Capítulo 13 – Virando o jogo

Hermione estava totalmente sem fala. Tudo parecia ser irreal. Bom, parecia ser ainda mais irreal do que antes, enquanto ela examinava a possibilidade de se tornar uma Encarnação da Imortalidade. Ela olhou em volta, como se tentasse se assenhorear da realidade.

Ron podia ter sido assassinado.

O sentido de realidade estava indo para cada vez mais longe de Hermione. O frondoso salgueiro sob o qual as duas mulheres estavam parecia completamente fora de lugar em contraste com as graves palavras que a jovem viúva acabara de ouvir.

Ron fora assassinado. O Ron dela fora morto. Por Satã.

— É verdade?

Marlene deu de ombros, mas havia preocupação genuína na voz dela.

— Essa era a suspeita no Purgatório. Satã tem grande quantidade de agentes por lá.

— Mas por que matar meu marido? Ron nunca fez mal a uma mosca em toda sua vida.

— Satã com certeza estava atrás de uma alma para arrastar para o Inferno. Ao menos foi a conclusão a que nós chegamos.

— Nós? Nós quem?

— As outras Encarnações. Nós nos consultamos com frequência. Mas ninguém sabe ao certo.

Hermione ainda tinha dificuldade com tudo aquilo.

— Mas se Ron foi morto, ele não iria para o Inferno, iria? Então o que Satã ganharia por matar Ron?

— Oh, querida - disse Marlene McKinnon. - Ele não estava atrás da alma de seu marido. Era da sua, pelo que entendemos.

— A minha?

— Se você tivesse cometido suicídio, sua alma estaria manchada por um pecado capital. Essa é a garantia de um bilhete sem volta lá para baixo, garota.

Algo no fantástico café da manhã do hotel começou a chafurdar no estômago de Hermione e ela saiu de repente do banco. Foi adiante, caiu de joelhos e, de puro nojo, devolveu um pouco do café. Marlene a ajudou um pouco, mas logo Hermione se recuperou do enjoo.

A primeira pergunta que ela fez foi:

— Como nós fazemos isso?

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No final das contas, tornar-se a Encarnação do Destino foi tremendamente simples. Só foi preciso dar as mãos.

Mas as coisas logo começaram a se complicar. Hermione imediatamente sentiu os dois outros aspectos do Destino em sua mente.

Benvinda, nova irmã, disse uma. Hermione não sabia quem era quem.

Marlene McKinnon olhou para ela.

— Que estranho. Não sinto mais as minhas irmãs.

De repente Hermione sentiu seu corpo mudar, e era como se ela tivesse sido empurrada para a parte de trás do seu próprio corpo. Atropos tinha assumido.

Desculpe por ela, desculpou-se Lachesis. Atropos sempre teve um temperamento um tanto apressado.

Atropos abraçou Marlene com amor e respeito.

— Boa sorte para você na sua nova vida.

Marlene estava embasbacada de tanta emoção. Ela abraçou a mais velha fortemente, lágrimas caindo por suas bochechas.

— Sei que não vou me lembrar, mas acreditem: já estou com saudades.

Elas choraram abraçadas por um tempo, e então foi a vez de Lachesis dar adeus à sua irmã.

Hermione, agora como o mais jovem aspecto da Encarnação do Destino chamada Clotho, assumiu o corpo e pediu:

— Por favor, tome conta da minha amada Rose.

— Vou tomar. Não se preocupe. - Ela sorriu. - Tenho certeza que você será maravilhosa como Destino.

Hermione sentiu lágrimas nos olhos, porque isso era definitivo. Ela não era mais Hermione Granger, e nunca mais seria de novo. Era uma sensação esquisita.

Ela abraçou Marlene McKinnon, e quando olhou para ela, sentiu um choque e tanto. Era como se olhar num espelho: Marlene agora tinha a aparência física de Hermione Weasley née Granger.

— Agora - disse Marlene, enxugando as lágrimas -, é hora de sofrer aquele acidente conveniente que vai apagar minhas memórias.

— O quê?

— Não esquenta, meu anjo. Lachesis já ajeitou tudo.

Hermione sentiu aquele puxão novamente quando foi empurrada de volta para seu próprio corpo. O aspecto de meia-idade do Destino assumiu o corpo e disse:

— Deixem tudo comigo, irmãs.

Ela é tão ardilosa, comentou Atropos, com admiração genuína.

Hermione definitivamente ainda não se acostumara àquela história de dividir o corpo com mais gente. Sempre uma sabe-tudo curiosa, ela observou Marlene e Lachesis encenarem um acidente totalmente bizarro envolvendo a cronometrada queda de um pesado galho de carvalho que terminou caindo precisamente na cabeça de Marlene. Ela perdeu os sentidos imediatamente, e Hermione ficou apreensiva.

Era uma estrada deserta. Podia demorar horas até que alguém a encontrasse.

Atropos tentou acalmar sua nova irmã. Tenha fé em Destino.

Em menos de trinta segundos, dois homens montados em magníficos cavalos do resort apareceram na estradinha. Lachesis já tinha tomado a forma de uma pequena aranha e subiu pelo grande e frondoso carvalho.

Os homens rapidamente localizaram a moça inconsciente no chão.

— Olha lá. O que é aquilo?

— Nossa! Coitada da moça!

Ambos desmontaram, e um deles a examinou, verificando seu pulso.

— Ela está viva!

— Melhor levá-la para o hotel. Eles têm uma enfermeira.

Os cavaleiros levaram a jovem moça, e por olhos aracnídeos Hermione viu a si mesma pela última vez, num adeus silencioso.

É hora de levar a nova irmã para casa, pensou Lachesis, ainda na forma de aranha. Ela usou os fios da teia com grande habilidade.

Preciso aprender a fazer isso, pensou Hermione.

Para sua surpresa, Lachesis respondeu em sua mente, é muito mais fácil do que parece.

Pensamentos compartilhados serão uma nova lição para se acostumar, Hermione percebeu. Nada que preocupe.

A pequenina aranha foi mais e mais para cima, e depois em direções diferentes, direções que Hermione não se lembrava de ter jamais trilhado. Elas estavam claramente saindo do mundo e agora iam para as margens, como Marlene tinha descrito. Ela viu o enorme prédio aparentando uma gigantesca teia de aranha e lembrou-se do que Ron lhe contara sobre a toca de Aragog.

A aranha entrou na teia e agilmente desceu até o centro, aterrissando no corpo humano de Lachesis.

— Finalmente em casa.

Hermione olhou em volta. Ela já conhecia o lugar, de quando ali estivera para suplicar pela vida de Ron. Naquela ocasião, tudo que ela viu foi a teia de fios e a toca de aranha. Agora, porém, ela podia ver que era um lugar aconchegante e muito confortável.

Hermione repreendeu a si mesma. O que ela estava esperando? Moscas mortas embrulhadas em fios sedosos?

— Oh, querida - riu Lachesis. - Pegue o corpo e faça todas as suas perguntas.

Hermione tomou o corpo, ainda envergonhada que seus pensamentos ridículos fossem compartilhados. Mentalmente, Atropos disse, Não tenha medo de fazer nenhuma pergunta, mesmo que pareça tola.

— Eu realmente pensei que poderia haver moscas mortas e essas coisas...

Vejo que você continua pensando naquele filme com uma aranha monstruosa, disse Lachesis. Não, comemos comida normal e fazemos nossas tarefas de casa. Comida normalmente é comigo. Mas nós dividimos as tarefas.

— Eu sei cozinhar... um pouco.

Lachesis cozinha muito bem, garantiu Atropos. Às vezes eu faço um bolo ou pastelão.

— Sou melhor na limpeza, eu confesso - disse Hermione.

Que bom, alguém para a limpeza, festejou Lachesis. Parece que você vai se encaixar bem, minha querida.

— E quanto ao tear? Eu nunca fiz isso antes.

Não é tão difícil, disse Atropos. Marlene deixou uma boa quantidade de fios prontos, então você pode praticar a fiação de novos fios com o fuso e a roca. Mas é seu trabalho colher as fibras no Vácuo.

Hermione empalideceu.

— O Vácuo?

É apenas uma parte do Purgatório, explicou Lachesis. É tarefa exclusiva de Clotho colher as fibras e enrolá-las no báculo. Depois você pode voltar para a Morada, e vamos ajudá-la a fiá-las.

— Não podem me ajudar a coletar?

Não, querida, disse Atropos. Não temos permissão para entrar lá. É o lugar de Clotho.

— Como poderei fazer isso?

Podemos praticar o uso do fuso, disse Lachesis docemente. Vá para a sala da fiação. Lá você encontrará uma roda de fiar antiga. Lembra-se da Bela Adormecida? É bem assim. O Fuso Dourado está bem do lado dela. A roca pode fiar muito bem, mas às vezes a roda acelera a fabricação dos fios.

— Eu não tenho a menor familiaridade com nada disso. - Hermione sentiu a tensão aumentando. E se ela não estivesse à altura do trabalho?

Relaxe, querida, disse Lachesis. Vamos ajudar você. E talvez a Mãe Verde possa ajudá-la no Vácuo. Ela tem permissão de entrar lá.

— Eu não a conheço.

Ela é uma das Encarnações Maiores, explicou Atropos. Todos trabalhamos juntos para que o sistema funcione.

— Então me falem mais sobre o sistema. E como foi que Ron acabou assassinado por Satanás.

Houve um minuto de silêncio mental. Depois Lachesis, sempre delicada, convidou, Por que nós não discutimos isso durante o chá? Está me dando uma fominha.

Hermione sentiu a tensão dobrar.

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O aroma de capim-limão e camomila nunca pareceu tão agradável a Hermione como quando ela sentou na caprichada mesa da Morada do Destino. Era uma referência familiar no meio de um ambiente tão cheio de novidades.

Talvez eu pudesse tomar conta do corpo e explicar a mecânica de tudo, sugeriu Lachesis. Hermione concordou, e a mulher de meia idade veio para a "frente" do corpo. Era ainda algo para se acostumar.

— Você pega rápido - disse Lachesis. - É só uma questão de senso comum, dar privacidade no momento privado, e essas coisas.

Atropos opinou, Os mortais podiam aprender isso, posso sugerir.

Hermione sorriu internamente. A cada minuto ela gostava mais de Atropos. O aspecto mais velho também sentiu isso.

Lachesis explicou:

— Quando você esteve aqui na primeira vez, você aprendeu o básico do nosso Firmamento. Somos cinco Encarnações Maiores, trabalhando sob mas independentemente das duas entidades principais. Nosso trabalho é manter a vida fluindo normalmente no mundo mortal. Somos proibidos de interferir diretamente em vidas individuais, especialmente Destino. Como Destino, nossa função é garantir que o escrito se cumpra, mesmo que a decisão não seja nossa.

Então quem toma as decisões?, indagou Hermione.

— Provavelmente Deus e Satã, depois de consultar assessores e consultores, mas ainda não temos certeza - disse Lachesis. - Não cabe a nós questionar ou mesmo entender os critérios do processo de decisão deles. Só o que eu sei é que esse processo inclui questões de mérito, entre outras. E deixe-me reforçar: nem mesmo os dois têm permissão para interferir diretamente com os mortais.

Hermione estava chocada. Lachesis não lhe deu tempo para formular uma pergunta.

— Essas regras são mais antigas que o tempo. Foi uma aliança feita no amanhecer das eras. Nós, Encarnações, somos imortais mas não perenes. Podemos morrer ou apenas resignar, como Marlene fez. É diferente para Deus e Satã, embora eu francamente tenha minhas dúvidas sobre Satã. Além do mais, não preciso nem dizer que o Príncipe das Trevas está sempre tentando ignorar ou distorcer as regras ancestrais.

Aquele velhaco, pensou Atropos, com desgosto.

Então ele interfere e Deus não?, perguntou Hermione.

— Resumindo, é isso mesmo, mas não é tão simples assim - respondeu Lachesis. - É mais como uma interferência sutil. Como na morte de seu marido, um acidente. Nem sequer foi misterioso. Foi considerada uma morte acidental. Satã sempre é sutil e insidioso. E Deus deixou aquele tipo de espetáculo, tipo abrir o Mar Vermelho, no passado.

— Mas Deus ouve orações, certo?, indagou  Hermione.

Atropos se mexeu, desconfortável, e Lachesis estava reticente.

— Veja, este é um assunto muito delicado devido a crenças religiosas. Não queremos que as pessoas percam sua fé. Estou certa que Deus escuta orações, e diz-se que ele se move de maneiras misteriosas, mas não temos confirmação concreta e irrefutável, só isso. Mesmo nós, Encarnações Maiores, não temos acesso direto a Deus. Os anjos são seus representantes, e é o máximo a que conseguimos chegar.

Então vocês têm acesso a Satã? Vocês descem ou ele aparece para as Encarnações?, indagou a ex-bruxa.

Atropos se arvorou em indignação, bufando. Aquela entidade não tem nenhum respeito por limites, nem o mínimo! Que homem horrível e horroroso!

Lachesis lembrou:

— Ele não é um homem.

Você sabe o que eu quis dizer, falou Atropos. Hermione gostava dela mais e mais a cada minuto. Mas para responder, sim, ele costuma aparecer ocasionalmente.

Ainda não consigo entender por que ele iria querer matar Ron, disse Hermione. Só pela minha alma?

Lachesis disse:

— Satã é depravado, mas não é bobo. Ele pode ter antecipado a manobra de Marlene e matado Ron para evitar que você se tornasse Clotho. Mas são só especulações, é claro.

Por que ele iria querer evitar que eu me tornasse Destino?, Hermione queria saber.

Talvez você descubra um dos grandes esquemas dele, disse Atropos, animada. Tenho certeza de que esse homem tem algum tipo de quadrilha de trapaças e fraudes no Purgatório! Ele tem agentes em tudo quanto é canto!

— Sim, ele tem asseclas em muitos lugares - confirmou Lachesis. - Mas o Purgatório deveria ser território neutro. Como a Suíça.

Mas nem todo mundo que mora na Suíça é suíço, certo?, indagou Atropos. Hermione teve que admitir que o aspecto idoso de Destino tinha razão.

Seria bom me vingar de Satã pelo que ele fez a Ron, pensou Hermione. Mas aquela não tinha sido o motivo pelo qual ela aceitara o cargo e ela sabia.

Lachesis (e Atropos também) podiam ouvir seus pensamentos.

— Ótimo - disse o aspecto maduro de Destino. - Porque o cargo é muito mais do que isso. Marlene estava certa a seu respeito. Você queria algo maior do que si mesma, posso ver isso agora. Bem, não tem muita coisa maior do que o Destino em si.

Nem a Natureza é tão grande quanto o Destino, palpitou Atropos. Mas não deixe ela saber que pensamos assim.

— Bem, Hermione, tem mais alguma coisa que queira saber? Você gostaria de saber meu nome?

A conversa mudou de repente, e Hermione conseguiu relaxar. Porque o nome de Atropos era Mathilda e ela era viúva. Após criar todos os filhos durante a guerra, o casal decidiu passar a melhor idade numa pequena casa em uma cidade do litoral. Então eles foram logrados por um malandro da pior espécie que roubou todo o dinheiro deles. Ficaram sem nada. Os filhos não puderam ajudar, porque também tinham seus próprios filhos. O marido adoeceu e morreu praticamente de pura tristeza. Também arrasada, ela pensou até em suicídio, mas não conseguiu ir adiante por causa dos netos. Contudo, ela tinha perdido o gosto pela vida. Foi quando veio o convite da antiga Atropos, que jamais se casara e queria experimentar a vida dentro de uma grande família, cercada de netos. Mathilda, contudo, foi atraída pela ideia de fazer algo maior com sua vida além de apenas criar filhos. Então elas trocaram de lugar.

Lachesis tinha uma história parecida. Ela tinha sido uma mulher brilhante, dedicada a sua carreira, onde ela era reconhecida e cheia de conquistas ilustres. Contudo, naquela época, uma mulher bem-sucedida era uma que tinha um casamento, uma casa cheia de filhos e uma boa posição na sociedade. E quando ela se decidiu a encontrar um bom marido, ela já era considerada uma solteirona aos 32 anos. Ainda assim, ela encontrou um partido razoável, e logo começaram os preparativos para o casamento. Mas por uma destas estranhas viradas da vida, ela descobriu que seu prometido não tinha a menor intenção de honrar os votos de fidelidade matrimonial. Desiludida, ela estava a ponto de tomar uma atitude drástica quando Destino literalmente bateu à sua porta. E uma nova Lachesis veio para a Morada.

Então vocês não precisaram morrer?, perguntou Hermione.

— Não, não houve necessidade. A pobre da Marlene só teve um azar desgraçado.

É, pode dizer, irritou-se Hermione de repente. Ela tem minha vida agora.

Eu sugiro que nós comecemos o jantar ou descansemos agora, interrompeu Atropos. Amanhã será um dia cheio.

Por quê?, quis saber Hermione.

— Porque amanhã, querida - disse Lachesis, com um sorriso doce extremamente enganador -, você vai entrar no Vácuo.

tbc