Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 17
Versos de Amor


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores, como vão?

Essa a segunda parte dos contos que compõe o período de A Droga do Amor. Espero que estejam com os corações preparados rs. Este conto em particular é uma homenagem ao clássico do Pedro, "A Marca de uma Lágrima".

Boa leitura!



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Magrí estava esparramada no antigo quarto que ocupou na casa dos pais, segurando o telefone com a garganta fechada e as lágrimas querendo explodirem nos seus belos olhos. Crânio calou-se do outro lado da linha, e aquele silêncio a oprimia mais de quando ele contava o que havia omitido na última carta que enviou.

Ela previu aquilo, não previu? A moça sabia que mais cedo ou mais tarde uma separação seria inevitável se ela e Crânio seguissem seus sonhos. Mas não estava preparada, nunca esteve, não depois de tudo o que os dois viveram nos últimos anos.

Quando ele partiu para o Estados Unidos no começo do ano, era como se o rapaz também tivesse levado todos os sonhos do casal, da mesma maneira que um vento forte leva consigo as folhas secas da calçada.

— Magrí? Você ainda está aí?

A jovem tirou o telefone da orelha para respirar fundo numa tentativa patética de esconder que estava a ponto de chorar.

— Estou, estou aqui.

— Pensei que a ligação tinha caído de novo. Olha.. — Crânio suspirou — Eu não dei nenhuma resposta ainda, ok? Por isso eu queria falar com você primeiro antes de fazer qualquer coisa...

— Crânio... — Magrí respirou fundo de novo — Eu não quero ser um empecilho na sua carreira, sabe?

Silêncio. O único barulho vinha do andar de baixo da casa, onde os pais de Magrí terminavam o jantar, e o latido do cachorro da casa ao lado. Não soube dizer quanto tempo durou. Então finalmente Crânio falou numa sentença definitiva:

— Eu não vou te deixar, Magrí. Eu só preciso pensar.

A moça acreditou, é claro. Quando foi que o namorado mentiu para ela? Ele poderia ter outros defeitos, porém o rapaz nunca foi mentiroso, algo que ela sempre dizia que teve muita sorte. Contudo ela não via nenhuma saída naquele dilema sem um grande sacrifício para os dois.

Novamente, o relacionamento estava em cheque, como tantas vezes no passado...

***

Magrí sentiu o sangue escorrer pela perna. Respirou fundo, encarou a escuridão e tentou conter a pulsação. Sem sucesso. Estava sozinha, ninguém a encontraria... Crânio não conseguiria achá-la naquele breu.

“Crânio, meu amor, onde está você?”

***

— Eu te amo, Magrí. Desesperadamente...

— Eu te amo meu querido. Eu sempre te amei..

A menina dos Karas lia e relia o soneto de Shakespeare que precisava destrinchar para um trabalho de Literatura, porém a cada linha do Bardo Magrí só conseguia relembrar aquele beijo e tantos outros que se seguiram...

Ah aquele beijo! Sabia que Crânio também pensava na ocasião, pois o rapazinho também andava um pouco distraído, e não foi mais de uma vez que ela o pegou fitando-a nos corredores da escola e nas aulas que assistiam juntos. Magrí fazia o mesmo.

A biblioteca estava vazia, com exceção dela e da bibliotecária no outro lado do local. Em suma, a menina estava sozinha, sentada em uma das mesas mais afastadas entre as prateleiras. Ou quase, pois sentiu alguém abraçá-la por trás. O coração disparou de surpresa e de algo que já estava se acostumando. Sentiu lábios carinhosos beijaram seu rosto e um sussurro:

— Finalmente te achei...

A garota deveria afastá-lo, dizer que era errado, que deveriam ficar longe um do outro pelo bem dos Karas, pelo bem da amizade, etc. As forças de Magrí, no entanto, andavam vacilantes e eram sempre postas à prova quando Crânio se aproximava daquela forma.

Num impulso irracional, a garota levantou, virando-se de frente para o rapazinho, e jogou os braços em volta do pescoço dele. Crânio apertou o corpinho de Magrí contra o si, encostando-se na prateleira próxima. Sem perder tempo, abaixou o rosto e beijou a garota com um fervor desesperado. As mãos de Magrí que estavam no pescoço do garoto foram para cabelo, puxando-o ainda mais para ela, ocasionando uma onda de prazer em ambos.

Perderam a noção do tempo e teriam continuado agarrados por muito mais tempo se Magrí não tivesse interrompido Crânio de beijá-la de novo.

— Querido, não... Não...

O gênio dos Karas fez uma expressão amuada, mas não contestou, contentando-se em pelo menos continuar abraçado àquela garota maravilhosa. Magrí encostou a cabeça no ombro dele e suspirou de tristeza. Crânio a abraçou com mais força para ela não fugir.

— Eu sei o que você está pensando — sussurrou ele — Mas eu já disse que eu não me arrependo de nada, Magrí. Eu sou que estou errado, mas…

Ele a apertou mais o abraço.

— Eu não me arrependo de te amar, meu bem. Eu só tenho muitos receios da amizade dos Karas..

Crânio segurou o rosto da menina.

— Até quando, minha querida? Até quando vamos ter que nos esconder como dois ladrões desse jeito?

Magrí não tinha respostas. Era um assunto que sempre vinha à tona nessas pequenas escapadas que davam, ocasionando sempre dor nos dois depois. Se fossem descobertos...

Amigos para siempre, you will always bem my friend — cantarolou ela — Amigos para siempre...

Crânio sorriu sem esconder a tristeza e deu-lhe um selinho na boca. Ficaram em silêncio ainda abraçados sentindo a respiração e a pulsação um do outro. A menina cantalorou baixinho como se estivesse ninando um bebê. Após alguns minutos, Magrí deu um beijo rápido no garoto.

— Tenho que terminar meu trabalho, tá? E você não deveria estar fazendo o mesmo, mocinho?

— Ah tem coisas mais legais para se fazer do que contar sílabas de um poema...

Crânio beijou a menina de novo rindo até Magrí dar-lhe um leve tapa no braço. Ele a soltou e puxou a cadeira para que ela se sentasse novamente como o bom cavalheiro que era. O rapaz passou os olhos pelas folhas de fichário em cima da mesa.

— Qual é o soneto que você precisa analisar para a Profª Carolina?

— Ah é o soneto 116. Não é difícil, mas é um trabalho monótono. Prefiro ler Shakespeare do que comparar o texto original da tradução.

Eles riram e Crânio pegou a folha onde Magrí havia copiado o soneto. O garoto deu um sorriso arteiro.

— Sabe como o Calú iria declamar isso aqui?

— Como? — Magrí riu.

O garoto pigarreou e numa imitação quase perfeita do amigo ator, começou:

De almas sinceras a união sincera

Nada há que impeça: amor não é amor

Se quando encontra obstáculos se altera,

Ou se vacila ao mínimo temor.

Ele levantou o olhos rindo para a menina pela imitação. Magrí forçou o riso, mas ouvi-lo dizer aquelas palavras, mesmo que de brincadeira, a deixava comovida ao pensar na situação dos dois. Crânio continuou:

Amor é um marco eterno, dominante,

Que encara a tempestade com bravura;

É astro que norteia a vela errante,

Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora

Seu alfange não poupe a mocidade;

Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma para a eternidade.

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,

Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

O rapazinho franziu testa quando terminou de ler. Fitou a menina com ternura e um pouco de tristeza. Queria dizer tantas coisas a ela, mas pareceu-lhe que o soneto traduziu em palavras o que estava em seu coração.

Não precisavam dizer nada, os pensamentos de ambos estavam no mesmo lugar. Com carinho devolveu a folha e beijou a testa de Magrí, pronto para sair e dizendo que se precisasse dele, era só ligar.

Antes do gênio dos Karas deixar a biblioteca, Magrí desferiu com uma expressão brincalhona, escondendo os olhos lacrimosos:

— Eu vou dizer para o Calú que você anda imitando ele por aí, hein Crânio?

O rapazinho riu e por alguns instantes, nem pareciam que estava com os corações doloridos.

***

Miguel tentava ao máximo se concentrar nas palavras do guia turístico que conduzia a turma de alunos barulhentos e risonhos do Colégio Elite pelas ruas da vila de Paranapiacaba. Era mais um passeio educativo, com o acréscimo para o rapazinho de, além de se preocupar em tomar notas e tirar fotografias para os trabalhos escolares que seriam solicitados pelos professores, ele também deveria ajudar na organização como o responsável presidente do grêmio que era.

Contudo, a última coisa que Miguel pensaria naquele momento era nas suas responsabilidades. Enquanto olhava para as ruas de arquitetura antiquada da cidade, o calçamento de pedra, o sol leve com um pouquinho de frio, o garoto fitava ao longe a figura esbelta de Magrí na fila, ocupada demais para se importar com ele e com seus sentimentos.

Viu também os outros Karas, e o único que parecia estar realmente se divertindo com o passeio era Chumbinho. Calú conversava discretamente com um colega que andava ao seu lado e Crânio andava em silêncio sozinho, e de vez em quando olhava de relance para Magrí à frente dele.

— Paranapiacaba foi na época das colônias um grande polo de distribuição do café por causa das ferrovias próximas — dizia o guia animadamente — As ferrovias foram construídas para ligar a vila com o porto de Santos aqui perto. Não foram poucos os trabalhadores que morreram durante as obras, e os moradores juram que até hoje conseguem ouvir gritos.

Os alunos sussurram excitados com a informação, e muitos riram contando piadinhas. Alguns menos corajosos, olharam com desconfiança para a velha maria-fumaça estacionada na ferrovia paralela por onde passavam.

Miguel sorriu levemente de forma zombeteira. Não era chegado em lendas de terror e sempre achou tudo uma bobagem. Ele se perguntava, porém, se um dos trabalhadores que morreram talvez só se descuidou enquanto trabalhava, absorto nos próprios pensamentos. Imaginou se esses pensamentos eram preenchidos por causa de uma donzela da vila...

Miguel ficou tão distraído fitando a maria-fumaça, que por alguns instantes, viu a si mesmo morto pendurado entre os cabos de ferros que seguravam o trem... Piscou assustado e balançou a cabeça.

“Você vai me enlouquecer desse jeito, Magrí”.

***

Calú estava tentando ao máximo aproveitar o passeio, escondendo bem suas inquietações como o excelente ator que era. Percebeu que uma menina que andava na fila ao lado da dele sorria timidamente para o rapazinho. Um pouco sem jeito, mais por educação do que por vontade, Calú sorriu de volta para ela, o que a deixou ruborizada.

O ator dos Karas queria mesmo era que a garota ao lado fosse Magrí. Queria que fosse ela que o estivesse convidando para se aproximar, segurar a mão dela e passearam juntos por aquele lugar cheio de histórias, praticamente parado num tempo distante.

Balançou a cabeça tristemente. Ah amor! O amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente, é um contentamento descontente, é dor que desatina a doer, pensou ele. Calú concordava com Luís Camões que dizia mais ainda sobre amor: que é querer estar preso por vontade, é servir a quem vence o vencedor, é ter com quem nos mata, lealdade.

Seria mesmo amor o que sentia por Magrí? Por quanto tempo sentir-se-ia daquele jeito? Talvez fosse melhor para si mesmo e para o bem amizade dos Karas esquecer a menina, seguir em frente, procurar outro amor.

Uma determinação surgiu no coração do belo rapazinho, mesmo com a dor que sentia ao pensar em desistir de Magrí.

A menina ao lado sorriu pela segunda vez. Calú sorriu de volta abertamente, dolorosamente.

Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

***

Crânio olhava para a mobília do antigo casarão, que adentrou para visitação com sua turma, com um interesse preguiçoso. Como era um bom aluno, estava anotando tudo de importante que o guia falava a respeito do local, porém sua mente prodigiosa vagava sem rumo nos mesmos pensamentos, chegando sempre a garota que andava no pequeno jardim do casarão.

O que faria naquela situação com Magrí? O que eram os dois naquele momento? Amigos? Namorados? Não conseguia responder aquelas perguntas sem sentir-se mais confuso. Naquela altura das coisas, quando finalmente confessou a si mesmo e a garota que a amava, seria impossível manter somente a amizade. Mas se não desse certo? A amizade sobreviveria?

Crânio suspirou fitando a janela do casarão que dava a vista para toda a vila. Era de fato um lugar muito bonito e peculiar, entre o mórbido e o romântico. Pelo canto do olho, viu que Magrí andava devagar pelas pequenas alamedas ao lado de uma amiga. Por alguns segundos ela parou e levantou os olhos para onde o rapazinho estava. Ela sorriu e prosseguiu seu caminho. Um sorriso bobo brotou no rosto de Crânio.

O garoto saiu de perto da janela e deu de cara com Miguel. Os dois deram um cumprimento silencioso com um aceno de cabeça. A sala antiga onde se encontravam estava mais vazia, pois os alunos prosseguiram para o andar de cima. Os dois Karas ficaram em silêncio por alguns instantes, observando a mobília e os quadros que retratavam antiga família que habitou a casa.

— Interessante que as famílias inglesas que vieram para cá conseguiram se adaptar ao clima de São Paulo — Miguel comentou com o amigo.

Crânio acenou. Era mesmo um garoto esperto. Percebeu que Miguel arranjou uma desculpa para conversar com ele. Não o culpava por isso, pois sentia falta da amizade do líder dos Karas.

— Ah sim, aqui é um clima diferente por causa da elevação. É mais frio e chove quase todos os dias. Para os ingleses não foi tão difícil.

— Você ouvi o guia contando a história dessa casa? — Miguel indagou — Diz os moradores que escutam muito barulho durante à noite, e eles acreditam que sejam fantasmas.

Miguel segurava o riso.

— Eu tentei não rir da cara dos outros alunos mais novos quando o guia disse isso — Crânio sussurrou entre risos — A cara do Chumbinho foi impagável!

Os dois riram ao lembrar-se do menor dos Karas, que de fato ficou muito impressionado com toda a história, mas tentou esconder sem muito sucesso.

Conversaram com tanta facilidade sobre a vila, que nem pareciam que tinham brigado feio há poucas semanas antes e que não estavam se falando como antigamente. Os três Karas mais velhos estavam se evitando até de forma inconsciente, e quando eram obrigados a conversarem durante as aulas que assistiam juntos, era de uma formalidade incomum e forçada. Aquela era a primeira vez que Miguel e Crânio conversavam como velhos amigos.

— Como anda as coisas no Grêmio?

— Ah vai bem, muitos assuntos para resolver... E você? Preparando-se para o próximo inter escolas de Xadrez, eu suponho.

— Sim, voltei a treinar semana passada.

Silêncio. Havia uma coisa que Miguel queria perguntar que queimava sua língua. Temia a resposta, temia a reação de Crânio, temia tudo. Não, não podia trazer esse assunto tão recente. Contudo a pergunta pairava na cabeça do líder dos Karas como um mantra. Ele sempre suspeitou, mas achava que era coisa da sua cabeça.

“O que está acontecendo entre você e Magrí, Crânio?”

***

— A Dama da Lira é uma das histórias mais famosas de Paranapiacaba — dizia o guia enquanto adentrava o antigo salão de festa da vila, o Clube Lira Serrano — Diz a lenda que uma bela senhora durante a noite aparece dançando sozinha no salão próxima de um quadro, também de uma distinta senhora, que desaparecia. Quando a dama sumia, o quadro voltava ao normal.

Magrí olhou com curiosidade o quadro pendurado. A dama retratada era de uma beleza nobre, com belos traços bem marcados e um elegante vestido de festa do século XIX. Por que aquela senhora dançava sozinha? Magrí não era chegada em acreditar em lendas de fantasmas, mas havia algo de extraordinário naquele lugar que estava influenciando suas percepções. Será que a dama esperava pelo seu amante que nunca vinha?

Ela ficou tão absorta nesses pensamentos que por um momento, enquanto fitava o quadro e o salão de festas, viu a si mesma usando aquele vestido e adereços, dançando. O salão não estava silencioso e triste, mas sim iluminado e alegre e a garota não dançava sozinha. A menina girava e ria contente nos braços do seu amante.

O garoto em questão passou perto e discretamente, colocou um papel amassado na mão de Magrí. Ela o encarou rapidamente pelo rabo do olho, mas ele já estava do outro lado do salão, como se nada tivesse acontecido. A menina escondeu o papel no bolso da calça jeans morrendo de curiosidade para ler.

Quando finalmente conseguiu um canto afastado do salão, Magrí abriu e leu o bilhete escrito às pressas com a letra de Crânio:

Do meu outono os desfolhos,

Os astros do teu verão,

A languidez de teus olhos

Inspiram minha canção...

Álvares de Azevedo

Ps: Queria te ver, minha querida.

***

A hora do almoço, antes do passeio e trilha no Parque das Nascentes, último lugar de visitação, foi o tempo dos alunos relaxaram e ficaram mais livres para conhecerem a vila. Excitados os jovens mostravam as fotos que tiravam, trocavam informações anotadas e se perguntavam se as histórias do lugar eram mesmo tudo verdade.

Na entrada do Parque das Nascentes, no meio de várias árvores altas, um casalzinho tentava ter privacidade no meio de tanta balbúrdia. Abraçados e com os rostos colados, os dois se misturavam em meio a folhagem e a neblina que se aproximava, junto com um céu cinzento que prometia chuva.

Quase não havia nenhum som, a não ser os pássaros nos ninhos, e alguns sussurros do casalzinho entre beijos.

— Acho que deveríamos voltar — a menina encostou a cabeça nos ombros no rapaz — Se alguém nos ver…

O garoto acariciou os cabelos dela com uma mão, enquanto a outra apertava a cintura da menina.

— Ninguém vais nos achar aqui. E eu não estou nem um pouco a fim de voltar, Magrí…

Ela levantou o rosto com um belo sorriso e beijaram-se de novo com mais fervor. Seria possível que enjoariam um do outro? Parecia que estavam compensando todo o tempo perdido.

— Mas sabe de uma coisa, Magrí? — Crânio olhou profundamente para os olhos da menina — Eu também detesto essa situação. Sabe, eu queria mesmo levar você para o cinema sem me preocupar em sermos pegos...

— Crânio...

A menina o calou com um pequeno beijo, um beijo dolorido, como se soubessem que não poderiam manter aquela situação por muito tempo.

— Você tem absoluta certeza de que vale o sacrifício? — disse o garoto franzindo a testa — Não pense mal de mim por dizer isso, e eu sei que os Karas estão acima de nós dois. Mas...

Ele suspirou e desviou o olhar. O lábio superior de Magrí tremia

— Mas eu sou um pouco egoísta, Magrí. Eu não sei se eu conseguiria fazer o mesmo que você.

A honestidade do gênio dos Karas foi dolorosa de ser ouvida pela garota.

— Eu jamais me perdoaria se você, Miguel e Calú brigassem para sempre e desfizessem os Karas por minha culpa, Crânio — ela fungou — Não deveríamos nem estar nos vendo.

Crânio frouxou um pouco os braços na cintura de Magrí. Parecia que não importasse o que dissesse, os dois jamais iriam concordar ou chegar a uma decisão sobre seu relacionamento.

— Então porque você escolheu? Por que me disse que me amava? Percebe que era possível termos evitado tudo isso?

Magrí se desvencilhou do abraço do rapazinho mordendo a bochecha, as lágrimas querendo explodirem nos olhos junto com a raiva.

Ela estava com raiva de Crânio por ele ter dito a verdade, por mais irracional que aquilo soasse. Sim, ela poderia ter evitado todo aquele problema se simplesmente não tivesse feito escolha nenhuma e deixado o assunto morrer.

— Você quer me dizer... Que a maior parte da culpa é minha?

Crânio abriu e fechou a boca em surpresa pela minha pergunta. Pela primeira vez, Magrí viu o garoto ficar sem palavras e aturdido. Contudo, o raciocínio dele só poderia concluir que a garota era a maior culpada, não havia para onde correr.

— Magrí, eu não... Quero dizer...

Ela soltou-se dele deixando uma lágrima escorrer pela bochecha. Afastou-se, os pés esmagando as folhas secas ao chão.

— Eu quero ficar sozinha, por favor.

O garoto deu dois passos querendo puxá-la de volta com a expressão de dor, mas Magrí se afastou mais e rapidamente, adentrou ainda mais o parque. Em um minuto Crânio a viu, mas já no próximo ela sumiu entre as folhagens e as árvores.

— Magrí!

***

Já eram quase seis horas da tarde. Havia uma aglomeração dos alunos voltando do passeio nas trilhas do Parque das Nascentes, prontos para irem para casa. Contudo, os monitores estavam preocupados com a falta de dois alunos que não estavam na contagem. Miguel percebeu a movimentação e se aproximou oferecendo ajuda.

— Quem são os alunos faltantes?

O monitor muito aflito disse os nomes completos dos dois alunos. O sangue de Miguel fugiu do rosto e por alguns instantes, ficou atordoado demais para fazer qualquer coisa.

Os monitores não iriam conseguir manter em sigilo por muito tempo que dois alunos sumiram. Não demorou para a que informação vazasse, e os colegas, entre a aflição e excitação por algo por comentar, começassem a bolar todo tipo de teoria:

— Será que o Jack O Estripador pegou eles? Você viu o monitor comentando que prenderam o Jack aqui na vila?

— Que nada, eles caíram na trilha do Curupira!

— Eu acho que foi o Homem do Chapéu quem pegou eles!

— Foi a Dama do Lira quem pegou eles!

— Vocês são muito idiotas! — disse uma aluna — Tenho certeza que eles só estavam se agarrando, daí brigaram, a menina com raiva adentrou a mata e o garoto foi atrás dela e os dois se perderam.

Os alunos ao redor olharam até um pouco admirados para a teoria da menina. Contudo para eles era muito mais legal a teoria do Jack O Estripador.

Calú escutou tudo aquilo com muita preocupação. Sentiu um pouco de ciúmes, é claro, pela possibilidade apontada pela outra aluna, porém sua maior preocupação era encontrar os amigos vivos. Tinha que fazer alguma coisa, mas onde diabos estava Miguel?

Viu Chumbinho o fitando alarmado. Com um sinal de cabeça, o ator dos Karas e o caçula foram discretamente para um canto onde poderiam conversar sem serem vistos.

— Cadê o Miguel, Calú? Crânio e Magrí estão perdidos na trilhas, isso é um trabalho para os Karas!

— Eu sei, Chumbinho! Mas eu também não sei onde Miguel se enfiou. O pior é que já está escurecendo. Quanto mais tarde ficar, mais difícil vai ser para encontrá-los lá dentro.

Os dois garotos fitaram-se sem saberem o que fazer.

***

Crânio desistiu de correr dentro da mata depois que percebeu que já estava todo arranhando. Mais uma vez, a natureza se provava traiçoeira para com ele. Sentiu-se inútil e idiota, pois não sabia para que rumo tomar. Gritou mais uma vez o nome de Magrí, mas em vão.

Parou. Só conseguia ouvir a própria respiração ofegante. O instinto lhe dizia que não estava sozinho, que havia alguém ou alguma coisa muito próximo a ele...

***

Pesadelos poderiam virar realidade. Magrí não tinha mais dúvidas naquilo. A escuridão era opressiva, o silêncio aterrador. Tudo muito parecido com um pesadelo que teve há um ano. A diferença era que Crânio não estava do seu lado.

Ela gritou o nome do garoto de novo na esperança dele encontrá-la. Quando adentrou no matagal do parque, queria apenas ficar sozinha. Entretanto como estava com cabeça movida pela raiva e tristeza, andou sem rumo até perceber que não sabia onde era a saída.

***

Miguel finalmente conseguiu se juntar a Calú e Chumbinho. Não havia jeito, teriam de entrar no parque sem a autorização dos monitores e dos professores. Já havia escurecido.

Verificaram se tinham pilhas nas lanternas e fósforo, e combinaram de usaram o Código-Morse-Coruja para se comunicarem caso acabassem se separando no meio do caminho.

— Gravem a entrada e a saída do parque e vamos evitar as trilhas por enquanto, pois agora elas estão muito escorregadias por causa da chuva de mais cedo — instruiu Miguel — Quando chegarmos, vamos mandar mensagens pelo Código Morse para ver se Crânio ou Magrí respondem.

— Mas como que diabos esses dois conseguiram se perder lá dentro? — Calú revoltava-se.

Miguel e Chumbinho nada disseram, mas os dois sabiam a resposta. Miguel tentava esconder a mágoa e demonstrar apenas preocupação. Chumbinho fingiu que estava muito ocupado com sua lanterna. Calú por sua vez, não sabia bem o que pensar de tudo aquilo.

***

Magrí conseguiu achar as trilhas depois de horas andando a esmo em meio a mata. O coração disparou de alegria, mas ainda assim não era completa, porque não tinha sinal de Crânio. Com cuidado, passou a andar na trilha enlameada.

Parou. Sentiu que tinha alguém atrás dela.

— Crânio?! É você?!

Ficou tão absorta olhando por cima do ombro, que perdeu o equilíbrio e escorregou.

***

Crânio jurou que escutou a voz de Magrí o chamando. Não estava ficando louco, disso tinha certeza, por mais que aquele matagal quisesse fazê-lo de trouxa. A sensação de estar sendo seguido não diminuía enquanto avançava, tentando achar a trilha em meio a escuridão. Era provável que Magrí teria feito o mesmo naquela altura e poderiam finamente se encontrarem.

Desviou um galho que atrapalhava o caminho quando quase tropeçou. Segurou-se no tronco de uma árvore e levantou a cabeça. Havia um vulto à sua frente, parado, encarando-o.

***

Muitas “corujas” piavam no Parque das Nascentes, junto com outras corujas de verdade. As luzes das lanternas iluminavam o caminho dos três Karas. Andaram por quase meia hora sem nenhum sinal dos amigos perdidos.

— O que raios é aquilo?

— O quê, Chumbinho? — indagou Miguel.

— Ali na frente, parado! Parece ser uma mulher...

— Magrí?! É você? — Calú aproximou-se.

— Calú, não se aproxime!

Miguel puxou o amigo de volta. Era impossível ver o rosto da mulher, pois estava de costas, mas o rapazinho tinha certeza de que não era Magrí, pois a mulher usava um vestido longo.

Usava mesmo? Seria mesmo uma visão ou uma alucinação coletiva?

A mulher virou-se de frente e passou a andar devagar para onde os três Karas estavam parados.

***

Crânio correu para a trilha o mais rápido que conseguia, ignorando o coração aos pulos pelo o que tinha visto. As histórias de fantasmas da vila começavam a afetar a sua sanidade e já começava a ver coisas. Ao longe, avistou uma figura no meio da trilha que conhecia muito bem.

— Magrí?!

— Crânio!

Com alívio, o garoto correu para onde Magrí estava caída ao chão.

— O que houve? Você está sangrando!

O rapazinho a ajudou a ficar em pé, passando um braço na cintura e o outro nos ombros da garota. Rapidamente ela narrou o que aconteceu.

— Acho que esse lugar está afetando nossa cabeça — disse o gênio dos Karas — Fantasmas em Paranapiacaba?

— Não acho impossível, Crânio. Eu vi, você viu também!

O garoto continuava não querendo acreditar, por mais que seus sentidos o tivessem traído. Quanto mais pensava naquilo, no entanto, mais Magrí parecia estar mais com a razão do que ele.

Andaram por alguns minutos devagar, mas não avançaram muito como gostariam, já que Crânio praticamente carregava Magrí.

— E lá vamos nós de novo com você me carregando — ela brincou — Parece que está virando rotina.

O rapazinho riu.

— O quê? Você quer que eu te pegue no colo também? De novo?

— Não acharia ruim... Mas você também está machucado e deve estar fraco.

A menina limpou um fiozinho de sangue da bochecha de Crânio com a mão livre, dando um pequeno beijo. Esqueceu a briga de mais cedo, esqueceu que estava zangada com ele. A única coisa que queria era sair dali e ficar a salvo junto com o garoto.

Ouviram corujas piarem alto no meio do matagal. Mas essas corujas piavam em Morse.

***

— Acho que eu ouvi passos lá embaixo das trilhas, Karas — disse Calú, parando de andar.

— Será que são eles ou a equipe de busca da vila?

— Não sabemos, Chumbinho — Miguel franziu a testa — Mas não custa mandar uma mensagem.

O líder dos Karas piou novamente, seguido de Calú e Chumbinho. O silêncio foi curto e logo obtiveram uma resposta. Eram eles! Crânio e Magrí, finalmente!

Os três resolveram adentrar a trilha, porém enquanto caminhavam, o vulto da mulher misteriosa se interpôs no caminho.

***

O casal de Karas tentava encontrar o local de onde as “corujas” tinham piado — que só poderiam ser Miguel, Calú ou Chumbinho. Ou os três juntos procurando por eles.

— O que foi isso?

— O quê, Magrí? Não escutei nada.

— Eu escutei agora de novo. Passos. Estou com a sensação de que estou sendo seguida desde que me perdi.

Crânio se segurou para não revirar os olhos e deixar a menina zangada de novo. Estava contente demais por tê-la encontrado.

Antes mesmo que pudesse responder, o barulho dos passos aumentou e estava vindo até eles. Olharam para trás: era a sombra de um homem que corria em direção aos dois.

Sem pensarem, correram para o lado oposto. Crânio tentou ajudar Magrí com sua perna, mas a garota estava com tanta pressa — talvez pelo medo — que ignorou a dor, passando a correr ao lado de Crânio.

***

— Oi moça, tudo bem com vosmecê?

— Calú, que raios você pensa que está fazendo? — Chumbinho sussurrou entre os dentes.

Miguel dessa vez não segurou o amigo. O garoto corajosamente avançava para o vulto do mulher com um sorriso galanteador. Ela não se mexia e o rosto era quase impossível de enxergar.

O ator dos Karas se aproximou mais e estendeu a mão para a mulher misteriosa. Ela estendeu a mão direita de volta para ele.

Miguel e Chumbinho prenderam a respiração. Seria o charme de Calú a salvação dos três?

Quando ele estava para segurar a mão da mulher, ouviram passos e deram de cara com Crânio e Magrí.

— Dêem o fora daqui! — gritou Magrí — Agora!

Os três Karas viram que havia um homem perseguindo Crânio e Magrí, e sem constestarem, com Miguel arrastando um confuso Calú para longe do fantasma da mulher, os cinco correram de volta para as trilhas. Quando menos esperavam, estavam nos portões de saída do parque.

***

Magrí fitava o papel carimbado com o símbolo do Colégio Elite tentando não gemer de frustração. Tinha certeza que os outros Karas receberam a mesma cartinha amigável de uma suspensão e mais trabalhos voluntários como método disciplinar pela “aventura” no Parque das Nascentes. Mas a menina não se importava, pois estava com o pensamento em outras coisas. Ou melhor dizendo, pessoa.

O soneto de Shakespeare na voz do garoto a perseguia tal como o fantasma do parque. Os beijos, os abraços, os eu te amos, tudo estava gravado na memória da menina dos Karas. Contudo, não poderiam continuar daquela forma e ela deveria seguir com a promessa que fez.

Crânio silencioso ao seu lado num canto afastado da saída do Colégio Elite. O que ele estava pensando, não sabia dizer, mas poderia deduzir que não eram pensamentos felizes.

— Eram fantasmas, Crânio. Você não tem como provar que não.

O garoto não disse nada, sabendo que era uma questão perdida. Fantasmas ou não, aquilo seria um eterno mistério para ele. O que o preocupava mais era o que Magrí estava prestes a dizer:

— Acho melhor para para você e para mim nos afastarmos definitivamente.

Silêncio. Cranio desviou o olhar.

— Então... Nós... — ele pigarreou — Então estamos terminando? É isso que você quer, Magrí?

Ela evitou olhar para o rapazinho.

— Sim, acho melhor ficarmos longe um do outro de uma vez.

Amor não se transforma de hora em hora...

— Eu queria que houvesse uma solução. Porém já está todo mundo desconfiando de nós dois depois de ontem. Mas saiba mesmo longe, eu sempre vou amar você, meu querido...

Crânio acenou e com os olhos marejados, deu um beijo carinhoso nos lábios da menina e depois na testa. Pegou a mochila que estava no chão e saiu, cabisbaixo. Magrí não estava surpresa dele não ter batido de frente com ela, mesmo sabendo que ele achava tudo aquilo injusto.

O amor deles seria sempre um fantasma que assombraria os Karas para sempre?

Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma para a eternidade.

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,

Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.


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Notas finais do capítulo

No próximo conto:



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