Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 16
Mentiras de Amor


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores! Este conto é um prólogo de A Droga do Amor, com a aparição de uma personagem querida e uma cena recontada.

Boa leitura!



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Ali estava ele, um dos seus melhores amigos, mas que estava um pouco distante dela nos últimos meses. “Reencontrá-lo” após uma tarde de treinos dava a garota uma sensação de nostalgia de um tempo em que as coisas eram mais simples. O gravador estava entre eles em cima da mesa onde estavam sentados, como que para registrar aquela reaproximação.

Magrí conhecia Miguel há quase um ano pelas suas contas. Sempre o admirou e o respeitou e isso não diminuiu com o tempo. Porém o garoto era fechado demais para com ela — nunca permitiu que ela fizesse parte mais da vida dele do que uma simples amiga de colégio. Ela queria mesmo essa aproximação? A menina não podia deixar de se perguntar, porém estava contente demais por ele vir falar com ela no seu último treino antes de partir para o EUA.

Tudo bem, o motivo principal era a entrevista que ela faria para Miguel para o jornal do colégio. Normalmente era um dos alunos mais preparados na área jornalística que faria o trabalho, contudo o garoto por alguma razão que Magrí só suspeitava, disponibilizou-se e deu folga para os outros membros do grêmio responsáveis pelo jornal.

— Está muito ansiosa? — perguntou ele timidamente — Pode falar a verdade, eu não liguei o gravador ainda.

Magrí riu.

— Ah um pouco sim... Na verdade, muito nervosa. Não estou conseguindo dormir direito, sendo sincera.

Eles riram e por um momento parecia apenas que eram dois amigos colocando a conversa em dia. O gravador foi ligado para a decepção de Magrí, que esperava que o rapazinho prosseguisse com o diálogo amigável sem formalismos.

A voz de Miguel dando início a entrevista a despertou de seus pensamentos.

— .... Esta entrevista está sendo gravado no dia vinte e cinco de novembro de 1984 na sala do grêmio, sendo direcionada pelo presidente com a melhor atleta do Colégio Elite, conhecida carinhosamente como Magrí. Alguma expectativa para o Mundial? Creio que tenha muitas, já que esta é a sua primeira vez.

A menina pigarreou e se remexeu na cadeira.

— Sim, tenho algumas, principalmente em relação às outras competidoras. Este ano a disputa será muito acirrada, pois há algumas favoritas como a ginasta russa, americana e a ucraniana.

— E você mesmo, Magrí. De acordo com a impressa internacional, pelo seu desempenho nas competições locais, você está cotada como uma das favoritas para o pódio.

— Ah é isso muito legal de saber — ela deu um risinho — As pessoas devem pensar que é falsa modéstia minha não dizer que eu sou a melhor, mas eu estou neste meio há anos e sei bem que qualquer mínimo erro que você cometa nos seus exercícios, isto pode te custar muito caro.

— Isso é verdade. Ano passado, a ginasta soviética Olga Postepanova perdeu a medalha de ouro para Natalia Yurchenko da Rússia por poucos erros cometidos. A ginástica é um dos esportes mais exigentes.

Magrí sorriu de ternura. Era fato que Miguel se preparou bem para fazer aquela entrevista e aquilo deu-lhe um sentimento tão bom...

Ela continuou:

— Eu acompanhei esta final e devo confessar que fiquei com pena da ginasta russa. No entanto, faz parte da competição. A Ginástica Olímpica pode ser uma epopéia grega para nós atletas em algum momento de nossas vidas. Em um dia você está ganhando a competição nacional e no outro, você se machuca durante uma apresentação em um mundial.

— Esperamos que este não seja o seu caso, não é, Magrí? Você intensificou os seus treinos nas últimas semanas, correto?

— Sim, é verdade. Treinei mais do que o meu normal e devo confessar que estou esgotada... Mas terei alguns dias de descanso antes de partir e quero aproveitá-los muito bem.

Miguel passou a brincar com a tampa da caneta que segurava.

— O que pretende fazer nesses três dias?

Magrí recostou-se na cadeira, pois o tronco estava apoiado na mesa, voltando a ficar em posição ereta.

— Bem... Jantar com a minha família, visitar amigas próximas e me despedir de todos os meus amigos. Queria que eles estivessem comigo nos Estados Unidos, o que é impossível.

— Seus amigos são muito importantes para sua vida.

Não foi uma pergunta, porém uma afirmação convicta que não dava brechas para dúvidas. Magrí olhou nos olhos de Miguel tentando descobrir o que estava passando pela cabeça do rapazinho, sem nenhum sucesso. Havia algo ali, ela sabia, alguma coisa que ele queria dizer e ao mesmo tempo esconder dela.

— Meus amigos são minha segunda família — a menina quase sussurrava — E sem o apoio deles, eu não sei se eu teria chegado onde estou hoje. Existe um provérbio bíblico que diz: “Quem tem amigos, encontrou um tesouro”, e digo que eu encontrei o meu... E eu ficaria muito triste se perdê-lo.

Neste momento, Miguel desligou o gravador abruptamente para a surpresa de Magrí, que até deu um pequeno pulo na cadeira. O garoto segurou a mão esquerda dela com dor nas feições. Qualquer fingimento ou pose que ele estava fazendo até aquele momento ruiu por alguns instantes.

— Magrí... Eu tenho que te dizer...

Miguel vacilou e apertou a mão dela. Magrí estava presa na cadeira como se algo a tivesse acorrentado ali.

Ele pareceu voltar a si poucos instantes depois. Afrouxou um pouco o aperto na mão da garota. Ela falou suavemente:

— Miguel, o que você quer me dizer... Eu acho que eu já sei.

Ela não soltou a mão dele e quando se inclinou para mais perto do garoto, ele jurou que Magrí iria beijá-lo nos lábios. Mas a menina hesitou e por fim, depositou um beijo carinhoso na bochecha.

— Eu preciso ir agora...

Magrí pegou a bolsa pendurada na cadeira. Fitou Miguel uma última vez antes de fechar a porta atrás de si e o que viu no rosto dele não sabia decifrar.

Era sempre assim. Quando ela achava que o compreendia, Miguel recuava duas casas e se escondia mais ainda. Por que não o beijou de verdade se era o que pretendia fazer? Por que a hesitação?

Encostada à porta, Magrí abraçou-se e deixou algumas lágrimas caírem. Algo mudou dentro dela, incluindo seus sentimentos. Contudo a incerteza de não saber o que aconteceu a deixava à deriva de si mesma e numa terrível angústia.

***

Era uma manhã fria em Nova York quando Magrí adentrou o ginásio para o primeiro treino. Não era um treino completo, mas pelo menos manteria a forma e as sequências de exercícios que executaria frescas na memória. Haviam outras delegações presentes, incluindo os anfitriões.

A menina realmente sentiu um embrulho no estômago quando viu a ginasta americana executando alguns exercícios de aquecimento — a garota era muito boa, principalmente quando ela saltava, pois parecia que ela tinha o peso de uma pena.

Magrí discretamente continuou observando a ginasta americana por alguns minutos. Mais uma vez sentiu-se insegura e a pressão sobre seus ombros. Profª. Iolanda por mais que tentasse acalmá-la durante o voô, não teve muito sucesso.

De volta para o hotel, nada distraía a garota. Tentou ler algum livro que trouxera, porém seus pensamentos se voltavam para a competição, para o Brasil, para os seus queridos Karas... Como sentia saudades deles! Lá no fundo do seu coração, contudo, Magrí daria qualquer coisa para ter Crânio perto dela naqueles dias, porque o garoto sabia distraí-la.

Imaginou o que ele diria se a visse naquele momento. Talvez ele iria rir dela primeiro dizendo que ela estava sendo boba, que ela deveria parar de se comparar com as outras atletas (como se fosse fácil). Talvez também o garoto a abraçaria bem apertado, dizendo que tinha orgulho dela, não importasse o resultado...

Magrí suspirou de olhos baixos. A dor no peito voltou, a mesma dor que a acompanhava desde quando partiu. O que faria com seus sentimentos? O que eram eles de verdade? Por que era sempre Crânio que vinha primeiro às suas lembranças? E Miguel, ela também não o amava? E Calú?

A resposta estava bem diante dela, é claro. Magrí por sua vez não queria admitir nada.

Trocou-se de roupa rapidamente e desceu para jantar no restaurante do hotel. Para o seu desapontamento, o restaurante estava muito cheio naquele horário e todas as mesas já estavam ocupadas — a maioria pelas delegações.

Magrí estava quase dando a meia volta para pedir o jantar do próprio quarto, quando sentiu uma mão segurar o seu ombro. Virou-se com surpresa:

— Hi! Do you need a table? You can sit with me.

Era a ginasta americana que a menina tinha visto no ginásio mais cedo. Vendo-a de perto, a menina tinha a mesma altura do que ela, e até mesmo a cor e o comprimento dos cabelos eram parecidos. A moça sorria para Magrí e ela não pode deixar de sentir-se feliz pela gentileza.

— É claro, muito obrigada. É muita bondade sua, Miss...?

— Peggy MacDemortt.

Magrí apresentou-se para a menina, mas as duas foram interrompidas com a chegada do que parecia ser o segurança de Peggy MacDemortt.

— Peggy, my darling, why don’t you have dinner when your room? Your father said that…

Peggy suspirou, virando-se para o segurança.

— Uncle Sherm, everything is fine. Besides, I was bored in my room and I was just inventing a friend to make me company. It’s ok.

Magrí riu da expressão do segurança, pois estava claro que Peggy não iria ceder. A menina se perguntava o porquê daquela garota precisar de um guarda-costas. Ele por sua vez disse algo rápido para Peggy e saiu, porém não deixou o restaurante, ficando em pé próximo da mesa que a ginasta americana conduziu Magrí para sentar-se com ela.

As duas fizeram seus pedidos. A menina dos Karas não escondia sua curiosidade em relação a nova conhecida.

— Sorry for that. Uncle Sherm is my father closest friend and mine too, but he worries too much sometimes. Desculpe por aquilo. Tio Sherm é o amigo mais próximo do meu pai e meu também, mas às vezes ele se preocupa demais.

Antes de responder, Magrí não pode deixar de observar que todos os olhares do restaurante viravam-se constantemente para a mesa onde as duas meninas estavam.

Peggy não parecia se importar, contudo Magrí sentiu-se um pouco desconfortável. A americana também não lhe parecia desconhecida, de onde a tinha visto? A menina não conseguia se recordar.

— Tudo bem, Peggy. Mas... — ela fitou a nova conhecida — Mas porque está todo mundo olhando para nós?

Peggy corou delicadamente brincando com o guardanapo no colo. Brincou:

— Ah well... It’s not everyday you can have dinner with the US President’s daughter. Ah bem… Não é todos os dia que você pode jantar com filha do presidente dos Estados Unidos da América.

***

A companhia de Peggy nos próximos dias transformou a viagem, que até então era estressante e entediante em alguns momentos, em algo divertido e proveitoso para Magrí. Mesmo com os horários livres restritos até o começo do Mundial, as duas não se desgrudavam.

Peggy conhecia Nova York com a palma da mão e sempre que podiam, a menina levava a nova amiga para um passeio pela cidade, que na maioria das vezes terminavam com as duas trazendo enormes sacolas de compras nas mãos.

Magrí em poucos dias se acostumou com a presença constante dos seguranças de Peggy e todo o cuidado extremo em volta da garota. Onde elas iam, eles sempre estavam atrás seguindo-as discretamente. Se eles soubessem que com a presença de Magrí, a filha do presidente americano estava mais do que segura...

Além disso, Peggy era um garota peculiar, porém o mais normal que uma menina da idade de Magrí podia ser.

Era bem falante, adorava contar histórias de quando era criança e sempre fazia a nova amiga rir, o que quebrou por completo o gelo entre as duas. Quem as visse, acharia que ambas eram amigas de anos e não de poucos dias.

Magrí e Peggy estavam largadas no tapete da suíte presidencial, a primeira pintando as unhas e a segunda comendo salgadinhos.

— Meu pai sempre trabalhou com política. Eu sabia que ele exercia bem seu trabalho, mas nem eu e nem mamãe sonhamos que um dia ele ganharia as eleições presidenciais. Foi uma surpresa muito agradável, mas nossas vidas mudaram muito. Eu sempre morei em Nova York a vida inteira e a mudança para Washington foi chocante. Precisei deixar amigos, mudar de escola... Ainda é tudo muito esquisito para mim.

Peggy suspirou e Magrí sorriu de forma solidária. Mesmo com todo o luxo e conforto, a filha do presidente americano não escondia que sentia-se só. Comparando os problemas dela com os de Magrí, eram de certa forma até banais, problemas típicos de uma adolescente quase normal...

— Mas chega de falar mim — Peggy riu — Quero saber mais de você, Magrí. Conta, você tem um namorado, right?

Magrí borrou o esmalte que passava nas unhas e xingou mentalmente por ser desastrada. Peggy riu mais ainda quando a amiga a encarou. Magrí não sabia o que dizer.

— Eu? Err... Bem...

— C’mon, Magrí! Você é uma garota bonita, deve deixar todos os meninos apaixonados. Tenho certeza que tem um garoto na sua escola que você gosta e vice-versa. Eu não sou cega, já peguei você distraída com carinha de apaixonada quando fomos naquele café e tinha aquele casal trocando alianças...

O que Magrí poderia dizer? Ela nem sabia ao menos direito o que estava sentindo, mas não podia negar que desde o dia que chegou nos Estados Unidos, sonhava constantemente com um dos Karas. A quem mais poderia desabafar um pouco?

— É um pouquinho complicado, Peggy. Mas você tem razão, tem sim alguns garotos que eu gosto muito...

Peggy sentou-se no tapete em animação.

— Humm, mas você só pode estar apaixonada por um deles, certo?

Magrí acenou concordando. Peggy sorriu.

— Como ele é? Conta mais para mim sobre ele.

A menina dos Karas corou, sentindo borboletas no estômago. 

Magrí tentava ao máximo se concentrar no sorvete e não em Crânio ao seu lado, mas não estava tendo muito sucesso. Os dois andavam muito próximos, os braços quase se encostando, o que ocasionava em pequenos choques na menina. Choques esses prazerosos.

Aproveitou que ele estava distraído para olhá-lo de soslaio e ficou ainda mais estarrecida quando percebeu que ele tinha um leve sorriso do lado da boca.

Ah aquele sorriso! O mesmo sorriso que ele dava quando tinha uma idéia brilhante ou solucionava um mistério diante de tantas aventuras que passaram juntos. Aquele sorriso brincalhão e cínico, mas que causava em Magrí uma vontade de esmagar os lábios dele com os delas...

O garoto era bonito ao seu modo. Andava sempre com ar de confiança; gostava que ele estava ficando bem mais alto do que ela, gostava de sentir a força que ela não tinha quando Crânio a abraçava em outras ocasiões, como os olhos dele sempre brilhavam quando falava com ela, como as mãos dele eram macias na cintura dela... Gostava das covinhas no queixo que ele tinha, de como o cabelo dele caía nos olhos quando estava muito concentrado...

Magrí suspirou sentindo já um calor conhecido pelo corpo. Ele não era perfeito, claro. O rapazinho podia ser bem cabeça dura quando metia uma idéia na cabeça, sabia perder a calma e compostura quando estava muito nervoso. O mundo poderia estar desabando nas costas dele, mas por ironia Crânio podia demonstrar uma frieza que muitas vezes irritava a menina — como no caso da droga da obediência. Entretanto agora ela o compreendia melhor. Ele também podia ser desconfiado demais das pessoas, o que não combinava muito com Magrí.

Se a menina compartilhasse seus pensamentos sobre o garoto com algumas de suas companheiras do vôlei, elas iriam chamá-la de boba e diriam simplesmente para agarrá-lo de vez. Magrí sabia bem que não era bem por aí que as coisas funcionavam, mas tinha momentos que sentia-se tentada.

Despistou esses pensamentos e vieram novamente as preocupações que ocupavam sua mente nos últimos dias.

— Eu estou um pouco apreensiva sobre o mundial — Magrí suspirou, enquanto passava a colher no seu sorvete de morango — Sei que todos estão contando comigo para vencer, mas terá tantas competidoras tão boas ou até melhores do que eu...

A menina sentiu os olhos do garoto sobre si. Pelo rabo de olho, viu o carinho estampando no rosto dele. Essa poderia ser uma boa hora de “agarrá-lo”?

“Cala boca, Magrí”.

— Você vai se sair bem e não precisa se comparar com as outras ginastas. E outra coisa — Eles pararam de andar e ficaram de frente um para o outro — Eu pensei nessas coisas quando cheguei na final do torneio de xadrez estadual no ano passado. Mas sabe o que eu fiz?

Magrí balançou a cabeça em negatividade com um leve sorriso. Crânio riu.

— Não pense mal de mim, mas eu disse para mim mesmo que eu era melhor ali, que ninguém iria me vencer e que todos os outros competidores eram uns m***. Resultado? Venci todas as partidas e levei o troféu para casa, para o orgulho da minha mãe.

Magrí gargalhou e revirou os olhos. Aquela expressão típica do garoto de orgulho de si mesmo que ela tão bem conhecia estampou o rosto dele. Crânio tinha muito do que se orgulhar, porque o Xadrez era tão desafiador quanto a ginástica. Ele era mesmo um garoto incrível...

Percebeu que o fitava com admiração e logo seria pega. Por isso desviou o olhar, disfarçando:

— Às veze eu dou razão para o Calú quando ele te chama de metido. Mas não nego que é uma excelente forma de lidar com a pressão.

Os dois continuaram a andar entre risos. Não tinha vontade de ir para casa e Magrí esperava que ele tomasse a iniciativa.

Talvez ela devesse lhe dar sinais que queria um beijo? Crânio estava um pouco tímido, como se estivesse em um debate interno. A garota se perguntou se aquela era a primeira vez que ele chamava uma garota para sair e ela esperava que sim — mesmo ele tendo beijado outras, coisa que ela não esqueceu.

Ele precisava de um estímulo e Magrí corou pensando no que deveria fazer. Pensou nas mulheres nos filmes e no que elas faziam para conquistar o mocinho: sorriam, batiam as cílios, jogavam os cabelos, acariciavam o braço do pretendente. Será que funcionava mesmo?

“Bem... Nunca vou saber se eu não tentar. Só espero que eu não fique ridícula e ele ria de mim”.

Quando o fitou novamente, Crânio corava. Magrí passou a mão nos cabelos, sorriu e piscou várias vezes os olhos.

— Tá tudo bem?

— Tá sim.

— Humm — a menina aproximou-se aumentando o sorriso, ficando mais sedutora — Não me parece. Você me parece nervoso.

Crânio e Magrí estavam muito próximos, os rostos quase colados. Era só ela puxá-lo pela nuca que o beijaria. Contudo, o garoto vacilou e para disfarçar, ele pegou a colher que estava usando para tomar sorvete e enfiou na taça de Magrí.

— Eu estava pensando — riu ele de nervoso — Que o seu sorvete vai derreter e você não terminou ainda.

Magrí estava decepcionada e surpresa pela atitude incomum dele. Mas não conseguiu esconder o riso com a careta que Crânio fez com o gosto do sorvete.

— Urgh, morango! Eca!

— Bem feito! E sorvete de morango é gostoso, bem melhor do que baunilha.

Os dois riram mais ainda e garota percebeu que Crânio andava no ritmo mais lento dela, o que a fez sorrir um pouco. Contudo, estava chateada pelo seu plano não ter dado certo. Talvez se não tivesse falado menos provocações e simplesmente o beijado enquanto estavam perto...

Quando chegaram em frente ao portão da casa de Magrí, Crânio parou diante da garota, jogou a taça de sorvete no lixo e num gesto corajoso, tomou a mão direita dela entre as dele. A menina arfou. Ele a olhou profundamente.

— Magrí, eu só queria te dizer que você é a garota mais bonita que eu conheço. E que eu estou muito feliz de você ter aceitado meu convite.

O garoto sorriu tímido e se aproximou mais dela. Magrí sorria radiante e não sabia nem o que responder, ainda mais quando a outra mão do rapazinho começou a acariciar seu rosto até os lábios.

Fechou os olhos. Ele se aproximou mais, já podia sentir a respiração dele fazendo cócegas na bochecha. Apoiou a testa com a dele...

— Magrí, sua mãe está te chamando!

A voz de Joana assustou os dois, que se separaram em um pulo. A empregada estava no portão. A menina disse que já estava entrando, sentindo-se mais frustrada.

Quando fitou Crânio novamente, ele tinha um sorriso de resignação. Ele a abraçou e lhe deu um beijo rápido na bochecha e foi embora. A garota esperava que tivessem sorte na próxima vez.

Teriam uma próxima vez? Ela mal podia esperar...

Magrí esqueceu-se da unha borrada. Estava com uma expressão distante, sonhadora e não escondeu o sorriso quando falou:

— Ah ele é doce, Peggy...

***

Faltavam dois dias para o início do Mundial. Profª. Iolanda percebeu que a sua melhor atleta estava uma pilha de nervos nos últimos treinos, sendo assim deixou que a garota fosse arrastada por Peggy para uma festa privada no salão do hotel para relaxar. Haviam outras delegações presentes.

Peggy deixou a amiga sozinha por alguns minutos enquanto ia banheiro. Magrí estava em pé próxima de uma das janelas bem distraída. Sentiu que alguém colocou a mão no seu ombro e num rompante, virou-se para ver quem era.

Ela espantou-se. Por alguns segundos achou que tinha visto Calú — mas aquilo era impossível. Entretanto o garoto à sua frente que a brindava com um sorriso poderia competir no quesito beleza facilmente com o ator dos Karas, e ser classificado como deus grego pelas meninas do Colégio Elite.

— Eu não acredito quem eu encontrei aqui! Bom te ver de novo, Magrí. Lembra-se de mim?

Magrí piscou atordoada e fitou com mais atenção o rapaz. Ele estendeu a mão e ela apertou com cordialidade.

É claro! Como pode se esquecer dele tão rapidamente? Era fato que estava um pouco mudado — e põe mudado nisso — mas ele continuava com o sorriso de Adônis que se recordava.

— Diogo, bom ver você por aqui! Não sabia que tinha conseguido vaga para o Mundial também...

Diogo sorriu mostrando dentes brilhantes. Ele era mesmo muito bonito com aquele cabelo loiro que encheu os sonhos de Magrí há pouco mais de dois anos.

Diogo era dois anos mais velho do que ela e estudou no Colégio Elite, sendo parte do time masculino de ginástica até se naturalizar espanhol e se mudar.

— Até eu me surpreendi com o resultado, devo confessar — riu ele — Mas cá estamos juntos novamente. Parece até coisa do destino.

Os dois riram. Magrí se perguntava se um dia Diogo percebeu ou soube que ela chegou a gostar muito dele. Porém já se passou tanto tempo... E tantas coisas aconteceram no meio do caminho.

A garota viu Peggy conversando com outras atletas da delegação americana. A amiga perguntou se estava tudo bem e Magrí acenou dizendo que sim. A expressão da americana era um pouquinho de desconfiança sobre a companhia da amiga brasileira.

Diogo levou Magrí para tomar alguma coisa enquanto colocavam a conversa em dia, que se resumia aos campeonatos de Magrí e a vida nova dele na Espanha. O garoto dominou quase toda a conversa sobre treinos, escola, expectativa do pódio e os amigos novos que fez no novo país, deixando a garota como ouvinte.

Conversaram por mais de um quarto de hora e Magrí sentia os olhos de Peggy do outro lado do salão sobre os dois. Sentiu-se um pouco mal por deixar a amiga de lado daquela forma, mas também não queria se desfazer da companhia de Diogo tão rapidamente. Ficou neste dilema por um tempo, até acenar para Peggy se juntar aos dois.

— Quero te apresentar uma pessoa ilustre — brincou Magrí — E também a ginasta dos Estados Unidos.

Peggy aproximou-se moldada em uma expressão de cautela para onde os dois estavam. Magrí fez as apresentações e não pode deixar de notar um olhar esquisito que Diogo dirigiu a Peggy. Não conseguia definir o que era e aquilo a incomodou por várias horas.

Apesar do clima incomum no começo, a conversa entre os três fluiu muito bem, mas já estava ficando muito tarde.

— Acho melhor voltar para o quarto — disse Peggy — Foi bom te conhecer, Diogo. Você vem Magrí?

Antes da menina responder, Diogo se interpôs:

— Eu estava pensando se vocês duas não queriam fazer um passeio de carro. A cidade está linda agora com as luzes de Natal.

Peggy fitou Magrí. Os olhos da garota diziam para ela não ir. Magrí por sua vez estava genuinamente interessada em ver Nova York à noite. Não havia nenhum perigo, disso ela tinha certeza — Diogo jamais iria machucá-la, o que ela temia que era disso que Peggy estava preocupada.

— Eu aceito — disse ela — Acho que vai ser divertido, Peggy. E vai ser rápido, não é Diogo?

— Ah sim, vai ser rápido. Prometo.

Peggy mordeu o lábio inferior e chamou Magrí para um canto onde Diogo não poderia ouví-las.

— Magrí, não sei se é uma boa idéia. Está tarde e pode começar a nevar. É ele quem vai dirigir?

— Sim, ele já tem carteira... Vamos lá, Peggy. Não é nada demais, mas se você não quiser ir, eu compreendo.

Peggy a contragosto deixou a amiga partir, dizendo que a esperaria e para que ficasse com o seu celular caso precisasse de ajuda. Magrí se comoveu com a preocupação dela, e lhe assegurou que não iria acontecer nada e que logo voltaria.

Aquilo tudo era muito excitante. Era disso que precisava, um pouco de aventura e adrenalina em fazer algo de fato um pouco perigoso!

Diogo ria como uma criança quando abriu a porta para a garota do banco passageiro. Os dois partiram rapidamente adentrando a noite nova iorquina, que era mais bonita do que Magrí havia imaginado.

O garoto parecia conhecer a cidade pela palma da mão, dirigindo e contando a história de alguns lugares históricos da cidade. Em dado momento, segurou a mão de Magrí. A menina ficou estática no banco, mas não recuou.

Ela estava sendo insana? O que ela estava fazendo? Parecia que ela havia bloqueado a sua parte mais racional, deixando-se levar por emoções. Parecia uma coisa de cinema, ela num carro com um garoto bonito levando-a para um passeio romântico por Nova York...

Até o carro morrer no meio da rua.

— O quê?! — gritou Diogo — Vamos, ande!

Nada do que o garoto fazia estava dando resultado, pois o carro continuou parado e já se podia ouvir a buzina dos outros motoristas atrás deles. Para completar o belo quadro de cinema, uma fina camada de neve começou a cair.

Com tudo isso, Magrí voltou a ser ela mesma e à realidade, dando-se conta da loucura de tudo aquilo.

Conteve os batimentos cardíacos para não se desesperar. Diogo saiu do carro e abriu o capô praguejando em espanhol. Magrí também saiu para ver se poderia ajudar, mas não entendia nada de carros, para o azar dos dois.    

Diogo verificava partes do motor sem entender o que aconteceu.

— Não faz sentindo! Estava tudo funcionando quando eu aluguei mais cedo!

O rapazinho estava muito perdido e não escondia o pânico. Chutou o pneu com raiva, o que fez só com que doesse o dedinho.

— Acalme-se, Diogo — disse Magrí — Mas acho que vamos ter que ligar para o guincho.

O garoto estava desolado e claramente não sabia o que fazer. A menina dos Karas perdeu toda a segurança e “glamour” que sentiu quando estava perto dele.

Se fosse um dos seus Karas, eles jamais perderiam a calma diante de uma situação de estresse daquela forma. Ainda mais, um deles — aquele que sempre vinha à sua mente com frequência — já estaria bolando um plano para contornar o problema.

No fundo da mente de Magrí, uma voz conhecida, uma voz que sempre a acompanhava sussurrava:

“Meu pai vivi dizendo para mim, Magrí, verificar se o óleo do carro não está sujo antes de treinar com um dos carros velhos da garagem...”

Um outro sorriso, um sorriso mais tímido seguido de um riso familiar preencheu a lembrança:

“Se o óleo tiver sujo, o carro não vai funcionar direito. Quase deixei ele morrer um dia desses enquanto aprendia...”

Veio de novo o riso. Por alguns instantes, Diogo virou Crânio dizendo que estava tudo bem, que era só chamar o guincho para levar o veículo. Magrí quase sorriu o abraçou. Como em outra ocasião, teria enchido o rosto do rapazinho de pequenos beijos.

Piscou, e era Diogo de novo à sua frente com uma expressão apreensiva.

— Magrí, me desculpe, mas acho que não vamos conseguir sair daqui...

A garota sacou o celular de Peggy da bolsa. Sorriu de forma resignada e triste.

— Tá tudo bem. A brincadeira acabou...

***

—... Daí eu te liguei e estamos aqui. Fim do passeio romântico.

Peggy e Magrí riram no dia seguinte dos acontecimentos narrados pela última. Estavam novamente na suíte presidencial da garota aproveitando o último dia de folga.

Magrí riu e fez piada do que aconteceu com Diogo, tentando ao máximo esconder a visão que teve de Crânio e de como aquilo a afetou profundamente.

Havia um nome para os seus sentimentos, por mais que tivesse medo de dizer.

— How lucky you guys were! Que sorte vocês tiveram! Eu sabia que não era boa idéia, pois seu amigo me pareceu afoito e descuidado logo de cara. Como ele aluga um carro sem verificar se o óleo foi trocado? Que falta de atenção!

Diogo pediu mil desculpas, claro, e prometeu levá-la outra vez, mas Magrí declinou a oferta para o desapontamento dele.

— Ele queria me impressionar. Ele descobriu que eu gostava dele há alguns anos, mas nunca me deu bola. Não sei o que deu nele quando me viu ontem.

— HA! Você cresceu, né...

Magrí estalou a língua e riu.

— Mas eu também percebi que ele gostou muito de você. Não parava de olhar para o seu quadril, Peggy!

Peggy ficou ofendida:

— Hey! He wasn’t looking at my ass!

Peggy jogou o travesseiro na amiga, que riu mais ainda. Quando as duas silenciaram, a americana fitou Magrí profundamente:

— Tell me, Magrí... Você aceitou o convite dele para se pôr a prova, né?

A menina baixou os olhos corando. Peggy era tão observadora e esperta quanto ela. Não havia porque mentir.

— Sim, Peggy. Queria provar a mim mesma que eu não estava apaixonada, que eu poderia sair com outro garoto sem problemas. Porém fracassei no meu teste.

— And... Você admite agora?

Magrí mordeu o lábio e os olhos brilharam. Dizer a verdade a tornava tão mais real, tão mais palpável. Doeria para os outros dois, para os seus queridos dois Karas se soubessem. O que ela poderia fazer? Não havia volta. Balançou a cabeça afirmativamente:

— Sim. Eu estou mesmo apaixonada por Crânio...


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Notas finais do capítulo

No próximo conto: O relacionamento entre Magrí e os três Karas está bem esquisito após os eventos da droga do amor. Ela está melancólica por precisar se afastar deles, principalmente de Crânio, seu amor. Um passeio do Colégio Elite a romântica e assustadora vila de Paranapiacaba pode reaproximá-los ou machucá-los ainda mais.



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