das primeiras “maluquices” que você proferiu... –retorquiu ela com um sorriso irônico no rosto. –É claro que eu me lembro! Mas se ponha no meu lugar: Mesmo com você jurando isso pra mim, é quase impossível de se acreditar que...

—SOCORRO! –a voz esganiçada de Melissa cortou o ar seco e colorido daquela manhã.

—Melissa! –Luisa correu para os fundos da casa, em direção à cozinha, enquanto o Doutor a acompanhava, apressado.

Quando adentraram na cozinha, seus lábios ficaram entreabertos ao contemplar uma imensa chama de fogo que erguia-se vívida e liberta de dentro de uma frigideira em cima do fogão, faltando pouco para chegar ao teto, enquanto do outro lado, estava uma Melissa desesperada, tentando lutar contra o avanço do fogo com uma espátula de alumínio nas mãos, apontando-a inutilmente contra o fogão.

Melissa! —gritou o Doutor. –O que você pensa que está fazendo?

Eu sei lá!—afirmou ela, os olhos aflitos. -Eu ia fritar uns ovos para o café, mas acho que coloquei óleo demais na frigideira! Ela começou a borbulhar e a ferver; o óleo começou a espirrar e ficar fora de controle e então eu resolvi jogar água para amenizar a quentura...

Urrrr! Melissa! —o Doutor deu um tapa na própria testa. –Não poderia ter dado em outra coisa! Não sabe que não é nada aconselhável jogar água fria no óleo quente? Isso só piora as coisas! Essa bola de fogo podia ter explodido em cima de você! Meus Deus, vocês não assistem documentários não, hein?—perguntou ele com ar critico.

Menino Alien! E isso é hora de ficar dando sermão? Até parece minha mãe falando!—comparou Melissa, agitada. –Será que podemos pular essa parte e irmos direto para o ponto em que apagamos o fogo e nos livramos dos restos criminais da frigideira?

—Você é quem sabe –o Doutor deu de ombros e encarou mais atentamente o fogaréu que já quase alcançava o teto.

—Esperem um segundo, eu já volto! –anunciou Luisa, correndo para fora de casa, deixando-os a sós com as chamas.

O Doutor se pôs entre o fogo e Melissa, aproximando-se tanto do fogo a ponto de sentir a quentura dele bombardear seu corpo. Melissa apenas observava tudo, por cima dos ombros dele. O Doutor tirou a chave sônica do bolso e apontou-a contra a frigideira.

—Está muito ruim, não é? –sondou ela, roendo uma unha. –Será que tem jeito?

—Estou agora tentando localizar a freqüência exata dessa pequena explosão... –explicou ele. -Com os resultados talvez eu possa chegar a uma conclusão melhor do que será útil para apagar esse fogo, já que a água só o atiça mais...

—Você não disse que assistiu um documentário sobre isso? –sugeriu ela.

—Disse. –concordou ele, a testa começando a gotejar.

—E porque não tenta se lembrar de como ele acabou? Geralmente eles fazem uma análise detalhada do tema, antes do programa acabar. –lembrou Melissa. -Será que não falaram nada sobre isso?

—Não sei –admitiu ele, meio indiferente. –Devo ter cochilado uma ou duas vezes antes do fim do programa! Não há como saber como ele termina...

—Mas você é mesmo um imprestável! –reagiu ela, dando-lhe um tapa no braço.

—Ai! –gemeu ele. –Lembre-se de quem botou fogo na cozinha!

Melissa engoliu em seco.

—Será que vai dar pra salvar o cômodo? –perguntou ela receosa. –Se a casa toda queimar eu estarei perdida!

—Bom, de uma coisa eu tenho certeza: Você nunca será convidada a participar daqueles programas chatos de Culinária na tv...

—Ah! Que ótimo! Isso com certeza resolve tudo! —bufou ela, ironicamente.

—É, mas não vamos nos exaltar... –ele encostou a chave sônica ao lado do ouvido. -Muita calma nessa hora... A-rá! Acho que acabei de encontrar a freqüência...

Nesse exato momento, Luisa irrompeu no ambiente, segurando um pesado extintor de incêndio vermelho. O Doutor só teve tempo de arregalar os olhos e recuar alguns passos do fogão.

Senhor fogo, diga olá para o meu amiguinho...—ela falou enfática para o fogão, ameaçando soltar o jato de fumaça gélida, contra ele.

Luisa... —o Doutor começou, lentamente. –Haja o que houver, não aperte a válvula reguladora...

—Não fazer o quê? –sem querer seu dedo acionou a válvula que desencadeou o jato do extintor. Este disparou mais forte do que ela pretendia, deixando a cozinha toda e tudo que estava nela, congelado. O Doutor abriu os olhos fazendo uma careta, até as suas sobrancelhas estavam brancas...

Com tanta força—ele terminou sua frase, já todo encharcado.

—Opa! –ela falou, mordendo o lábio.

—Você conseguiu! –comemorou Melissa, correndo para abraçar a amiga, também toda cheia de gelo pelo corpo. –Você nos livrou de uma fria! E com um jato bem frio, para ser exato...

Luisa deu um meio sorriso, já mais aliviada.

—Estão todos bem? –perguntou, ao que os dois amigos assentiram positivamente.

De repente, todos pararam para escutar alguns latidos insistentes do lado de fora da casa.

—É o Nik lá fora? –Melissa atravessou a porta da cozinha e seguiu de uma vez só para o jardim, de modo que ninguém mais teve tempo de impedi-la. Luisa de súbito fez uma cara de assustada para o Doutor, ao se lembrar da bagunça de cores que estaria na frente de sua casa, ao que ele retribuiu com o mesmo sentimento: Melissa definitivamente não podia ver o que a chave sônica fizera com as cores e, especificamente, com Nik, seu cão. Não antes dele voltar à coloração normal! De outro modo, o Doutor acabaria sentindo a ira da menina recair sobre suas costas largas, o que não seria nada bom.

Sem pensar duas vezes, ele puxou Luisa consigo para fora do cômodo congelado que costumava ser a cozinha, rumo ao jardim da frente, ainda a tempo de ouvir outro berro de Melissa:

Aaaaaaaaaaaah! Que horror!—gritou ela ao ver Nik e todo o resto do mundo lá fora, colorido indevidamente. Seus olhos acusadores voltaram-se de imediato para o Doutor, que deu um baita sorriso forçado. –Você!

Se olhar matasse, o de Melissa o teria feito naquele instante. Ela fuzilou-o com os olhos como nunca antes.

Traz o Nik de volta! Agora, vai!—ameaçou ela com a voz abafada, aproximando-se sorrateiramente do rapaz a cada instante. Ele retrocedia com passos vacilantes para o outro lado, já calculando a melhor estimativa para escapar dela. –Desfaça a maluquice que você fez... Vai!

O Doutor tinha que dizer alguma coisa...

—Eu lamento. Lamento muito mesmo, mas ainda não sei bem como fazer isso...—desculpou-se ele. Os olhos de Melissa faiscaram:

Péssima escolha.

Ela disparou contra ele, com um grito de guerra, perseguindo-o em volta da casa, como se fossem gato e rato. Foram parar nos fundos da casa, onde o Doutor circulou a piscina de plástico diversas vezes, na tentativa de cansá-la ou, ao menos de confundi-la. Melissa, porém, já entediada com a perseguição, quis partir para outra abordagem: no meio da corrida, ela contornou o caminho, aproveitando a oportunidade para se armar: de uma só vez, ela correu para a direção oposta e agarrou com força a primeira coisa que suas mãos segurassem, que no caso, acabou sendo o violão de Luisa, encostado à sombra, bem ao lado da porta da cozinha. O Doutor veio correndo, sem perceber que a garota não estava mais atrás dele; entretanto, quando viu-a ali parada, fitando-o com seus olhos irritadiços, parou de chofre, pouco antes de se toparem. Ele arregalou os olhos para a peça de madeira segura por ela de forma incorreta, apoiada no ombro e de cabeça para baixo: Melissa arremessaria-o contra ele se o Doutor bobeasse. Luisa, porém, interveio no momento certo:

Melissa! Pelo amor de Deus... É o Meu violão! Largue ele agora!—exigiu a garota desesperada, ao ver a outra preparando-se para atingir o rapaz com o instrumento. 

—Foi mal Lu! Mas eu queria tanto saber qual o som da madeira pairando contra a órbita craniana do Doutor... –disse ela, atentada.

—Méli! –cortou-a Luisa, lentamente. –Passe o meu violão pra cá, com cuidado...!

—Tá bom... –reclamou ela, aparentemente insatisfeita, entregando-lhe o instrumento.

—Melissa, você precisa confiar em mim –começou o Doutor. Ela olhava-o com desdém. –Eu prometo que irei reverter tudo...

Contra todas as expectativas alheias, ela pareceu se acalmar e se conformar com aquela afirmação; chegou até mesmo a sorrir. O Doutor olhou para Luisa, intrigado, e a garota esbanjava uma cara de total incompreensão.

—Ela está bem? –ele sussurrou para Luisa, que deu de ombros.

—Eu sei lá! É da Melissa que estamos falando...

A garota caminhou na direção dos dois, um sorriso bem grande ainda no rosto, então ela emparelhou-se com o Doutor, ao que ele engoliu em seco:

Estou falando com a entidade que acabou de baixar no corpo dessa mera humana estúpida... –disse o Doutor, testando as capacidades de defesa daquela Melissa que agia de forma muito estranha e incomum. Infelizmente, aquilo era só uma tentativa dela de se controlar para não estapeá-lo. Mas, com o ciclo agora interrompido na metade, não havia muito mais para se fazer: Melissa deu-lhe um tapa na cara.

—Ai! –ele massageou a bochecha que latejava onde ficara vermelho. –Você me bateu!

—É. E pode ter certeza que tem muito mais de onde veio esse tapa! –ameaçou ela. E então, voltando a ficar com o rosto vermelho, a cara amarrada evidentemente irritada, ela desatou a correr atrás dele, sem “armas” desta vez, mas mesmo assim, perigosa e imprevisível como sempre.

Luisa revirou os olhos ao ver os dois correndo em círculos viciosos, agora em volta do barracão e por trás das árvores, onde ficava pendurada a rede. Já estava indo interromper a briga quando seu celular tocou:

—Alô?

Oiiiiiiiiiiiiii! —ela teve que afastar o telefone da orelha para não ensurdecer.

—Quanto amor meninas! –riu ela, ao reconhecer as vozes de todas as suas melhores amigas da escola, bem do outro lado da linha. –O que há de novo?

—Nós estamos indo nos encontrar com os garotos no shopping... Você quer vir também? –perguntou a voz ansiosa de Raven, em meio aos gritinhos das outras.

—Ah! Mais é claro que eu quero ir!

—Chame Melissa também! –disse a inconfundível voz de Julie.

—Está combinado... Mas a que horas podemos nos ver? Já estou morrendo de saudades!

—Daqui a dois segundos... –disse a voz de Summer.

—Como? –instintivamente, Luisa caminhou até o jardim da frente da casa, onde encontrou todas as garotas saltitantes no seu portão. Espantou-se ao notar que as cores já haviam voltado há sua forma comum, de modo que ninguém, além deles três, notara a diferença. –Meninas!

Luisa!!! –sorriram todas em um misto de alegria e ansiedade. –Vamos?

Mas agora?—Luisa travou. –Agora eu não posso. Estou meio... Meio ocupada, sabe? Ainda nem tomei o café direito e a casa está uma verdadeira bagunça! –literalmente falando. –Não poderia ser mais tarde?

—Sem chance! –retrucou Carly.

—É! A gente quer aproveitar o dia. As novas formandos do bairro! –disse Sam. –Gosto do som disso. Pensei que nunca sairia da quinta série! –ela brincou e todas riram. Um grito, vindo dos fundos da casa, quebrou o momento descontraído.

Eu vou te matar seu filho da mãe! Que diabos você fez com o Nik? Eu nunca mais vou te perdoar! Tome isso! E isso!

As garotas franziram o cenho, procurando reconhecer o som. Luisa ficou muito séria.

—Essa é a voz da Melissa? –perguntou Sam, ao que as outras concordaram.

Não! Não é. –mentiu Luisa, disfarçando um sorriso. –É só a minha tv. Eu estava vendo um filme...

—É mesmo? –sorriu Claire, animada. –Qual filme?

—É... Difícil... –gaguejou Luisa. Ouviu-se mais uma vez os gritos de Melissa e desta vez, as retrucadas do Doutor também:

Dá pra ficar quieto! Assim eu não consigo te acertar...—ralhava ela.

Rá-rá! Não mesmo, minha querida... –dizia ele com ironia. –Eu não pretendo morrer hoje!

Difícil... De Matar! –completou ela. –É! É esse o filme que eu estava vendo... –ela desviou o olhar das outras. Não gostava de ter que mentir para as pessoas, especialmente quando estas eram suas amigas. Mas na real, aquilo era melhor do que dizer a verdade: da qual ninguém acreditaria mesmo já que envolvia máquinas do tempo e coisas do tipo.

—Ah! Eu já vi esse filme! –empolgou-se Claire. –É bem assim mesmo...

—Pois é. –Luisa não sabia onde enfiar a cara, quando um argumento final despertou seus sentidos:

—Sabe quem mais vai estar lá? –disse Summer. –Ned Bigby.

No mesmo instante o coração de Luisa disparou fora de seu próprio controle, e seu corpo todo estremeceu, contra sua vontade.

—O N-Ned? –ela gaguejou de novo. Dessa vez foi impossível disfarçar a surpresa e a felicidade que isso gerou.

—Você gosta dele, né? –perguntou Raven, com aquele olhar de “eu sei das coisas”, que só ela mesma tinha.

—E-eu? Não! Imagine –disfarçou Luisa, um sorriso incontrolável ainda no rosto. –Por que você acha isso? Ele e a Moze estão juntos...

—Não, não estão. –interveio Sam. –Eles terminaram no baile de formatura. Parece que não rolou do jeito que devia...

—É. A Moze disse alguma coisa sobre “ser estranho beijar o seu melhor amigo” e como a química não aconteceu como ela esperava. –informou Carly.

De um lado o coração de Luisa deu um pulo, feliz. Do outro, ela se puniu por ficar insistindo naquele joguinho de “chove não molha”.  Como se tivesse lido sua mente, Raven proferiu:

—Esteja no Shopping Center ás duas e quinze. Nós já estamos indo pra lá... –então ela sorriu. –Vamos ver se você tem tempo o bastante para se arrumar até lá!

As meninas riram e se despediram. Luisa novamente se criticou por ter corado no ultimo comentário de Raven. Puxa! Ela poderia pelo menos ter segurado aquela barra... Mas nem teve tempo para isso. Mal as garotas saíram da frente do portão, Luisa recomeçou a ouvir mais uma sessão de gritos histéricos, masculinos e femininos, vindos dos fundos da casa.

—Arrr! Hoje é dia! –ela revirou os olhos e correu para os fundos onde se deparou com um Doutor deitado no chão e uma Melissa sentada em cima dele, á força. Ela fazia uma briga corporal com ele, braço contra braço, mas Melissa ainda tinha a vantagem de estar por cima dele, jogando seu peso contra o rapaz, para impedi-lo de escapar. O Doutor esperneava como uma criança quando vai ao médico tomar injeção. Melissa segurava seus pulsos, tentando dar-lhe uns tapas, enquanto ele gritava e se esquivava.

—Sai de cima de mim! –gemeu ele.

—Não! –disse ela vitoriosa. –Eu venci! Admita que eu venci seu velho egocêntrico!

Nunca!—gritou ele, depois que eles rolaram na grama.

—Essa não é a resposta certa... –ela ameaçou-o e continuou a lutar corporalmente com ele, ao que o Doutor ergueu as mãos, desarmado.

—Pare com isso! É uma luta injusta! Eu estou em desvantagem... Ai!—disse ele, ao que ela deu-lhe um chute.

—Você é que é um fracote magricela! –retrucou Melissa, enfurecida. –Vem encarar, bobão!

Os dois já iam começar de novo, quando Luisa deu um berro:

—Paaaaaaaaaaaarem! –a dupla olhou-a com curiosidade. Até ela mesma se assuntou com a intensidade de seu grito. -Desculpa. –ela corou. –Mas preciso de vocês dois lá na cozinha, ou o que sobrou dela... 

Os dois levantaram e foram se dando tropicões e empurrões grotescos no caminho. Luisa barrou-os na porta da cozinha, lançando-lhes um olhar de mãe zangada, “ao ver os dois filhos brigando um com o outro”. Impaciente, apontou a mesa, coberta de pó branco gelado e obrigou-os a se sentar. Ela tinha muito o que dizer.

Infelizmente, não rolou como o esperado. Eles recomeçaram a brigar antes mesmo que Luisa pudesse ao menos comentar sobre o compromisso de mais tarde. Quando deu por si, ela estava novamente em pé, ao lado da geladeira, com um capuccino nas mãos, só observando de longe os dois amigos quebrarem o pau, em pé, de frente para a janela, um jogando contra o outro.

—Você é um hipócrita! –ralhou Melissa. –Se eu fosse a sua mãe, você já estaria agora de quatro no meu colo e eu estaria enchendo o seu traseiro de palmadas!

Mas você não é minha mãe!—revoltou-se ele. –Tenho 1000 e tantos anos. Eu já sou adulto! Não tenho mais idade pra apanhar, se não percebeu!?

Ahã! Adulto. Sei... –disse ela sarcástica. –Um cara que age vinte quatro horas feito criança, acha que é um “homem adulto”! E quê Adulto! Doutor, Seja razoável e reveja a sua ficha pessoal: Você. É. Um. Crianção!

—E você, uma estraga prazeres!

—Ah é?

—É, sim senhora!

Arrrrr!—Luisa colocou a xícara ruidosamente em cima da pia e foi caminhando até os dois, mas não parou para discutir; Na verdade, ela só atravessou pelo espaço entre os dois e seguiu seu caminho, cansada. Eles nem se deram conta no desgaste que aquilo lhe causara: ver seus dois melhores amigos brigando não era algo fácil de se engolir. Mas Luisa tinha uma última carta na manga. Conforme ela passou por entre eles, ambos os dois briguentos foram se contorcendo de dor e caminhando também rumo à mesa, pois a menina passara puxando suas orelhas e, coincidentemente seus devidos donos, de modo que eles foram obrigados a segui-la e, desta vez, a ouvi-la também.

—Tudo bem crianças, escutem: Eu tenho uma novidade pra dizer... –disse Luisa, aos dois, desta vez a todo ouvidos. –Eu e Melissa temos um compromisso hoje. Por tanto, o Doutor tomará conta da propriedade e irá deixá-la como a encontrou ontem à noite. –ela parou para refletir, então chegou a uma conclusão, acrescentando: -Bem... Pelo menos antes da minha mãe sair.

Como é?—disse Melissa pasma. -Ficou Maluca? Deixar ele sozinho aqui? Ele vai terminar de explodir a casa!

   -E você, a cozinha. Parece-me que finalmente ficamos quites, não é? –constatou ele, irônico.

   -Não! Escutem. Essa não é a proposta! –interferiu Luisa. –Precisamos sair hoje e a casa precisa voltar ao normal antes da minha mãe chegar, e quem melhor que o Doutor para ordenar tudo? –disse ela, dando um sorriso forçado para ele.

—Que tal assim: Qualquer pessoa do mundo? —supôs Melissa.

—Vê se te enxerga! –ele fez uma careta pra ela.

—Ah! Por favor Doutor... –pediu Luisa fazendo cara de pidona, segurando seu braço insistentemente, junto de si. –Por favor...

—Ah! Tudo bem... –cedeu ele, sorrindo. –Eu arrumo tudo.

—Excelente! –ela lhe deu um beijo na bochecha. –Obrigada Doutor. Eu te devo uma...

—Duas na verdade –ele sorriu e ela também o fez, intrigada. –Salvei a sua escola toda de uma invasão extraterrestre, se lembra?

—Está contando pontos? –ela cruzou os braços, achando graça.

—Pareceu um bom negócio no começo... –ele riu, amplamente. –Talvez ainda ganhe alguma coisa com isso...

—Talvez –repetiu Luisa, abrindo possibilidades. –Mas por hora, vamos nos concentrar no plano inicial. Não se preocupe com nada. Ninguém deve aparecer aqui perturbando a paz antes das cinco e vinte... –avisou ela, apanhando a bolsinha cor de rosa. –Será tempo suficiente para arrumar tudo?

—Acho que sim. E ainda arrumarei tempo para fazer pipoca... –brincou ele.

—Certo, mas nada de fazer no micro-ondas, por favor. Já tivemos acidentes demais por um dia... –afirmou ela, sorrindo.

Os três seguiram para fora da cozinha. Atravessaram o corredor lateral que levava ao jardim da frente, até alcançarem o portão vermelho engradado, que dava direto para a rua. Um silencio pouco comum fez-se entre Luisa e o rapaz quando eles se aproximaram para se despedir. Em geral, era sempre ele quem arrumava algum motivo para ir embora e não o contrário. Essa era a primeira vez que isso acontecia na versão das garotas, com elas saindo e ele ficando em casa, sozinho, sem ter que ir a algum lugar, para variar. Era bem estranho aquela troca de papeis, e seus olhares bem humorados, mas ao mesmo tempo, sem assunto, não estavam contribuindo muito para a despedida.

—Enfim, é isso. –disse Luisa, estendendo-lhe a mão.

—O quê? Só um aperto de mão formal? Quem você pensa que eu sou? Um amiguinho seu qualquer? –ele atiçou, aparentemente ofendido e ela sorriu deliberadamente, como se apesar da carranca de indignação do outro, ela soubesse que tudo não passava de uma brincadeira.

—Vem aqui seu bobo! –ela agarrou seu pescoço e ele suspendeu-a no ar, devolvendo o abraço, agora com um imenso sorriso satisfeito no rosto. Eles se separaram e Luisa beijou-lhe a testa, segurando firme em seus ombros, como apoio. –Cuide bem de si mesmo, ouviu?

—Pode deixar... –ele sorriu, batendo continência de brincadeira. Depois cruzou os braços e fitou-a demoradamente, enquanto ela abria o portão que levava à rua. –Boa sorte com o seu encontro.

Luisa gelou.

—O quê? –ela disfarçou. –Quero dizer, como você...?

—Foi fácil descobrir –ele deu de ombros. –É o garoto dos olhos azuis da qual a sua mãe me confundiu no dia em que nos conhecemos?

Luisa corou abruptamente.

—Eu... –ela não sabia direito o que dizer. Era certo que ela beijara o Doutor várias vezes, mas ela ainda não tinha certeza de que estava mesmo apaixonada por ele. Assim como não sabia muito bem o que ele pensava dela. Isso a incomodara muito nos últimos tempos e, para ser franca, ela nunca esquecera Ned totalmente. Só porque eles tiveram um desencontro no baile de formatura não significava que estava tudo acabado para os dois. Aquela era uma nova oportunidade, e desta vez tinha que dar certo! Só então teria certeza de que o que sentia pelo Senhor do Tempo era mesmo verdadeiro ou não. Só havia um problema em tudo isso: ela definitivamente não fazia idéia de como explicar isso pra ele.

—Doutor...

—Tudo bem –ele sorriu e fez um sinal de “permissão para falar” com as mãos. –Não se preocupe comigo. Você tem a sua própria vida e eu respeito isso. Portanto, vá se divertir!—ele falou e ela ficou paralisada com a reação positiva dele. Não queria que ele se sentisse mal com o seu encontro, mas também não esperava que ele aceitasse tudo numa boa. Se isso fosse um teste de fidelidade, ele definitivamente estaria se saindo muito mal despachando-a assim. Ela contemplou-o por uma fração de segundos, insegura. Então ele lhe deu uma injeção de ânimo. –Vamos Luisa! Não é um pedido meu, é uma ordem! Vá! Vá! Vá! Ele está esperando por você no shopping. Vá se divertir menina!

—Calma aí! Não tão rápido...—ela se aproximou dele e fitou seus olhos profundamente. –Porque está fazendo isso?

Ele deu de ombros.

—Quero deixar o caminho livre caso você queira viver sua vida por conta própria... –ele sorriu sinceramente.

—Tem certeza que é só isso? –ela parecia desconfiada. Ele sustentou seu olhar amigavelmente, e sorriu:

—Absoluta certeza.

—Está bem então. –Luisa cedeu finalmente (os olhos dele estavam sendo sinceros). –Então até mais, Senhor do Tempo!—ela sorriu e se afastou, seguindo seu caminho junto de Melissa.

—Divirtam-se! –o Doutor acenou sorridente, seguindo novamente para os fundos da casa, com a mente recheada de idéias malucas. –Próximo passo: Arrumar a casa! Espero que eu ainda saiba como fazer isso...

*   *   *


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Notas finais do capítulo

Não se preocupem, essa história de uma Luisa loira e um cara chamado John Smith está apenas começando...

Ai ai... Esses dois kkkkkkk Doutor e Melissa parecem um furacão juntos, as vezes!

Hum... será que vai prestar deixar o Doutor sozinho na casa?

Semana que vem iremos descobrir!



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