Luisa Parkinson: A Companheira Fantástica escrita por Gizelle PG


Capítulo 119
O visitante


Notas iniciais do capítulo

Oláá!

Preparem-se: hoje teremos mais respostas :)



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—Ai! Sinto muito. Muito mesmo.

O Doutor tropeçou em um anão de jardim, em um gramado de uma casa que não tinha muro ou cerca. Aquela era uma rua diferente. Ele nunca tinha estado lá antes, mas agora tinha motivos suficientes para estar: De acordo com pesquisas recentes feitas na TARDIS, ele estava no bairro São Valley, na rua Girassol Carmim, onde Luisa Parkinson passara a infância e parte da adolescência.

—Bom, é aqui. –disse ele, confirmando a informação ao observar um visor portátil implantado em um cabide de roupas. –Agora só me falta localizar a casa certa... –ele ergueu o objeto na altura dos olhos, então uma gota pingou contra o visor e desviou sua atenção. O Senhor do Tempo olhou para cima e uma segunda gota respingou próxima ao seu olho, deixando-o indignado. –O que? Chuva? Não, agora não! Não vê que eu estou prestes a...

Deu-se um trovão muito alto e um raio acendeu todo o céu por um instante. De repente, a chuva despencou em pingos grossos e gelados.

Argh, deixa pra lá! –assustado, o rapaz correu debaixo de chuva e se abrigou embaixo de um toldo amarelo, estendido em uma casa. Suspirando, esfregou algumas partes mais úmidas das vestes e depois, conferiu se a Internet portátil não havia pifado. –Ah, ótimo! A busca continua... Legal. Agora, vamos ver assim... –e digitou algumas coisas na barra de pesquisa. –Certo. Vamos lá... Encontre-a para mim Stuart e eu lhe dou duas recargas Platiun como recompensa.

Segundos depois, pipocou na tela do aparelho uma seqüência de resultados diferentes.

Isso camarada—o Doutor falou, distraído, conferindo as informações. –Espera aí: Mais de trinta resultados encontrados? Stuart! Não está sendo preciso o suficiente! –resmungou, chacoalhando o cabide.

A chuva apertara e o pior: começou a ventar também. Chuva de vento é uma coisa realmente irritante, especialmente se você está tentando escapar dela. Por mais que você consiga escapar das gotas geladas, a ventania acaba fazendo com que, de um jeito ou de outro, ela acabe alcançando você. E, como o Doutor ainda tinha o casaco molhado colado ao peito, as chances de pegar um resfriado eram bem altas.

—Que frio! –exclamou. –Pára chuva! Chuva má! Chuva muito levada... Muito mesmo! –bronqueou o mal-tempo, mas a chuva nem se importou e continuou caindo, como o Doutor sabia que faria. Contrariado, o rapaz abraçou o próprio corpo e ficou em pé, esperando o temporal passar. Porém, três segundos depois, a chuva parou completamente. E não foi tipo “ir acalmando até parar”, foi mais para algo como uma piscada: num momento estava chovendo forte, no outro, as nuvens se abriram e o sol tornava a surgir, como se nada tivesse acontecido. O Doutor ficou pasmo.

—Mas... O que foi isso? –perguntou a si mesmo. Se não fosse por seu casaco estar úmido, o gramado encharcado e as calçadas cheias de poças, ele poderia jurar que nem chovera ali.

Às suas costas havia uma janela, que pertencia à casa do toldo amarelo. Disfarçadamente, uma cortina foi afastada e alguém o espiou pelo lado de dentro. No momento seguinte, a porta se abriu rangendo, dando-lhe um baita susto. O Doutor recuou para trás e quase escorregou nos três degraus que levavam à entrada da casa, onde estava o toldo amarelo. Seus sapatos estavam encharcados, mas ele conseguiu se equilibrar, evitando uma queda. Porém, ficou um pouco embaraçado quando deu de cara com uma velhinha de cabelos de algodão e aparência bondosa, que o observava com um sorriso. 

—Está precisando de alguma coisa, queridinho?

—Como é? Queridinho?—o Doutor ergueu uma sobrancelha, então percebeu que estava sendo cínico e logo consertou as coisas: -Quero dizer, não, não. Está tudo bem, minha senhora. –deu o maior sorriso amarelo do mundo. As mãos bem apertadas atrás do corpo.

—Tem certeza? –ela insistiu. –Você está todo ensopado. Venha... Eu posso ajudar a secar suas roupas –ofereceu-se. O Doutor ficou meio sem graça.

—Olha, eu não quero mesmo incomodar... E tem mais: eu preciso ir! Estão me esperando no... Ah, na... Ops! –recuou, mas desta vez a gravidade não foi tão generosa e ele tropeçou nos degraus e caiu na grama. A velha senhora cobriu os lábios com as mãos.

—Oh! Pobrezinho. Deixe-me ajudá-lo –disse, já ao seu lado. O Doutor estendeu-lhe a mão, mas ela não segurou. Ao invés de puxá-lo para cima, a senhora se agachou na altura dele e contemplou-o com um estranho brilho no olhar.

—Ah... –o Doutor apertou os olhos, achando estar vendo coisas. –Desculpe, mas... Não estava prestes a me ajudar?

—E já estou ajudando! –apressou-se a mulher, em dizer. –Você caiu de mau jeito, rapazinho. Pode ter quebrado alguma coisa, portanto, ficar imobilizado até que a ambulância chegue é sempre o recomendado!

O Doutor franziu o cenho. “Quebrado alguma coisa?”, “Ambulância?”. Ele caíra de uma escadinha boba de três degraus e aterrissara no gramado fofo e molhado, mas aparentemente, aquela mulher tinha enxergado-o saltando de um vulcão cuspindo lava e aterrissando no mar alvoroçado abaixo, a trinta metros de distância. Bem, talvez para a idade dela, uma queda besta poderia significar uma lesão grave... Enquanto ele refletia, a velha não perdeu tempo: estendeu a mão como quem não queria nada... E agarrou a coxa direita do rapaz. O Doutor ficou transtornado.

—Ei! O que está fazendo? –disse, removendo a mão dela dali.

Testando sua temperatura—disse a velha dando uma risada que o deixou realmente nervoso.

—Não, não... Tenho certeza que a temperatura é sempre tirada pela testa ou... –ele nem teve tempo de acabar: a mão da velha estava agora em seu peito. E a velha vinha junto, se insinuando para ele. Desconfortável, ele tentou escapar dela, mas a mulher enfiou a mão dentro de seu casaco, esperando encontrar os botões de sua camisa, porém, o que encontrou ali foi um cabide de madeira. Sua expressão excitada mudou instantaneamente para intrigada. O Doutor, que tinha prendido a respiração até então, deu um sorriso largo e disse:

—Quê foi? Nunca viu um cara carregando um cabide? Eu hein...—e aproveitou a hesitação da mulher para reunir forças, tomar o cabide de suas mãos e correr dela, o mais rápido que conseguiu.

Obviamente a velha ficou para trás. Poderia ser assanhada, mas não havia dúvidas de que suas pernas não eram tão rápidas quanto às dele.

—SALVO PELO CABIDE! –o Doutor riu, beijando o objeto enquanto corria.

Parou somente quando chegou na primeira casa da rua, à esquerda, e retomou sua busca, consultando a tecnologia do cabide.

—Certo, vamos tentar de novo –e digitou outra coisa. Desta vez o resultado foi filtrado e bem mais rápido. –Isso! Apenas uma resposta selecionada. Vejamos: De acordo com o que diz aqui, devo procurar por uma casa branca com uma girafa de cerâmica no jardim.—seguidamente, ele espiou além do cabide e abriu um sorriso gigantesco: Estava de frente para a casa descrita.

Contente, guardou o cabide de volta no casaco, ajeitou a gravata e caminhando de encontro ao portão. Atravessou a frente da casa com facilidade. Diferente do sobrado da rua Bannerman, esta era uma casa baixa, com espaço para apenas um carro na garagem e não tinha quintal dos fundos. Era bem mais compacta. Mesmo assim, tinha espaço para uma girafa de cerâmica, que batia na cintura do rapaz. O Doutor passou por ela e tocou-lhe a cabeça. Então seguiu até a porta de entrada.

Não fez muita cerimônia. Apenas bateu na porta e esperou por um retorno, já com uma expressão simpática no rosto.

Não passou nem dois segundos após sua batida e a porta já fora aberta: era Sally Jackson. Mas não a Sally de sempre... Ela tinha um semblante bem mais jovem e sonhador. Também, tinha mesmo que ter: o Doutor voltara no tempo para poder conversar com ela sobre Luisa; espantoso seria se a mãe da garota estivesse bem mais velha do que no futuro. Neste caso, ele poderia abortar missão e ir reclamar com a TARDIS.

Entrementes, Sally sorriu para ele, como se já se conhecessem, porém, não se conheciam.

—Hã... Sim? –ela instigou.

—Oi Sally, como vai?

A próxima pergunta dela foi previsível.

—Perdão, será que já nos vimos antes?

—Pois é, é meio complicado essa parte da história... Mas não se preocupe: Eu preparei um resumo dos fatos... –tirou um papel do bolso e começou a desdobrá-lo. –... Sabe, é sempre bom deixar tudo às claras para fácil assimilação, e assim evitar eventuais aborrecimentos... -mas antes que pudesse ao menos começar, o telefone tocou e ela olhou para dentro da casa.

—Ai, não... O telefone. Desculpe... Você quer entrar um pouco e esperar na sala? Eu só vou atender e já lhe dou atenção, está bem assim?

—Por mim tudo bem. –o Doutor deu de ombros e acompanhou-a pelo interior da casa. Era bem estreito lá dentro, mas não deixava de ser aconchegante. Logo que entraram, percorreram um corredor apertado onde havia espaço para apenas uma pessoa passar de cada vez, então chegaram à sala de estar, onde uma garotinha estava sentada no sofá, assistindo televisão.

O Doutor imediatamente fitou-a, num misto de surpresa e encanto. A menina de uns seis anos olhou para ele e sorriu de canto de lábios. Sally passou por entre os dois e disse à menina:

—Agora, fique comportada meu amor, nós temos visita –então voltou-se para o Doutor e completou: –Não sei porque ainda digo isso à ela, Luisa é um doce! –e tornou a caminhar para outro aposento, dizendo por fim, antes de desaparecer atrás de uma parede: -Sente-se. Fique a vontade... Eu já volto pra gente conversar. –e deixou os dois a sós: o Doutor e Luisa.

O rapaz logo se dirigiu ao outro sofá, sem tirar os olhos da pequena. Luisa, por outro lado, voltou a assistir tv. Porém, a curiosidade era maior que qualquer outra coisa, e ela se pegou varias vezes olhando para ele. Contudo, seus olhares não se encontravam: quando Luisa o olhava, ele estava assistindo tv e quando ela estava assistindo, era ele que a observava. Todavia, uma coisa não conseguiam esconder: os sorrisos em seus rostos. De repente o desencontro virou uma brincadeira, e eles começaram a fazer aquilo de propósito... Até que Luisa se encheu e, rindo, disse:

—Tá legal! Pode parar com isso...

—Isso o quê? Não estou fazendo nada –ele disse, transparecendo inocência. Luisa achou ele engraçado.

—Você fica me olhando! –ela acusou, rindo.

—Você também está me olhando! –ele rebateu, divertido.

Eles ficaram em silêncio e sorriram um para o outro.

—Tá legal. Eu paro. Vamos todos assistir a televisão –propôs o Doutor. E ambos voltaram-se ao mesmo tempo para o aparelho, onde estava passando um episódio de Scooby-Doo. Porém, Luisa não tardou a olhá-lo de novo.

—Você gosta de Scooby-Doo? –perguntou.

—Gosto. E você? –ele devolveu a pergunta, carismático. 

—Eu gosto também... –ela falou, distraída com o desenho. –Mas eu queria mesmo era brincar de Scooby-Doo.

O Doutor deu risada.

—Ora, você quer brincar? Por que não disse antes? Eu brinco com você... –ele se antecipou para perto dela, sentando-se no mesmo sofá e Luisa desligou a tv, com o olhar novamente fixo no rapaz.

—Brinca mesmo? –ela disse, esperançosa.

—Brinco! Quer ver? –ele ergueu-se de pé e Luisa fez o mesmo, empolgada. -Vamos fazer assim: um de nós é o “monstro” enquanto o outro é um dos personagens principais, que precisa atrair a atenção do monstro –se escondendo. Se um encontrar o outro, então os papeis se invertem, e o monstro vira mocinho e vice-versa, tudo bem?

—É tipo um “esconde-esconde” versão Scooby-Doo—concluiu ela.

O Doutor estalou os dedos.

—Bingo!

—Tá legal. Então vamos brincar... –ela correu para se esconder. –Você é o monstro!—disse, por fim.

O Doutor pôs as mãos nos quadris, achando graça.

—Certo. Então vou incorporar meu personagem primeiro –e começou a andar engraçado, fazendo uma péssima imitação de voz cavernosa. –URRRRÁ! Eu sou um monstro terrível que quer muito mesmo comer uma garotinha linda no jantar!

No lugar onde estava escondida, Luisa riu baixinho, abafando o som com as mãos. Não se passou nem meio minuto e o Doutor a encontrou. Pegou-a de primeiro momento, então ela conseguiu se soltar e saiu correndo pela sala, correndo em zigue-zague pelos sofás, e rindo, rindo muito.

—Ei! –o Doutor chamou-a. –Não vale! Eu achei você, agora é sua vez de ser o monstro.

A garota subiu no sofá mais distante dele e disse, com cara de danada:

—Vai ter que me pegar primeiro! –e tornou a correr.

O Doutor balançou a cabeça e voltou a perseguiu-a. Ambos riram, fazendo algazarra. Várias vezes o rapaz esteve perto de alcançá-la, mas a menina escapava por um triz por lugares estratégicos, por exemplo, por baixo de suas pernas... Até que, enfim, ele a agarrou e deu-lhe o maior abraço de todos. Depois lhe fez uma sessão de cócegas, mas acabou saindo mal, pois a menina era muito boa nessa modalidade e, rapidamente começou a usar o feitiço contra o feiticeiro. Resultado: Logo o Doutor estava no chão, dominado por ela.

Sentada sob ele, a menina ria fazendo-lhe cócegas, enquanto o Senhor do Tempo gargalhava espontaneamente e fingia “estar difícil escapar dela”. Luisa adorou a brincadeira. Raramente as pessoas adultas faziam com que ela se sentisse “no controle da situação”, e também, raramente teriam pique para brincar daquele jeito com ela... A não ser sua mãe, que ainda era bastante jovem.

Mas aquele rapaz sem dúvida era uma figura rara. Luisa estava pensando em pedir para sua mãe se “podiam ficar com ele”, quando Sally retornou à sala e deparou-se com aquela situação: O rapaz domado pela menina.

—Luisa! O que eu falei sobre se comportar? –a mãe bronqueou, tirando Luisa de cima do Doutor. O rapaz se levantou sozinho.

—Foi ele quem começou! –ela riu, apontando pra ele. O Doutor sorriu em retorno, passando a mão na cabeça dela. Sally compreendeu aquilo como uma confirmação de que o rapaz não estava aborrecido.

—Desculpe por isso. –Sally ainda disse, abraçada com a filha. –Bem, você disse que tinha alguma coisa para falar comigo? Sou toda ouvidos.

—Ah, sim! -o Doutor assentiu. Pôs a mão no bolso para apanhar novamente o papel dobrado, mas desta vez não o encontrou. Começou a revirar todos os bolsos a procura do papel e nada. Então ouviu a voz infantil de Luisa mencionar:

—O que é “viagem no tempo”?

O rapaz ergueu a cabeça e deparou-se com ela lendo as anotações em seu papel. Ao perceber o que a menina tinha feito, dona Sally tomou-lhe o papel e tratou de devolvê-lo ao Doutor.

—Luisa! –repreendeu, desta vez se ajoelhando para poder olhar nos olhos da filha. –O que eu falei sobre pegar as coisas dos outros?

—Mas eu não peguei! O papel caiu do bolso dele... Eu só estava devolvendo –ela disse com voz chorosa. Sentindo os corações ficarem apertados, o Doutor agachou-se perto dela também.

—Ei, não chore. Está tudo bem... Eu não estou bravo com você. Viu? –ele tocou o nariz dela com o dedo indicador, como costumava fazer com sua versão adolescente. Passado o receio, a menina deu um sorrisinho para ele. Dona Sally observou-o lidar com sua filha. Tinha alguma coisa diferente no modo como eles interagiam um com o outro, quase como se tivesse rolado uma espécie de química instantânea, entre os dois. 

—Filha, talvez seja melhor você ir brincar no seu quarto, enquanto eu converso com esse rapaz, está bem?

—Está bem, mamãe! –e ela saiu de cena, saltitante.

O Doutor e Sally tornaram a se levantar, então sentaram-se cada um em um sofá (assim como o Doutor e Luisa anteriormente) e Sally iniciou a conversa.

—Estou embasbacada! Definitivamente não sei o que deu nela... Sabe, é que minha filha geralmente é mais tímida e, vendo-a se comportar assim diante de você... –ela riu. -Eu não sei. É estranho! Você parece... Sei lá: Despertar os sentidos dela!

O Doutor tentou não corar com aquele comentário.

—Nem imaginaria –foi a resposta que ele arranjou. Sally balançou a cabeça sorrindo.

—Me desculpe. Veja só como está falha essa minha memória: você bateu na porta, deixei que entrasse, fui atender o telefone, voltei, e ainda não consigo me lembrar de onde conheço você... –falou, e o Doutor apenas sorriu. –Mas com certeza eu o conheço de algum lugar. Você tem um rosto conhecido...

—Na verdade não tenho. É que eu passo essa impressão às pessoas. –ele disse, simplista. –Mas não se esforce mais. De qualquer forma não vai adiantar mesmo, sobretudo porque você só vai me conhecer no futuro.

Sally ficou paralisada por um momento, olhando pra ele.

—Perdão, você disse “no futuro”?

—Sim, mas não nessa casa. Nem neste bairro, na verdade. Estou falando da rua Bannerman. Soletra-se: B-A-N-N-E-R-M-A-N. Quer anotar? Onde o clima é tranqüilo e os vizinhos são um pouco mais sensatos.

Ah, nem me fale!—Sally suspirou. –A senhora Gatollini, então, nos dá nos nervos! Ela mexe com todo mundo que passa na rua... Especialmente com os jovens. Dá pra acreditar? Não se fazem mais vovozinhas como antigamente... –comentou Sally, casualmente. –Você veio subindo a rua? Tenha cuidado com aquela velha, ela é pervertida!

O Doutor desviou os olhos.

Minhas coxas sabem bem disso—disse com seus botões.

—Um dia ainda nos mudaremos daqui –disse Sally, determinada, com um brilho sonhador nos olhos. –Eu vivo dizendo isso ao meu marido, mas nós sabemos que o dinheiro anda curto e que não poderemos realizar isso atualmente... –de repente ela parou de falar e encarou o Senhor do Tempo com uma expressão confusa. –Por que é que eu estou te contando tudo isso?

—Hã... Por que você me considera um bom ouvinte? –tentou ele. Para seu alívio, Sally considerou seu argumento.

—É, pode ser. Enfim, sobre o que você veio falar mesmo?

—Ah, sim –e tornou a dar uma revisada no papel. -Desculpe o mau jeito. É que estava tão ansioso que nem sabia por onde começar, então fiz uma lista de palavras chaves pra conseguir me orientar. Bem, vamos ver: “Futuro”, “Viagem no tempo”, “Exames”, “Vórtice temporal”, “Filha em perigo...”

O quê!? —exclamou Sally, quase saltando do sofá. Logo em seguida, espichou o pescoço e deu uma olhadinha para ver se Luisa não tinha se assustado com seu grito. A menina não veio ver o que tinha acontecido, então, controlando-se, Sally prosseguiu, agora tomando mais cuidado para a voz não sair estridente: –O que você disse sobre minha filha?

—Deixe-me começar pelo começo: Sally Jackson, eu a conheço do futuro. Por isso você não se lembra de mim: pra você nós ainda não nos conhecemos, assim como para sua filha Luisa.

—Como assim? Vocês dois se conhecem?

O Doutor inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos nas coxas.

—No futuro, Sally, eu e sua filha somos amigos. Nós viajamos em minha máquina do tempo... Vivemos dezenas de aventuras; Mas aí as coisas ficaram complicadas. Então eu resolvi vir aqui, lhe fazer uma pergunta de extrema importância e peço que seja realmente sincera quanto à resposta.

Sally pareceu perder o chão por um momento.

—Você está bem? –perguntou o Doutor, gentilmente.

—Sim. –ela assentiu, mas ele sabia que ela estava mentindo. Ninguém com o juízo perfeito poderia ficar “bem” depois de ouvir tudo isso. –Então, você é do futuro... –começou ela devagar, com um olhar cético. –E espera que eu simplesmente acredite nisso? Assim, sem provas concretas?

O Doutor piscou.

—Você não precisa de provas, Sally. Eu sei dos poderes de sua filha. Ela consegue enxergar além do que os olhos podem ver... E, ao que tudo indica, você também.

Sally ficou boquiaberta.

—Como você...?

—“Os olhos são as janelas da alma” –disse o Doutor. –E vocês duas sabem como abrir as janelas.

Sally pôs a mão sob o peito, completamente perplexa. Um silêncio se fez entre eles, até que ela finalmente conseguiu ter o domínio sobre sua voz, e disse em um sussurro:

Quem é você? 

—Eu sou o Doutor –ele anunciou, causando uma espécie de impacto. –E vim ajudar.

—Ajudar? –Sally repetiu, meio zonza com tudo aquilo. –Como assim ajudar? Ajudar no quê?

—Como já disse, eu tenho uma pergunta e preciso que você me dê à resposta. É fundamental que você confie em mim e me diga a verdade, independente do que isso envolva... Lembrando que a segurança de sua filha dependerá disso.

—Do que está falando? –ela perguntou. A voz trêmula. –Quem é você, Doutor? O que quer com a minha garotinha?

O Doutor deixou a urgência transparecer um pouco em sua voz.

—Eu só quero ajudá-la. Acredite: sua filha está mais perdida do que nunca e precisa de mim, Sally. Ela precisa de mim para resgatá-la! Só que eu não posso! Não posso sem essa informação... Só você pode me dar o que eu preciso.

Sally respirou falhadamente.

—Sobre o que quer saber?

—Sobre os poderes de sua filha. O DNA dela para ser exato. Eu trouxe comigo uns exames que ela fez... –tirou-os de dentro do bolso interno do casaco e entregou a papelada à Sally. –Vê? São todos muito precisos e executados com alta-tecnologia... Na verdade, uma tecnologia que não existiria nem nos seus sonhos mais remotos. Contudo, o resultado final é bem simples de compreender: sua filha é uma anomalia. Tem uma combinação de DNA jamais vista em qualquer outro ser já existente, só que existe um porém: ela é humana. Não pertence a uma espécie sucessível a tantas mutações, o que me faz pensar que alguma coisa está errada por aqui.

Sally olhou a última página com os resultados e prendeu a respiração.

—Escute aqui, Doutor, minha filha não é uma anomalia. –disse, com firmeza, mas sua voz foi vacilando conforme ela prosseguiu: –Ela é a minha garotinha! Não vão tratá-la como um experimento científico... Não vou permitir!

Sally, fala pra mim!—o Doutor insistiu, segurando-a pelos ombros. –O que tem no DNA da Luisa? Por que ele é tão diferente? –ele esperou, mas a mulher não respondeu, então o Senhor do Tempo perdeu a paciência: -Você não entende? Vamos! Você precisa me dizer... Sua filha está correndo perigo!

A mulher desviou os olhos. Refletiu por um momento.

—Não acredito em você –disse, balançando a cabeça, em negação. Ela estava confusa; –Pode parar com isso, tá legal? Não vai adiantar... Porque eu não consigo acreditar em nada do que está me dizendo.

O Doutor ficou ansioso e começou a falar com cada vez mais desespero:

Sally, eu sei sobre seus poderes! Quer uma prova maior do que essa? Leia meus pensamentos! Olhe dentro dos meus olhos e veja por si mesma! –propôs, agitado. Sally não se moveu, então ele afundou-se no sofá, esfregando a testa, sentindo a exaustão tomar conta de si. –Arrrr... Que Inferno!—praguejou, mas logo depois se arrependeu. -Sinto muito, Sally. Eu perdi a calma. Fiz até uma lista para conseguir me organizar, mas eu não consigo! Droga, sou hiper-ativo, o que o universo queria!?—reclamou, irritado. Porém, havia um sentimento ainda maior se apropriando de seus corações e ele acabou se entregando completamente a ele. Logo sua raiva dissolveu-se em lágrimas e ele começou a chorar. -Não dá mais... Não consigo me controlar, Sally! Estou ficando sem tempo... Sei que sua filha está por aí, sozinha e com medo... Sei que ela precisa da minha ajuda, mas eu não consigo pensar em nada! Estou... Estou tão cansado. Não consigo mais cuidar dela. Não consigo mais cuidar de ninguém... –desabafou, desconsolado. Sally, no entanto, subitamente decidiu mudar de sofá. Ela se aproximou do Doutor, sentando junto dele e começou a acariciar seu rosto, limpando suas lágrimas. O Doutor ficou bem quieto, enquanto ela o observava.

A princípio, Sally olhou-o superficialmente, então olhou mais além... Olhou dentro de seus olhos. Espiou sua alma. Assimilou informações. Compreendeu o que estava se passando –em detalhes (ela tinha um grau elevado de Visualização), e, por fim, deu-lhe um beijo na testa.

—Ah, querido –ela envolveu-o em um abraço, mas não o tipo de abraço entre conhecidos: era um abraço cheio de ternura e consolo, como só os que uma mãe sabe dar. –Você tem se esforçado tanto... Eu consegui ver isso em seus olhos—confirmou ela, enquanto afagava suas costas. -Mas não está certo... Doutor, escute meu conselho: Você não deve se cobrar desse modo. –ela finalizou o abraço para poder contemplá-lo. –Você é um rapazinho incrível e eu fico muito agradecida por ter cuidado da minha menina, mas você tem que entender que todo mundo tem limitações, -Sally ergueu o queixo do rapaz, fazendo-o olhar para ela. -Até mesmo os Senhores do Tempo—enfatizou. –Você compreende?

 O Doutor assentiu em silêncio.

—Está tudo bem. Eu não vou começar a gritar ou brigar com você por ter levado a minha Luisa para viajar. Na verdade, tenho bastante confiança em mim mesma, e sei que se não fiz nada para impedi-los, no futuro, então é porque isso tudo tinha mesmo que acontecer. –ela sorriu, compreensiva. -É o destino.

O Doutor apertou os olhos, como se sentisse dor.

—Eu errei feio, Sally... Eu sempre cometo o mesmo erro! -soluçou. As lágrimas voltaram a encher seus olhos. Sally se prontificou:

Ei, mocinho, o que eu acabei de te dizer, hum? —ela afagou seu braço, olhando-o significativamente. O Doutor trocou um olhar rápido com ela e suspirou, baixando os ombros. Sally Jackson deu um sorriso ameno, inclinou-se e apanhou um copo d’água com açúcar, que estava sobre a mesinha de centro. –Toma. Beba um pouco. Vai se sentir melhor.

O Doutor bebeu. Sentiu uma melhora instantânea, depois fitou-a com curiosidade por detrás daquele semblante úmido.

—De onde veio esse copo com água?

Sally sorriu, estendendo-lhe também um lenço de papel.

—Nós temos muito disso por aqui... “Copos com água aparecendo em toda parte”. Sobretudo quando alguém está realmente precisando.

O Doutor continuava na mesma.

—Mas... O que isso significa? –perguntou olhando para Sally.

Sally revirou os olhos, com ar de riso.

Significa que tem uma mocinha muito sapeca ouvindo a conversa dos adultos—falou bem alto, como que para sua voz ecoar na casa toda. –Não é, Luisa?

Luisa entrou na sala no mesmo momento, com um sorrisinho travesso no rosto.

Desculpe mamãe—ela pediu, então olhou para o Doutor e deparou-se com seu semblante abatido. Depois tornou a olhar para a mãe, como se pedisse permissão.

—Pode vir, Luisa. Ele só está um pouco triste, mas vai passar logo. –Sally disse, afagando-lhe o braço uma última vez antes de se levantar. A menina então se apoiou no braço do sofá e olhou bem para o Doutor.

—Por que você está triste? –Luisa ainda não sabia usar muito bem seus poderes de Visualizadora naquela época.

O Doutor olhou para ela.

—Porque estou perdido.

—Não está não. Você está na sala da minha casa. –Luisa disse, muito ingênua. O comentário ao menos serviu para fazê-lo sorrir.

 -Não é bem isso que eu quis dizer... Na verdade, estou em uma espécie de “beco sem saída”.

—Ora, então porque você não cava um buraco e arranja uma saída? –sugeriu Luisa, como se aquilo fosse óbvio. –Eu tenho uma pá, se você quiser...

O Doutor e Sally riram juntos do comentário da pequena.

—Ah, pena não ser tão simples... –o Doutor disse. –Queria que pudesse ser assim, aí eu nunca mais teria problemas!

—Hum... –Luisa bateu o dedinho indicador contra o queixo, demonstrando estar pensando em algo. –Espera aqui que eu já volto!  -e tornou a sair correndo e sumir de vista.

Ao ficarem sozinhos de novo, Sally comentou:

—Acho que agora compreendo a ligação entre vocês... Quem poderia imaginar: Um viajante do tempo, vindo do futuro, brincando de esconde-esconde com a minha filhinha de seis anos.

O Doutor sorriu, afetado.

—A gente faz o que pode, né? E eu devo admitir que não resisti a essa oportunidade. Espero não ter lhe dado um susto muito grande...

—O quê? Claro que não! Nem passou pela minha cabeça que poderia haver algo de estranho em uma garotinha de seis anos derrubar um rapaz maior de idade —brincou ela, sendo irônica. A expressão do Doutor suavizou-se um pouco mais.

—Obrigado por ter sido tão gentil comigo, mesmo sem de fato me conhecer.

Sally tocou-lhe o ombro, contemplando-o com admiração.

—Não poderia ter agido diferente: você cuidou da minha Luisa, Doutor. E está lutando para resgatá-la, mais do que nunca... Eu o admiro por sua persistência, determinação e dedicação!

O Doutor sorriu, um pouquinho encabulado. Mas não deixou aquela chance escapar:

Então—recomeçou, em tom ameno. –Será que você se importaria em me ajudar? Preciso muito de respostas. Necessito de uma pista. Um motivo para poder me agarrar e seguir com a busca. Mas eu não consigo sozinho, Sally. Por isso vim recorrer a você. No entanto, não consegui localizá-la no futuro. Aparentemente, há uma espécie de “filtro de percepção” impedindo minha nave de detectar você. Por isso tive que me deslocar até o passado... Foi a única opção que me restou.

Sally prendeu o cabelo.

—Então você acredita que eu tenha as respostas de que precisa, e que, a partir delas, poderá salvar minha filha.

—Isso. –o Doutor confirmou, ansioso. –Será que você poderia me ajudar, agora que sabe de tudo?

Sally sorriu, taciturna. 

—Farei o possível. –disse, para o alívio dele. –Você quer que eu comece falando do DNA ou tem outra coisa em mente?

—Na verdade eu tinha outra coisa em mente –anunciou ele.

—Imaginei que sim –Sally se sentou no sofá de frente para o Doutor. –Você quer saber sobre o pai dela, certo?

—Você tirou as palavras da minha boca. –confessou ele.

—Bem, na verdade, são todos sinônimos: o pai dela, eu, o DNA distinto de nossa filha, os poderes que ela possui... Tudo tem conexão, e a explicação para tudo isso é mais simples do que você pensa.

O Doutor franziu o cenho para ela.

—Simples como?

Sentada, Sally esticou o braço e apanhou um porta-retrato onde havia a foto de uma menina e um menino brincando juntos em uma piscina de plástico. O Doutor olhou fixamente para o objeto: lembrou-se de já ter visto aquele mesmo porta-retrato na casa da rua Bannerman, quando passou um tempo por lá; Mas nunca lhe passou pela cabeça que aquela foto poderia conter qualquer tipo de informação importante. Aparentemente, estava errado.

—Há alguns anos –Sally começou. -Eu e Roberto nos apaixonamos. Então nós os tivemos e tudo ficou perfeito... Ele sempre quis uma menina, mas ama Percy igualmente.

—Percy? –o Doutor perguntou, estranhando. –Espera aí, tem um Percy na história? Por que ninguém nunca me falou dele?

Sally fitou-o com confusão.

—Você não sabia do Percy? Luisa nunca te falou nada do irmão?

—IRMÃO? –o Doutor quase caiu para trás. –Ela tem um irmão?

—Sim. Ele se chama Percy. É o garotinho desta foto. Os dois costumavam brincar juntos. Eles sempre se deram muito bem, até que –Sally parou de falar.

—Até que...? –o Doutor instigou. –Vamos lá, Sally! Não pare agora... Estamos chegando a algum lugar, eu posso sentir!

—Tudo bem –Sally respirou fundo. –Até que um dia, meu menino tinha ido para a escola e... Ele foi atacado por uma Fúria. –houve um momento de silêncio. –Claro que não espero que você conheça esse termo...

—Fúrias são criaturas mitológicas. –disse o Doutor, surpreendendo-a. -Impossível não conhecê-las... Os livros de Mitologia sempre foram os meus preferidos. É uma leitura extremamente atraente e empolgante, cheia de heróis e monstros e muitas aventuras... –e re-avaliou o conceito. -É tipo eu na minha TARDIS—constatou.

Impressionada com o conhecimento dele, Sally prosseguiu:

—Enfim, Percy tinha seis anos quando isso aconteceu. A idade atual de Luisa. Sabe, eles tem um ano de diferença... –comentou, lançando-lhe um sorriso triste. -Desde então, meu marido e eu fomos obrigados a enviá-lo para um acampamento para pessoas especiais.

—Especiais? Em que sentido?

—Bem, Percy sofre de déficit de atenção e ainda por cima tem dislexia... Claro que uma escola normal não serviria para suprir suas necessidades. Mas nós tentamos fazê-lo se sentir incluído... Ele começou a freqüentar a escola com dois anos de idade porque nos foi instruído que a melhor forma de tratar seu transtorno era começar bem cedo a vida escolar e entrar em contato com as outras crianças. Porém, Percy não melhorou. Tão pouco conseguiu controlar a dislexia... Pelo contrário: Todos os anos nós éramos obrigados a trocá-lo de escola por várias razões, mas nunca levamos um susto tão grande quanto na vez da Fúria. –Sally relembrou. -Naquele dia, meu marido e eu conversamos que era melhor enviá-lo para um acampamento para pessoas especiais como ele. Como os mesmo dons e habilidades. E, onde nenhum monstro poderia atacá-lo.

O Doutor estava perplexo.

—Espere aí: Em que lugar déficit de atenção e dislexia poderiam ser considerados dons?

Sally fez um leve suspense.

—No Acampamento Meio-sangue. Para meios sangues.

—Meio sangue? Espere, não me conte! Acho que já ouvi esse termo em algum lugar... –o Doutor esfregou os olhos. –Ai... Tá na ponta da língua... Eu sei que já ouvi isso antes, mas onde foi?

—Vou te dar uma dica –disse Sally. –Nós falamos de Fúrias e monstros; Você sabe que ambos fazem parte da Mitologia... Mas, quando falamos em mitos, há sempre outra coisa que não pode ficar de fora, que são os Deuses Gregos. Eles influenciam em tudo, inclusive nas atitudes dos humanos. E, algumas vezes, acabam se apaixonando e têm filhos, meio humanos e meio deuses.

—AH, CLARO! –ele exclamou. –Um Semi-deus! —mas seu sorriso desapareceu do rosto assim que a verdade lhe invadiu. O Senhor do Tempo ficou olhando para Sally com incredulidade. –Espera aí... Você está me dizendo que teve um caso com um deus mitológico?

—Poseidon –Sally revelou. –O pai de Percy e Luisa.

O Doutor quase disse um palavrão.

—O QUÊ? –exclamou. –Mas... Mas... O pai da Luisa é humano! Ela me falou sobre ele...

—O nome “Roberto” faz parte de uma identidade falsa. –esclareceu Sally. –Na realidade, ele é Poseidon: o Deus dos Mares.

—E se casou com uma mortal? Sem ofensa, Sally. –quis saber o Doutor.

—Sim. –ela desviou os olhos. -Nos envolvemos, Doutor. Nos apaixonamos. Tivemos Percy, depois Luisa... Então ele decidiu que ficaria ao meu lado na Terra, para que pudéssemos ser uma família completa. 

—Mas não deu certo. Pelo menos não a longo prazo. –o Doutor completou. Foi à vez de Sally franzir o cenho. –Eu sei disso porque Luisa me disse que seu pai teve que se afastar. A Luisa do futuro, com 17 anos. Eu a conheci mesmo com 14, mas me afastei depois. Quando voltamos a nos ver, ela me falou que seu pai tinha ido trabalhar longe de casa, e que fazia dois anos que vocês não se viam mais...

Sally tinha a expressão apreensiva, contudo, tinha entendido o motivo daquilo:

—Zeus –falou, deliberadamente. –Ele vive insistindo que meu marido e os outros deuses não devem deixar seus deveres de lado para se envolver com suas famílias humanas... Ele sempre bate nesta tecla, mas Poseidon conseguiu segurar bem as pontas até agora.

—É, mas esse estado não vai durar pra sempre. –advertiu o Doutor. –Em alguma parte do ano de 2013, Zeus vai perder a paciência e proibir a interação física dos deuses com os mortais. Ele vai punir qualquer um que quebrar essa regra, o que possivelmente fez seu marido inventar a desculpa de ter de trabalhar longe, para que Luisa não protestasse. Isso ficou bem claro... Agora, tem uma coisa que eu não consigo entender: Percy é um semi-deus. Por isso os monstros o perseguiam quando criança. Por isso ele foi enviado para um lugar onde pudesse ficar em segurança... Mas e quanto a Luisa? Onde ela se encaixa nisso tudo? Ela também é semi-deusa? Porque, particularmente, eu nunca notei nad... –o Doutor congelou no ato. Lançou um olhar desconfiado ao copo de água. Lembrou-se de todas as vezes em que Luisa surgira com água, para utilizá-la de alguma forma nas aventuras pelo tempo e espaço. De repente, tudo aquilo fez sentido. –Ah! Filha de Poseidon! É por isso que ela tem uma ligação tão grande com a água... ELA É FILHA DO DEUS DO MAR! –exclamou, estupefato com a própria descoberta.

—Agora você está entendendo –disse Sally.

—Mas... Então aquele DNA é parte semi-deus?

—E bruxo também. –Sally acrescentou, fazendo o queixo dele cair. –O que foi? Acha que só Poseidon tem coisas boas a oferecer à genética dela? De onde você acha que veio a incrível capacidade de Visualizar as coisas? Na real, não passa de uma extensão dos poderes perceptivos de uma bruxa. Claro que nem todos conseguem adquirir essa parte dos poderes. Você tem que ser incrivelmente sensível e perceptivo para desenvolver a mente e o olhar, para compreender e enxergar muito além do que os olhos vêem.

—Espera, então... Então... –ele gaguejou. –Você está me dizendo que aquela menininha que estava correndo por aqui... Aquela garota... A minha companheira é semi-deusa, bruxa e ainda por cima, uma bruxa das mais habilidosas, por ter desenvolvido a Visualização?

Sally pensou por um instante.

—É. Acho que é só isso, de uma forma geral. –assentiu. –Isso responde suas perguntas?

—Se responde? Isso anula completamente a existência delas! –falou o rapaz, esparramando-se no sofá. –Não acredito! A minha Luisa... Que mundo gozado esse. E eu nunca desconfiei que ela poderia ser tão poderosa... –foi então que um pensamento lhe deixou nervoso e ele pulou em pé e começou a andar em círculos, desgrenhando os cabelos. –Oh, não... Não, não, não, não, não! –gemeu, inquieto, apertando o rosto e começando a andar de um lado para o outro. Sally se empertigou, preocupada.

—O que foi, Doutor?

—Isso é ainda pior do que eu pensava...

—O quê? O que é tão terrível?

—Sally, eu não posso garantir nada, mas desconfio que nem a própria Luisa tenha total conhecimento dos poderes que tem... A questão é: E se mais alguém tiver essa informação? E se ela estiver em perigo nesse exato instante? Como ela poderá se refugiar no Acampamento se está perdida? –então outra coisa lhe passou pela cabeça. –E por que ela não foi enviada para o acampamento desde nova, como aconteceu com o Percy?

Sally enrolou um pouco para responder.

—Sabe, Luisa sempre teve muito evidente os poderes de bruxa. Desde pequena eu a vejo fazer pequenas mágicas: isso é comum entre as crianças bruxas. –explicou. –Em compensação, ela não desenvolveu muito os poderes de semi-deusa. De uma forma geral, meu marido também não incentivava; Dizia que quanto mais cedo seus poderes se manifestassem, mais cedo ela teria que ser levada para longe de nós, assim como aconteceu com Percy, que desde cedo começou a demonstrar seus dons para controlar a água. Mesmo assim, demorou alguns anos até que os monstros o detectassem. –Sally se pegou então, acariciando a foto das crianças no porta-retrato. –Lembro-me como se fosse ontem: Era ano novo e Luisa, num piscar de olhos, havia feito aparecer água dentro de sua banheira infantil. Era a primeira vez que seus poderes de meio-sangue haviam se manifestado. Percy até festejou, por ter a irmã igual a ele, e nós estávamos muito orgulhosos. Em comemoração, armamos a piscininha e deixamos os dois se divertindo a tarde toda. Foi quando tiramos essa foto...

—Parece um bom programa de fim de ano. –o Doutor comentou.

—Sim. –concordou Sally, nostálgica. –Estava tudo indo bem, até que aconteceu um pequeno incidente...

—Incidente? Que incidente? –questionou o Doutor, de imediato. Ele estava a mil com aquela enxurrada de informações.

—Aquele foi o dia em que Luisa escorregou dentro da piscina. Ela era menor na época, e não conseguiu se levantar sozinha. Quando vimos o que aconteceu, nós corremos para socorrê-la; Luisa ficou submersa por pouco tempo, mas foi o suficiente para deixá-la bastante assustada e com medo de se afogar. –contou Sally. –Sei que parece estranho ouvir um relato desses, mas tecnicamente, ser filho de Poseidon não garante que você tenha sempre controle sobre a água. Se você não souber o que está fazendo, o perigo se mostra igual ao que um humano normal teria que enfrentar na mesma circunstância. Luisa ainda era muito pequena e não tinha controle algum sobre os poderes. Por conta disso, daquele dia em diante, ela passou a criar uma certa ojeriza de piscinas. –esclareceu Sally, novamente fitando o porta-retrato.

De repente, o Doutor teve um flash de clareza.

—A foto... Essa foto!—o Doutor correu até ela. –Sally, me deixa ver o porta-retrato! –e apanhou o objeto, analisando-o com precisão. –É isso!

—O que você descobriu?

—Acabei de me lembrar de uma coisa importante: certa vez, durante uma situação complicada em que nos metemos, Luisa me contou que tinha trauma de piscinas. Ela falou muito esporadicamente, e como estávamos em perigo, não houve tempo para explorar melhor o assunto... Contudo, essa informação parece bater com seu relato, Sally. Afinal, parece-me bem plausível o trauma dela ter sido gerado por causa de um incidente numa piscina... A piscina desta foto, ao que tudo indica. –destacou. –Primeiro Luisa compartilhou comigo seu medo de piscinas... Depois você, Sally, me falou que o irmão dela tinha déficit e dislexia, mas Luisa não tem nenhum dos dois, então isso me fez pensar: Talvez o trauma a tivesse feito repelir os poderes, de modo a não deixá-los tão evidentes quanto poderiam ser. –ele olhou para Sally com significância. –Talvez, afinal de contas, tenha sido isso que a manteve a salvo por tantos anos.

Sally pensou no assunto.

—Isso faz todo o sentido. Mas será que uma menininha seria capaz de repelir seus poderes até a raiz?

Sally...—o Doutor disse em tom de intervenção. –Nós dois sabemos que Luisa não é uma menininha comum. Acho que a pergunta mais apropriada seria: Até quando isso vai durar? Até quando ela vai conseguir conter os poderes? Será que não estão prestes a se manifestar? A questão é essa: Eu preciso encontrá-la antes que outra pessoa faça isso primeiro. Se ela ficar desorientada, ou cair desmaiada em algum lugar, isso pode ser muito perigoso, especialmente com seus poderes estando à flor da pele. Vá por mim: eu sei como é estar fora de si. –ele se sentou ao lado de Sally.

—Está coberto de razão. –Sally concordou. –Mas... O que você prende fazer a respeito?

—Primeiramente vou voltar para o futuro. Depois vou procurar por Melissa, uma amiga nossa, e então, improvisaremos. –disse, e pôs a mão no ombro da mulher. –Não se preocupe Sally, eu vou resgatar sua filha. Mas você terá que me prometer não dizer nada disso a ninguém, especialmente à Luisa, e manter esse nosso segredo. Posso contar com você, senhora Jackson?

—Sim, Doutor. Cumprirei nosso combinado... Mas com o coração na mão –e sorriu, afetada. –Não posso evitar, eu sou mãe.

O Doutor fitou-a com seu olhar compreensivo. Os dois amavam Luisa demais.

—Eu sei. Eu não esperava que fizesse diferente... Só lhe peço para não deixar isso abatê-la de forma a estragar seus dias. Anime-se! Luisa só tem seis anos... Ainda há muitos anos pela frente até os fatos se alinharem e a história que eu lhe conto se tornar atual. Não podemos antecipar as coisas... Combinado?

Sally sorriu, com lágrimas nos olhos.

—Combinado –segurou a mão do Doutor num ato de carinho. –Eu confio em você, Doutor. Completamente. Quando olhei dentro de seus olhos, pude ver o quão bom você é, e sei que jamais irá desistir de procurá-la. –Sally lhe deu um beijo no rosto -E quer saber: Eu sei que você conseguirá encontrá-la. Afinal, aposto como Luisa estará onde você menos esperar...

Encontrei ele!—Luisa chegou correndo na sala, desta vez trazendo um ursinho de pelúcia consigo. Chegou perto do Doutor e colocou o bicho-de-pelúcia em seu colo. –Toma. Eu trouxe ele pra você. Ele sempre me alegra quando eu fico triste... –ela falou, sorridente.

—Ora, se não é o velho Percy... –sorriu o Doutor, ao se deparar com o mesmo ursinho, que certa vez Luisa brigou por ele ter entregado à Teselecta, disfarçada de criança. –Digo, novo Percy. Mais novo do que nunca, na verdade –sorriu. Então percebeu outra coincidência: o ursinho tinha o mesmo nome do irmão mais velho dela, mas Luisa nunca revelara isso ao Doutor. –Sente falta dele, não é? –disse ele à menina.

Luisa confirmou com a cabeça. O semblante esperançoso.

—Você conhece meu irmão? Sabe onde ele está?

—Não, mas já ouvi falar muito dele. –disse o Doutor, observando o jeito dela.

—Ele não vem mais brincar comigo... Faz séculos que não o vejo!

—Faz só um ano, meu amor. –corrigiu dona Sally.

—É, mas parece uma eternidade –ela falou, deitando a cabeça no braço do sofá. O Doutor acariciou sua face.

—Não fique chateada. Eu tenho certeza que seu irmão vive pensando em você.

Ela melhorou o semblante.

—Você acha mesmo?

—É, acho! –confirmou o Doutor, pegando-a no colo. –E sabe o que mais? Você trouxe uma coisinha pra mim e eu também trouxe uma pra você –e revirou os bolsos internos, até que o urso Bart apareceu (o urso que ele ganhou quando bebê, no Shopping no Fim do Universo). –Este é o Bart, ele é meu urso favorito em todo o universo. O que você acha? Será que ele e o Percy podem ser amigos, hein?

—Claro que podem! –Luisa fez o urso Percy encostar o nariz no urso Bart. –Viu? Eles se cumprimentaram... Já são até amigos!

O Doutor e Sally riram.

—Que bom, porque eu vou dá-lo a você –disse o Doutor, estendendo o bichinho para ela pegar. –Pode pegar, ele é seu agora.

Luisa fitou-o meio sem jeito.

—Mas... O Bart é seu urso favorito em todo o universo!

O Doutor sorriu.

—É, eu sei. É exatamente por isso que quero dá-lo a você... Precisa dele mais do que eu.

Dona Sally secou uma lágrima, emocionada. Luisa abriu um sorriso gigante e segurou o ursinho.

—Eu vou cuidar muito bem dele pra você... Pode confiar em mim! –ela garantiu e debruçou-se para lhe dar um abraço.

O Doutor retribuiu o gesto; Um sorriso triste no rosto. 

—Não tenho dúvida disso.

 

*      *      *

Em Hogwarts, Luisa acordou com o coração disparado (ao som de *I’m With You –Avril Lavigne). O rosto estava molhado pelo choro: esteve chorando enquanto dormia. Confusa e tremula, ela sentou-se em sua cama, no dormitório da Corvinal, e inclinou-se para apanhar a bolsinha rosa. Desesperada, começou a revirá-la às pressas, à procura de alguma coisa. Não sossegou, até que finalmente seus dedos tocaram uma superfície macia e peluda. De uma vez só, Luisa puxou para fora o urso Bart e, ao encará-lo, sentiu um enorme aperto no peito e recomeçou a chorar em silêncio. Aquele sonho não fora só um sonho... Era uma lembrança. Uma lembrança recentemente forjada pelo Doutor, mas que parecia estar guardada a anos, adormecida em sua memória. Agora ela sabia quem era aquele rapaz com quem brincara e o porque dele ter dado seu urso a ela. Aquele não era um urso qualquer... Era o BART! O urso de pelúcia do Doutor; E aquilo, fora um aviso de que o Senhor do Tempo estava procurando por ela.


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Notas finais do capítulo

Aí está :3

YEEES Quem chutou Percy Jackson, levou o grande prêmio: Um pacote de docinhos azuis da Sally Jackson kkk

Um fato importante sobre a ida do Doutor ao passado, é que essa é a explicação para a mãe da Luisa não ter ficado uma arara com o Senhor do Tempo levando sua filhinha adolescente pra passear por aí, universo afora. No fundo, ela já o conhecia deste episódio e sabia que quando ele retornasse para suas vidas, a realidade futura que um dia confidenciou a ela não tardaria a se concretizar. Acima de tudo, não havia como ter sido diferente. Sally teve anos para se habituar com essa idéia. Isso, logicamente poderia tê-la deixado ansiosa, desesperada e paranoica, porém, nesta versão ela não é apenas humana. Sally Jackson é uma bruxa das mais habilidosas, que tem poderes de Visualização. Isso, somatizado a sua bondade e paciência, deram a ela toda a força e esperança que precisou ter, ao seguir vivendo dia após dia, pelo caminho mais longo.

Falando de habilidades, não podemos esquecer que a Sally Jackson (de Percy Jackson e os Olimpianos), tinha o dom de enxergar através da chamada Névoa (que é o que impede humanos de verem os monstros). Nesta fic, a Sally logicamente também consegue enxergar essas criaturas. Por que vocês acham que ela saiu de fininho quando a Medusa apareceu? Coincidência??? kkk

Espero que a minha versão da Sally sirva de inspiração para muitas pessoas, e que os faça encarar os imprevistos da vida com outros olhos e pontos de vista. Afinal, não é preciso ser Visualizadora para estabelecer autocontrole, saber ser calmo, sensato e bondoso.

bjs pessoal! Até quinta! ;)



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