Aluga-se um coração escrita por Luna Lovegood


Capítulo 1
Capítulo único: I'm gonna give you my heart


Notas iniciais do capítulo

Bem, eu estava com essa onezinha guardada aqui e pensei, porque não dividi-la com vocês? É algo bem simples, mas feito de coração, espero que gostem...

Eu quero dar essa one de presente à Maih uma leitora muito fofa e especial, que num único comentário, com uma única frase me deu toda uma ideia... Obrigada e aproveite!



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 'Cause you're a sky, 'cause you're a sky full of stars 

I'm gonna give you my heart 

'Cause you're a sky, 'cause you're a sky full of stars 

'Cause you light up the path 

(Sky full of stars - Coldplay) 

 ♥ 

Oliver Queen 

Eu estava absorto.

Meu dia tinha sido uma grande merda, e eu já estava prevendo que quando eu chegasse em casa seria ainda pior. Laurel.  Visualizei a imagem dela de braços cruzados e cara emburrada me esperando em meu apartamento. Ela iria me encher com as usuais críticas, e então quando eu dissesse que estava cansado demais para discutir e que preferia que ela fosse embora ela iria discutir, eventualmente acabaria indo embora reclamando e fazendo beicinho, mas não sem jogar uma indireta sobre como tudo seria mais fácil se ela simplesmente se mudasse para o meu apartamento e parássemos como esse joguinho tolo. A mera ideia de tê-la ali, maculando o único lugar onde eu ainda tinha um pouco de paz me causava arrepios. Eu sequer havia lhe dado a chave, ela mesma a pegara e sempre aparecia nos momentos em que eu não tinha tempo ou a paciência necessária para lidar com ela. E eu tinha tantos problemas para lidar, e todos eles vinham se acumulando, Laurel era apenas mais um deles, o mais irritante sem sombra de dúvidas. Qualquer pessoa de fora diria que era o mais simples de resolver, afinal, eu não a amava mais – eu sequer conseguia me lembrar de uma época em que o fiz. Nossa relação começou já desgastada e apenas piorara com o passar dos anos. Então, por que eu simplesmente não a largava?

Era simples.

Eu deveria fazê-lo logo.

Principalmente agora que havia descoberto algo tão podre dela, que só de pensar me deixava enjoado.

Mas eu já havia terminado com Laurel tantas e tantas vezes no passado, e tudo o que isso me provara era que terminar com ela era exaustivo e que eu passaria os meses seguintes tendo as piores dores de cabeça porque Laurel era uma mulher mimada e que não sabe ouvir um não. Ela me encurralaria em cada canto, apareceria em todo o momento, me ligaria e choraria, apareceria bêbada na porta do meu apartamento e me culparia por todos os seus problemas, e me faria sentir culpado. Eu tentaria ajudá-la e Laurel iria parecer uma pessoal mais tranquila por um tempo, ela iria sorrir e até mesmo ser uma pessoa amável, eu nem iria perceber que todo o showzinho era apenas pura manipulação dela para se aproximar de novo. Ela usaria a minha família também como muleta para se tornar mais presente na minha vida. Se ter Laurel como namorada já era ruim, tê-la como ex-namorada era um prelúdio do próprio inferno.

Então no fim, eu zelava pela minha sanidade mental e acabava deixando ela na minha vida. O sexo era bom, ela não falava muito durante então era fácil ignorar e deixar ser apenas uma reação hormonal e impessoal, no restante eu a evitava ocupando o meu tempo no trabalho na empresa do meu pai ou inventando qualquer outra desculpa. Eu não queria acrescentar mais o tormento de Laurel infernizando minha vida, principalmente agora que ela já estava fodida demais.

Mas não dessa vez.

Ela havia indo longe demais.

Parei de caminhar percebendo que apenas andava sem ter um destino certo. Eu estava numa praça que dava para de frente à um hospital. Mesmo a noite eu conseguia ver que era um lugar bonito, com jardins e flores multicoloridas e árvores grandes e frondosas. As luzes amareladas faziam uma iluminação parcial e não muito forte dando um ar mais tranquilo. Sentei-me em um banco qualquer e inspirei fundo, o barulho da água corrente em algum lugar próximo e o perfume que era uma mistura de aromas florais e grama molhada me passava alguma calma. Só quando olhei para frente e vi o hospital, deduzi que aquele devia ser um lugar para os pacientes, para caminharem um pouco, esquecerem da própria doença e se sentirem melhor. Mas como era noite, não havia mais ninguém ali, me permiti elevar meus olhos para cima e encarar o céu estralado com poucas nuvens.

Como se buscasse respostas para os meus problemas ali.

Fechei meus olhos por um momento e respirei fundo. Eu não era o tipo de pessoa que conversava com Deus, eu sequer dividia meus problemas ou buscava por conselhos com meus amigos próximos, Tommy estava noivo de Sara, a irmã mais nova de Laurel que eu jurava, era tão oposta à irmã que devia ser adotada, eles tinha suas vidas. E minha irmã Thea... eu não poderia falar sobre isso com ela. E agora que eu estava sem saída ele parecia a melhor alternativa.

Mas o que eu deveria perguntar? Eram tantos problemas, tantas dores diferentes que eu não sabia por qual começar. Havia uma maneira certa de conversar com ele? Eu deveria me apresentar antes? Ou ele já me conhecia e sabia o que se passava comigo?

Eu não sabia.

Eu também não me importei, se Deus fosse assim tão poderoso nesse momento ele deveria ler meus pensamentos e saber exatamente do que eu precisava.

Cure meu coração.

Pedi, antes que pudesse pensar, apenas senti.

— Você está sentado no meu banco. – escutei uma voz feminina reclamar num suspiro. Por um momento pensei que Deus estivesse me respondendo, mas então me lembrei que Deus não iria reclamar comigo por sentar no seu banco. Ele tinha outras coisas para reclamar comigo que não envolviam sentar no seu banco.

— Eu não sabia que se podia comprar um banco. – reclamei de volta num mau humor, minha vida já estava uma merda e eu não precisava de alguém acrescentando a posse de um maldito banco nela. Será que não se podia nem ao menos ficar irritado em paz?

— Não, mas quando você se senta nele por muito tempo passa a sentir uma certa possessividade. – a voz me respondeu, sem parecer se incomodar com meu mau humor, muito pelo contrário eu podia sentir um sorriso ali, e  me vi obrigado a espiar a dona da voz que não se intimidou com a minha falta de educação.

Abri meus olhos, só um pouco no princípio.

E imediatamente a imagem despertou algo diferente em mim. Ela obviamente era uma mulher bonita, de pequena estatura, com seus cabelos loiros caindo nos ombros, olhos azuis claros e curvas perfeitas. Mas não foi sua beleza que me chamou atenção. Mas sim o modo como ela sorria, com todo o seu rosto envolvido no processo, havia covinhas em suas bochechas e seus olhos brilhavam parecendo tão alegres que nem o pior mau humor do mundo (o meu, para ser exato) conseguiria tirar isso dela.

Como ela conseguia? Eu nunca me lembrei de sorrir assim tão verdadeiro e sem esforço.

— Você pode se sentar ao meu lado se quiser.  – me vi convidando com uma voz gentil antes que pudesse me deter. Eu não era assim, eu não convidava mulheres desconhecidas para sentarem ao meu lado, mas de alguma forma eu precisava ter mais desse sorriso dela.

— Obrigada! – ela aceitou feliz, sentando-se ao meu lado no banco. Seu braço roçou o meu, mas nenhum dos dois fez qualquer movimento para se afastar deixando o toque se prolongar pelo tempo que bem entendêssemos. Encarei o rosto dela, curioso, esperando que ela falasse mais alguma coisa ou que se afastasse, afinal, para ela eu era um estranho sentado em seu banco.

— Porque escolheu esse banco como o seu? Há tantos outros nessa praça... – algo me impeliu a tentar puxar assunto.

— Mas esse tem a melhor vista. – respondeu sem se abalar.

— Não sei se concordo. – olhei torto para a construção a minha frente – Ambulâncias chegando, pessoas machucadas, outras doentes e famílias desesperadas entrando e saindo de um hospital é um pouco deprimente, não acha?

— Você é uma daquelas pessoas. – havia um tom de julgamento ali que não me agradou.

— Eu não sou. – Eu não sabia a que tipo de pessoas ela se referia, mas pela ligeira torção no lábio dela, eu não queria ser esse tipo de pessoa.

— Você é. -  ela afirmou com tanta certeza que me acuou - Você vê um hospital e pensa em pessoas doentes, e outras morrendo. Pensa em dor e tristeza. Perdas e mortes. Apenas isso.

— E você não?

— Às vezes. – ela desviou o olhar pela primeira vez.  – Mas eu gosto de sentar aqui e pensar na vida. – explicou ainda com o olhar perdido - Um hospital sempre coloca nossos problemas em perspectiva, não? De repente nossas reclamações parecem bobas e pequenas perto de tanta gente com problemas maiores. Há pessoas que entram por aquela porta e nunca mais saem, há famílias desfeitas, amores perdidos... Ah, tanta coisa ruim acontece num hospital. - assenti, um sentimento ruim tomando conta de mim, mas o controlei dessa vez - Que de repente eu me sinto uma pessoa sortuda. – ela suspirou, e então jogou seu cabelo por sobre o ombro e olhou  para mim mais uma vez.  Seu sorriso dessa vez era um pouco mais tímido, mas nem por isso com um efeito menor sobre mim - E você, porque está aqui sentado no meu banco e olhando para o hospital?

— Pensando na vida. – dei de ombros - Colocando meus problemas em perspectiva e percebendo que minhas reclamações parecem bobas e pequenas perto de tanta gente com problemas maiores. – o sorriso tímido se ampliou com minha resposta, me deixando contente por ser capaz de provocar isso nela.

— Deixa eu te contar um segredo, às vezes eu gosto de sentar aqui e observar as pessoas que entram e saem, imaginando algumas histórias felizes. – seu olhar se tornou um pouco mais sonhador - Como aquela garotinha ali com o elefante de pelúcia na mão – ela apontou para a menina de uns cinco anos que parecia chorar segurando o bichinho na mão, e então a mãe da criança a pegou no e apertou forte em seu abraço - A mãe dela esteve doente, muito doente. – ela começou a contar, parecendo tão inspirada que era impossível não me deixar envolver por suas palavras sonhadoras - Ficou meses internada nesse hospital, tão doente que sequer podia pegar sua filha no colo. Ela precisava de um coração novo, essa era a única esperança dela, mas os dias se passaram, semanas e até mesmo meses, mas não havia um coração para ela. – pelo modo como ela falava eu podia quase sentir a angustia daquela história, de uma forma estranha eu até mesmo me identificava com aquela história e seu eminente final infeliz – E não houve por muito tempo, ela aceitou que eventualmente iria morrer, e deixar tudo e todos. A família teve que aceitar também. Pode imaginar?

— É horrível para a família perder alguém que se ama. – não rendi o assunto, mas notei que ela pegou algo nas minhas palavras, mas para a minha sorte não me questionou sobre.

— Mas e o paciente? Todo mundo está perdendo uma pessoa, mas o paciente está perdendo todas. – a encarei compreendendo, eu nunca tinha enxergado daquele modo – Mas vamos voltar a nossa mãe, vamos chamá-la de Lyla - ela indicou – Lyla era uma boa mãe e esposa, mas sempre trabalhou muito e tinha pouco tempo para passar com a sua família. E só quando ela passou por tudo isso que ela percebeu o que realmente valia a pena na vida, ela teve seu marido e sua filha ao seu lado sempre lhe dando forças e amor, e mesmo que ela tenha aceitado que iria perder isso, mesmo que a vida não tenha sido justa, ela sempre sorria e era grata pelo o que pode ter da vida e então um milagre aconteceu. – eu vi os olhos azuis faiscando quando a mulher que carregava a criança meio sonolenta e a passou para o colo de um homem que eu deduzir ser o pai – Ela conseguiu um novo coração e teve uma segunda chance, agora ela só volta ao hospital para um check-up anual. E ela pode carregar sua filha no colo novamente.

— É um belo final. - elogiei - Mas não é verdade.

— Mas pode ser. – insistiu.

— Mas não é. – insisti de volta, notando que as sobrancelhas dela haviam se unido parecendo não gostar nenhum pouco do que eu disse.

— Você não pode saber disso. – reclamou parecendo ao mesmo tempo teimosa e irritada - Então me dê uma história melhor para eles.

— A garotinha está chorando porque está com sono, está tarde, mas a mãe veio visitar um tio distante que está nas últimas, e ela espera receber alguma herança. – falei a primeira coisa que me veio a cabeça - Aí! Porque me bateu? – reclamei surpreso, assim que senti o tapa no meu braço.

— Você não tem um coração?! – ela parecia ofendida.

— Eu tenho, mas não sou um tolo. - recebi um olhar enviesado - ou melhor, sonhador. – tentei consertar não querendo ofendê-la - É linda a fantasia que você criou, mas a vida real as pessoas não são assim, milagres não acontecem e pessoas, em sua maioria são mesquinhas e egoístas. – ela pareceu surpresa, mas aos poucos assentiu como se a compreensão lhe atingisse.

— Você não quer acreditar que coisas boas acontecem e também não acredita que pessoas boas existam, você não confia, acha que todas elas vão, em algum momento, usar você. – Não foi uma pergunta.

— Não todas – Deixe a exceção no ar, mesmo sabendo que o número de pessoas em que eu confiava ficava a cada dia menor. E pelo modo como ela me olhou depois de dizer eu podia jurar que ela conseguia ler a verdade dentro de mim.

 – Algo está errado com o seu coração. Ele foi tão maltratado assim que você perdeu a esperança? A crença em finais felizes e nas pessoas? – eu não esperava por sua pergunta direta e muito menos pela falta de falsidade na voz dela quando falava de sentimentos. Ela parecia os levar muito a sério.

— Eu apenas sei que eles não acontecem. – respondi dando de ombros, fingindo que aquilo não era nada demais. - Merdas acontecem todos os dias, pessoas mentem para você, te usam para benefício próprio e não se importam se isso te machuca ou não, desde que elas consigam o que querem está tudo bem. Essa é a vida real, não um conto de fadas com final feliz. – eu sabia que soava amargo, mas não me importei, eu me sentia assim não ia mais esconder isso para agradar alguém que eu sequer conhecia.

— Não é! – a garota se levantou num impulso e se virou para mim - Eu vou te ajudar, vou te mostrar que isso o que você acredita não é a vida real. Provavelmente é uma faceta da vida, como você disse, merdas acontecem o tempo todo, mas só porque elas acontecem não significa que coisas boas também não possam acontecer. – olhei para ela sem esconder minha incredulidade - Eu vou te ajudar a enxergar isso  – Ela repetiu sorrindo amavelmente.

— Mas eu não preciso de ajuda. – recuei, mesmo que o sorriso dela me fizesse desejar fazer o contrário.

— Não? Você está ferido. – ela se sentou novamente, seu olhar analisando tantas partes de mim, que me faziam sentir nu sob ele.

— Não estou. – eu ri, tentando forçar um clima mais leve entre. Por que eu estava conversando sobre minha perspectiva da vida com uma estranha quando não falava disso com mais ninguém? - Você vê algum machucado? – para a minha surpresa, ela colocou uma das mãos eu meu peito, bem sobre o coração, e eu parei de respirar durante o espaço de tempo que aquele toque durou.

— Só porque o seu exterior parece bem, não significa que por dentro você não está machucado, Oliver. – havia calma em seu tom de voz, preocupação em seus olhos e seu sorriso... Ah, seu sorriso me fazia querer acreditar que coisas boas acontecem, ela era uma coisa boa e ela estava acontecendo agora.

— Como você sabe o meu nome? - percebi atordoado, eu não o havia dito.

— Seu crachá. – ela indicou o crachá do meu trabalho pendendo no bolso da minha camisa, aquilo fez um pouco do ardor da raiva que havia misteriosamente desaparecido voltar. Peguei o objeto segurando as extremidades com as duas mãos e o quebrei ao meio, sentindo uma satisfação agradável ao ouvir o crack— Você não devia ter feito isso. – ela advertiu.

— Não, eu deveria ter feito isso há muito tempo. – respondi, eu estava bem mais leve agora - E agora que você sabe meu nome, parece justo que eu saiba o seu também. –  olhei para ela, curioso para desvendar aquele mistério. Pensando em que tipo de nome ela teria, provavelmente seria um nome doce.

— Meu nome é Felicity.

— Fe-li-ci-ty. – repeti pausadamente, gostando do som de cada sílaba nos meus lábios. Querendo repeti-las sem parar. Eu estava certo. Deliciosamente doce. – Felicity. – disse mais uma vez sem resistir a tentação - É um prazer conhecê-la e eu sinto muito por me sentar no seu banco. – um sorriso me escapou, eu nunca fui um homem de muitos sorrisos, mas ela provocava isso em mim, me fazia querer sorrir mais para ela.

— Você não vai escapar disso sendo encantador, Oliver. - ela apontou para o crachá partido ao meio e jogado ao chão. Mas eu estava ocupado demais gostando do modo como ela falava meu nome para me importar.

— Você me acha encantador?

— Minha primeira impressão de você foi mal-humorado.

— Ouch. – tentei fingir que não levava a sério, mas no fundo eu me importava – Eu serei mais encantador de agora em diante, apenas para mudar isso.

— Encantador o suficiente para conversar? – ela piscou os olhos, tentando-me.

— Você está esperando eu abrir meu coração e despejar a merda toda, não é? – perguntei num suspiro.

— Nada como uma cirurgia de peito aberto para mostrar o verdadeiro problema. – ela comentou como se me abrir não fosse grande coisa, talvez para ela que era puro sorriso não fosse, mas para mim? Para mim era uma cirurgia de peito aberto sem anestesia e sem garantia de que o coração voltaria a bater depois - Podemos tirar um pouco do que está pesando aí dentro. – seu corpo balançou para o meu, a intenção era ser um toque amigável, fazer meu corpo balançar com o dela seguindo o seu ritmo. O movimento fazendo um convite sutil que tentei ignorar. - Vamos começar com o óbvio: seu emprego. – ela lançou sem aceitar um não como resposta.

— Por que você se importa? – Ninguém nunca se importava. Exceto ela. E por isso me vi curioso, querendo conhecer mais daquela garota que tinha um banco só seu, que parecia se importar comigo sem sequer me conhecer e cujo sorriso causava algo tão incomum em mim.

— É meu trabalho. – ela deu de ombros.

— Você é psicóloga? – perguntei, já imaginando se eu tive justo o azar de me sentar no banco de uma. – Está me analisando agora?

— Oh, Deus me livre! – negou de pronto rindo – Podemos dizer que eu curo corações e obviamente o seu não está bem. 

— Cura corações? – ela percebia o quão maluco aquilo soava?

— Podemos focar no problema?

— Ainda não, eu estou curioso, como pretende curar o meu coração? Você não é uma médica. – a última parte eu apenas deduzi, ela parecia muito feliz para ser uma médica, não usava roupas brancas ou tinha aquele semblante sério e taciturno e, claro tinha tempo de sobra para se sentar num banco e conversar com um completo estranho sem olhar para o relógio uma única vez ou ter seu celular tocando toda hora.

— Ok, Sr. Oliver Queen. – eu ri do modo falsamente sério que ela empregou ao dizer meu nome - Eu vou te explicar todo o nosso tratamento antes que você se comprometa com ele. Eu concordo, é muito importante saber de todos os riscos antes. – não segurei uma pequena risada – Primeiro: não vai ser indolor, cutucar feridas nunca é. Mas o maior risco de abrir um coração, de deixar alguém conhecê-lo é acabar fazendo um amigo ou amiga. – ela fazia parecer tudo tão fácil e até mesmo tentador – o tratamento é igualmente simples, precisamos de um coração novo, um coração para trabalhar em conjunto com o seu que não está muito bem, então vai precisar de algum apoio. Uma espécie de coração-amigo.

— E onde eu acho esse coração?

— Pode alugar o meu por um tempo, ele vai escutar o seu, oferecer apoio e te ajudar a se curar. E o preço vai ser apenas um sorriso. – eu ri, balançando a cabeça e encarando os meus pés. Eu não sabia se o que ela me oferecia era sério, alugar seu coração me custaria apenas um sorriso? Parte de mim dizia que era tolice, que eu deveria levantar desse banco e ir para casa encarar meus problemas como o homem que eu era, que essa garota que me contagiava com seu sorriso fácil e olhar feliz era apenas uma maluca sem nada mais útil para fazer que me incomodar e a outra parte... Essa parte se viu respondendo primeiro com o esboço de um sorriso que era o pagamento exigido e depois com as palavras que nunca pensei que fossem um dia deixar meus lábios.

— Eu trabalho, trabalhava – corrigi – para o meu pai. Não é nada demais, a empresa está na família há gerações e esse sempre foi o esperado de mim. – chutei os pedaços do meu crachá que estavam sobre a grama.

— Não é que você quer realmente fazer?

— Não, eu até gosto da empresa, eu cresci praticamente aprendendo sobre ela, é quase parte da família, faz parte de quem eu sou, de quem eu esperava ser um dia – eu via seu olhar esperto em mim tentando entender, juntar as peças - É complicado de explicar. – suspirei me atrevendo a erguer o olhar do chão e recebendo de volta um sorriso complacente.

— Vamos, Queen, é só transformar sentimentos em palavras. – senti um toque suave em minhas costas, deslizando para cima e para baixo num movimento curto, mas que de alguma forma me fazia respirar melhor - Deixe o coração falar.

Deixa o coração falar?

— Minha família sempre foi importante para mim, eu amo meus pais, minha irmã, graças a eles eu tive uma boa infância, eu cresci acreditando que...- parei não querendo ir tão longe.

— Acreditando em coisas boas e tolas como finais felizes, talvez? – Felicity completou, vendo além da casca de ceticismo que eu mostrei à ela num primeiro momento. Eu estava amargo hoje, mas eu não era sempre assim.

— É.

— O que mudou?

— Em um único dia eu descobri que nenhum deles é a pessoa que eu pensava ser, exceto Thea, ela é apenas mais uma vítima da crueldade dos meus pais. – soltei, me sentindo melhor por me livrar daquele peso.

— Crueldade? – Felicity repetiu assustada, o carinho de suas mãos em minhas costas parou de repente.

— Desculpe, foi uma palavra pesada demais. – desviei o olhar do dela encarando o hospital a nossa frente, ainda sem ter certeza se eu estava sendo sincero naquela desculpa, eu ainda não sabia se um dia conseguiria perdoá-los pelo que tiraram de mim. – Eles não sequestram criancinhas ou estão planejando destruir a cidade com uma máquina de fazer terremotos. – brinquei, mas seu riso foi fraco.

— Oliver, se não quiser falar mais, tudo bem. – ela me concedeu a chance de desistir - Eu te disse, meu coração está aqui para o seu, para escutar o que você precisar falar, mas se é silêncio do que você precisa eu posso te dar isso também.

Ela era real?

— Eu não sei se os conheço mais. – me vi desabafando para aquela estranha que parecia ser mais íntima de mim do muitas das pessoas que eu conheci minha vida inteira - Eles sempre foram um casal perfeito, minha mãe sempre me dava cookies com leite antes de dormir e meu pai me levava para os jogos de beisebol e me colocava por sobre seus ombros. Eles me colocavam de castigo quando eu aprontava e sempre estavam abertos a conversar sobre qualquer assunto. Eles eram aquele casal que se respeita e do qual todo mundo fala... E hoje eu descobri que nada era real, eu entrei na sala do meu pai sem bater e descobri que o casamento deles era pura conveniência. Meu pai tem amantes e minha mãe não se importa, ela mesma teve os seus. Eu descobri que minha irmã, é na verdade minha meia-irmã filha do pai do meu melhor amigo e eu não sei como contar isso para Thea, ou se sequer devo contar isso à ela. – eu estava deixando tudo finalmente sair - Eu não me importo se na verdade eles se odeiam. Eles tem o direito de fazer o que quiserem com as próprias vidas, não vou condená-los por isso, mas fazer da minha vida e de Thea uma mentira também? Isso é errado.

— Eu nem sei o que dizer. – eu não esperava que ela soubesse.

— Minha vida parece drama de novela mexicana, certo? Como colocar um final feliz nela? – eu ri ironicamente, mas Felicity permaneceu séria – Eles não querem que eu conte à Thea. – acrescentei mais aquele fardo, apoiando minhas mãos sobre meus joelhos e abaixando um pouco a cabeça fitando o chão.

Fiquei assim por um minuto, sentindo apenas a mão dela correr suave por minhas costas, aliviando as tensões e fazendo mágica onde quer que tocasse.

— E o que você quer fazer? – olhei para ela, impressionado com aquela pergunta. Ninguém nunca me perguntava isso.

— Eu não quero mais mentiras. – admiti.

— Então, será sem mais mentiras. – sua mão desceu até a minha que apertava meu joelho. Novamente fiquei impressionado com a facilidade do toque, ainda éramos estranhos... Se bem que depois de falar tanto de mim para Felicity eu não tinha mais certeza do que éramos, apenas que éramos mais - É a sua vida, é a sua escolha, Oliver. Você não tem que carregar esse fardo porque seus pais pediram.

Seria simples assim?

Claro que não.

Há fardos que jamais deixariam o meu coração.

— Tem mais. – Felicity se colocou mais atenta e pronta para me ouvir, sua mão apertando a minha com mais força, talvez, só talvez ela tenha visto que eu tinha guardado o pior para o final - Meus pais sempre aprovaram meu relacionamento com a minha namorada...

— Oh, uma namorada. – ela não afastou a mão, mas seu toque foi mais hesitante.

— Eu não sei o que Laurel e eu temos, mas eu sei que não quero continuar. Eu sei disso há um longo tempo. – não sei porque tive a necessidade de esclarecer isso antes de tudo - Nós namoramos desde a adolescência, influência dos meus pais, eles eram amigos da família dela então pareceu o certo a fazer por um tempo. – Felicity assentiu, sem expressar seus pensamentos – Mas esse tempo passou, e agora, sempre que eu tento terminar Laurel inferniza a minha vida até que eu perca a paciência e desista de deixá-la.

— Por que você a deixa fazer isso? – havia um leve julgamento ali, não apenas em seu tom, mas em suas sobrancelhas unidas, no olhar que ela me lançava e até mesmo na tensão em seus lábios pressionados um no outro.

— Eu não deixo, ela apenas faz. – Revidei, não gostando da forma implícita de Felicity dizer que o comportamento dela era de alguma forma minha culpa.

— Oh, você deixa, sim! Ela não faria isso sempre se não soubesse do resultado. –repreendeu, sem deixar subentendido dessa vez – Se o que ela quer é atenção, apenas não dê, eventualmente ela terá que se cansar. Mas se ela sabe que é só fazer algum drama que você voltará para ela, ela sempre irá fazer um drama. A questão aqui é por que você cede, Oliver? – Era a primeira vez que ela me fazia uma pergunta direta e esperava por uma resposta. – Por que é tão mais fácil deixá-la voltar a sua vida, mesmo sabendo que você não quer, do que lidar com ela te infernizando?

Eu queria aquela resposta.

Em anos eu mesmo evitei aquela pergunta. Por que eu continuava cedendo? Não era apenas porque eu não aguentava ter laurel infernizando a minha vida.

— Porque eu me sentia culpado. – admiti, algo que nunca havia admitido em voz alta. Ergui meus olhos para Felicity, procurando nos dela coragem para finalmente falar sobre o que me atormentava. E naquele azul claro translucido que mais me lembrava o mar de uma praia paradisíaca, plácido no qual eu poderia apenas me deitar e boiar para sempre sem me importar,  eu encontrei o que jamais encontrei em outra pessoa. - Dez anos atrás num descuido Laurel engravidou, ela não queria o bebê, mas aceitou seguir com a gestação porque eu a pressionei, eu até mesmo falei em casamento. –parei, precisando respirar fundo antes de continuar – Eu estava tão iludido que me vi comprando um mundo para um bebê que mal tinha cinco semanas de gestação, eu fiz planos para ele, para nós e criei sonhos, e então poucos dias depois ela me liga dizendo que o perdeu, ela perdeu o nosso bebê e isso quebrou algo dentro de mim.

Então veio o silêncio.

Pode um silêncio gritar tão alto e ser ensurdecedor daquela forma?

— Eu sinto muito. – Felicity sussurrou bem baixinho sua voz trazendo vida a parte morta de mim que ainda pensava no filho que perdi. O olhar dela era um até mesmo um pouco hesitante, ao contrário do seu toque que era firme, e curiosamente era exatamente o que eu precisava. - Eu só posso imaginar a sua dor, Oliver, e mesmo assim ter certeza que minha imaginação sequer chega perto.

— Obrigado. – disse, me sentindo realmente agradecido. Em dez anos desde aquela perda ninguém tinha lamentado por aquele meu pesar. Ninguém havia dito eu sinto muito, o máximo que ganhei foi “é melhor assim” - Eu nunca falo sobre isso, com ninguém. – ressaltei, amargurado. Por que eu permiti que me calassem? Por que eu guardei aquela dor por tanto tempo ao invés de dividi-la com outro alguém? Um alguém com um coração como o de Felicity, que me escutasse e que oferecesse seu apoio? – Eu não sei o porquê, mas com você parece simplesmente fácil deixar tudo sair.

— Isso é bom.

— É sim. – concordei, gostando da sensação de dividir sentimentos - Mas eu pulei a pior parte dessa história. – ela franziu o cenho e nem precisou falar, eu li seus pensamentos. O que poderia ser pior do que perder um filho que sequer se teve a chance de conhecer? – Hoje eu descobri que Laurel não perdeu o bebê. – as palavras vieram com dor, bem como a lágrima que descia solitária e revoltada cortando a pele - Ela o tirou, como se ele não fosse querido, como se... – não terminei a frase, me sentindo emocionado demais para fazê-lo. Respirei fundo e fechei meus olhos deixando que novas lágrimas quente caíssem, sentindo seu gosto em minha boca. Elas tinham gosto de dor. - Meus pais a ajudaram e eu descobri isso apenas hoje, dez anos depois. Eles disseram que não estávamos prontos para sermos pais, que éramos jovens e que tínhamos uma vida pela frente. E talvez não estivéssemos prontos, Laurel certamente não era do tipo materno e nós dois nunca tivemos um relacionamento saudável, provavelmente não teria dado certo entre nós, mas o bebê não tinha culpa dos nossos problemas, eu era jovem e talvez imaturo e nenhum pouco preparado para ser pai, mas eu apenas queria... – não consegui terminar, apenas ergui meus olhos para o céu fitando as estrelas com um olhar julgador.

— ... ter tido a chance de tentar? – novamente Felicity completou minha frase, me fazendo encará-la surpreso. Estariam nossos corações assim tão sintonizados?

— É.

Felicity não disse mais nada depois, não havia palavras no mundo que pudessem me livrar daquele sentimento de perder algo que sequer se teve. Como se cura a dor de um coração cujos sonhos, planos de uma vida e esperanças foram esmagados de forma tão cruel? Certamente não com palavras. Felicity sabia disso, porque apenas senti seu corpo tombando um pouco na direção do meu, sua cabeça se encostando em meu ombro e suas duas mãos envolvendo as minhas, seus dedos brincando com os meus, eu gostei de como  seu toque era confortável e até mesmo meio protetor, o que era irônico considerando que Felicity era uma coisinha pequena, e na regra eu deveria protege-la, mas de algum modo eu senti que era ela que o fazia, como se seu toque me protegesse de sofrer mais dores. Escutei seu suspiro e me vi aninhando seu corpo mais no meu, sentindo o calor que ela tinha e que de alguma forma parecia me aquecer também. Por fim apoiei minha cabeça contra a dela, aproveitando-me para inalar o cheiro de seus cabelos.

Ela disse que curava corações.

Mas eu nunca acreditei que para a minha dor houvesse cura.

E mesmo assim, de alguma forma Felicity com sua compaixão a amenizara.

♥♥♥

Eu terminei com Laurel.

Foi simples e rápido. E incrivelmente limpo da minha parte, pelo menos.

Ela não negara quando eu a acusei de tirar nosso filho, tão pouco pareceu sentir algum remorso, ao contrário, tentou me convencer que aquela tinha sido a decisão certa para nós naquela época, que éramos jovens imaturos e despreparados e que se eu realmente quisesse um filho agora que estávamos mais velhos nós dois podíamos tentar ter um bebê. Aquilo foi a gota d’água para mim. Eu nunca sequer cogitaria condenar uma criança a tê-la como mãe, ela apenas não tinha amor suficiente para oferecer à alguém que não fosse a si mesma, quem dirá à uma criança. Quando eu percebi isso, tudo o que ela falou depois, cada pequena manipulação ou até mesmo seu choro falso seguido do ataque de histeria. Nada disso me afetou, eu apenas abri a porta e pedi numa estranha calma para que ela saísse da minha vida e nunca mais voltasse.

Eu não conseguia tirar Laurel antes da minha vida porque eu acreditava que devia algo à ela, que por termos gerado um filho uma vez isso nos ligava para sempre. Mas eu finalmente percebi que aquele relacionamento não era apenas uma merda, mas era tóxico, Laurel não me fazia bem. Quase como um câncer se alastrando por mim, sugando a minha vida e sanidade e matando-me aos poucos, não me oferecia nada, apenas me tirava. Tirava meus sonhos, minhas esperanças e crenças em coisas boas e se uma noite de conversa com Felicity me ensinara algo, era que eu não queria mais ser assim.

Eu queria voltar a ser capaz de sonhar. A encher meu coração com as mais tolas esperanças. 

E eu já tinha dado o primeiro passo, apenas de lhe dar um adeus definitivo eu já senti um pouco do meu coração mais leve, e mesmo com tantas feridas ainda abertas, pela primeira vez em anos eu me sentia bem. Não completamente feliz ou inteiro, nenhum pouco exultante, apenas confortavelmente bem.

Mas estar bem era bom.

E os dias se passaram.

E vieram outros e mais outros, e em todas as noites eu me sentava naquele mesmo banco. Em todas as noites eu esperava por Felicity, mas só em algumas ela se sentava ali comigo, e nós conversávamos por horas sobre tudo e ao mesmo tempo sobre nada e eu passei de me sentir bem, a me sentir melhor e até mesmo quase feliz. Felicity me ajudou com Thea, quando eu contei a verdade para a minha irmã e toda a briga que seguiu mais uma vez causando mais uma rachadura na minha família, ela me aconselhou a mostrar Thea que nada daquilo importava, não mudava o laço de irmãos que nós dois tínhamos.

Eu acolhi Thea em minha casa. E justo eu, um cara que sempre prezou pela independência estava começando a gostar de dividir meu apartamento com minha irmã caçula, mesmo que ela bagunçasse tudo, tagarelasse demais e sempre esperava a noite por mim para me perguntar o que eu fazia até tarde na rua, e quando eu contei sobre Felicity ela se tornou a pessoa mais insuportável e insistente do mundo. Chegando até mesmo ao ponto de escolher a roupa que eu deveria usar para o meu “encontro”. Mas eu gostei disso, de me aproximar dela sem estamos cercados por toda a falsa perfeição que era a nossa família.

E eu descobri que gostava mais assim.

Gostava de ter uma imperfeição que ao menos era verdadeira, cujos sentimentos eram reais.

Eu disse isso à Felicity numa noite, e ela apenas jogou sua cabeça para trás e gargalhou dizendo que se eu gostava de imperfeição eu deveria conhecer a família dela. Havia algo no sorriso dela que me atraía, que me fazia sempre querer estar com ela. Mas sua gargalhada tinha um poder ainda maior, deixava meu coração eufórico por ter sido o responsável por ela.

Era estranho.

Nós nunca trocamos nossos números de telefone ou algo assim. Sequer combinávamos um horário para nos encontrarmos.

Nós apenas aparecíamos.

Sentávamos naquele banco e aproveitávamos a companhia um do outro por toda a noite.

Eu gostava assim.

Era mais especial e parecia até mesmo um pouco mágico. Tão mágico que às vezes eu me sentava no banco de Felicity e encarava o hospital a minha frente, me perguntando se era mesmo real, se eu não havia imaginado o nosso encontro, se ela não era na verdade fruto da minha imaginação. Houve até mesmo uma noite em que Thea me seguiu, e como Felicity não apareceu minha irmã me questionou se eu não estava alucinando com uma linda mulher gostava de se sentar num banco de praça comigo às noites para apenas conversar.

Eu nunca perguntava o porquê em algumas noites ela não aparecia, eu nunca perguntava muito sobre a vida dela mesmo que eu tenha falado de cada aspecto da minha. Acho que no fundo eu temia descobrir a verdade.

Felicity talvez fosse um anjo que apareceu em minha vida quando eu mais precisei.

Vamos ser honestos, eu estava tendo o pior dia da minha vida. Eu me sentei em um banco e ergui a cabeça para o céu e pedi para Deus por ajuda, para que ele curasse meu coração. E quando eu perguntara o que Felicity fazia ela me dissera que curava corações.

Ela tinha sido a resposta para as minhas preces?

E eu temia que quando eu não mais precisasse, quando meu coração estivesse totalmente curado, que ela desaparecesse da minha vida tão repentinamente quanto apareceu. Por isso eu estava ali todas as noites, e durante todas as noites eu rezava para estar errado, para que ela não fosse um anjo, que ela fosse apenas uma mulher nenhum pouco comum e muito especial para mim.

— Por que você vem aqui às noites? – eu perguntei daquela vez. Estávamos ambos sentados no banco, mas dessa vez de frente um para o outro Felicity tinha minha mão junto a sua num toque despretensioso, eu gostava assim, eu poderia olhá-la e tocá-la sem parecer estranho demais.

— Para conversar com você. – sua resposta simples colocou um sorriso bobo no meu rosto.

— Não. – neguei ainda sorrindo por causa da resposta que fizeram meu coração bater mais rápido - Você já vinha antes de me conhecer, até mesmo este banco aqui é seu. – a lembrei, notei que Felicity mordiscou o lábio inferior, como se escondesse algo de mim. – Felicity?

— Posso te contar um segredo? – ela se inclinou para mim, suas palavras soprando seu hálito fresco em minha direção, me tentando a provar seu gosto. Ainda não. Forcei meu cérebro a tomar o controle, eu gostava da nossa relação e não queria estragar tudo cedo demais.

— Sempre. – garanti, querendo ter sua confiança.

— Não é o meu banco. – confessou e riu um pouco nervosa, seus dedos brincando com a palma da minha mão, tracejando as linhas e quase me distraindo do que ela falava - Eu apenas disse isso porque eu te vi ali sentado, parecendo tão triste e desolado que eu não consegui não me aproximar. Essa foi a melhor desculpa que pensei. Havia algo em você me chamando naquela noite, eu não sei o que era eu apenas senti que eu precisava me sentar ao seu lado, precisava... – ela não terminou, nem precisava, a verdade estava escrita nos olhos dela.  – Então, eu acho que esse banco é mais seu do que meu, já que você o viu primeiro.

— Eu acho que já podemos chamá-lo de nosso. – ela assentiu e senti a pulsação dela ir mais rápido  – Mas então, o que fazia aqui nessa praça naquela noite?

— Eu praticamente moro aqui, Oliver. – franzi o cenho sem entender sua colocação. – Eu não sou uma moradora de rua nem nada disso, mas às vezes eu passo tanto tempo nessa praça caminhando por aí, vagando enquanto penso na vida, que eu vejo esse pequeno lugar mais como a minha casa do que no apartamento em que teoricamente eu deveria morar. Eu não menti quando disse que eu gostava de encarar o hospital e apenas pensar na efemeridade da vida...

Um pensamento ruim passou por mim.

Essa praça era propriedade do hospital à frente, pacientes caminhavam diariamente por ela, fazia parte de alguma terapia de recuperação ou algo do tipo.

— Você está doente? – perguntei direto, temendo a resposta dela.

— Eu pareço doente?

— Não. Você parece perfeita. – respondi antes de filtrar meus pensamentos, mas valeu a pena, pois ganhei seu doce sorriso de apreciação - Eu perguntei porque esse parque pertence ao hospital, os pacientes caminham por aqui... – expliquei sem finalizar.

— E se eu estiver doente? – senti uma pontada incomum no peito.

— Então eu acho que precisaria te ajudar a se curar, mesmo eu não sendo um médico eu ficaria ao seu lado. – respondi, ainda preocupado com a ideia de Felicity estar doente, mas pronto para estar com ela se ela precisasse de mim. – Do mesmo jeito que ficou do meu, talvez até alugue meu coração para você.

Ou o dê para você.

— Eu acho que eu gostaria disso. – respondeu vagamente.

— Você está doente? – reforcei a pergunta uma vez que ela havia fugido dela, apertei sua mão na minha chamando-lhe a atenção.

— Não estou, Oliver. – senti a firmeza em sua resposta, vi a verdade em seus olhos e me permiti respirar fundo e aliviado. Não aguentaria a dor de mais uma vez perder algo que sequer tive a chance de ter.

— Já amanheceu. – percebi assombrado observando o sol que se estendia por detrás do prédio do hospital. Eu havia passado a noite inteira sentado num banco de cimento, e eu não me sentia incomodado ou cansado. Muito pelo contrário, estar com Felicity trazia uma estranha vivacidade para mim.

— Já sim. – concordou, mas nenhum de nós dois fez qualquer movimento para ir embora. Nós nunca tínhamos perdido a noção do tempo até amanhecer, talvez fosse um sinal para tentar seguir diferente dessa vez.

Talvez um café? Ou uma caminhada? Eu passaria o meu número para Felicity e pegaria o dela, combinaríamos um encontro de verdade dessa vez. Eu a buscaria na casa dela, a levaria para um bom restaurante e... Eu podia ver todo o meu futuro com ela. Eu não queria me apressar e fazer planos e sonhos, mas era impossível. Felicity era aquele algo bom que eu pensei que nunca mais teria na vida, e tudo o que eu desejava era segurar a sua mão e mantê-la sempre ao meu lado.

— Você está com uma expressão engraçada. – ela comentou, seus olhos semicerrando para mim de modo curioso.

— Você gostaria de... – Eu não terminei o convite, naquele momento uma pequena garotinha correu para os braços de Felicity quase a derrubando do banco. Por sorte eu estava ali lhe dando apoio e segurando-a impedindo que caísse.

— Oi, pequena! – Felicity riu, passando as mãos nos cabelos cacheados da menina que a abraçava com vontade. Eu tentei me lembrar de onde eu conhecia aquela criança, mas minha mente não fez a conexão.

— Sara! Isso são modos? – a mulher que deveria ser a mãe chegou repreendendo - Me desculpe! Ela te viu e eu simplesmente não consegui segurá-la. Sabe como ela é agitada. Nós não queríamos atrapalhá-los, John está procurando uma vaga para estacionar e eu decidi caminhar um pouco com Sara, aproveitar a manhã - ela olhou de Felicity para mim, como se reconhecesse que havia algo especial no ar – Mas Sara te viu, e ela queria muito te dizer algo.

— Tudo bem, Lyla, ela não atrapalhou nada. - A pequena menina soltou dos braços de Felicity e voltando-se para a mãe.

— Vamos, pode dizer, não precisa ser tímida. – A menina respirou fundo e sua palavras, quando vieram tiraram o meu ar.

— Obrigada por curar o coração da minha mamãe, Dra. Smoak.  – eu pisquei, apenas sendo espectador daquela cena, apenas quando mãe e filha se afastaram indo em direção a um homem a poucos metros de nós eu consegui me lembrar daquela família. Era a família da história milagrosa de Felicity, a que ela me contou na primeira noite em que sentamos nesse banco e eu não acreditei que pudesse ser real.

Mas agora eu sabia que era.

Tudo fazia mais sentido.

— Dra. Smoak? – eu a questionei ainda surpreso, nem em um milhão de anos eu teria pensado que ela era uma médica. Eu estava muito mais focado em acreditar que ela era meu anjo particular.

O rosto de Felicity que ainda seguia olhando com orgulho e emoção para a família que se afastava, se voltou para mim, seu cabelo sendo jogado para trás num movimento que nada tinha de falso ou forçado. Seus olhos sorriram juntamente com seus lábios que enfeitavam seu rosto com o sorriso mais lindo e cheio de luz que eu já vi em toda a minha vida.

De repente eu me vi cheio daquela luz que ela parecia emitir.

De repente, a vida não parecia ruim. Na verdade, tudo o que eu via a minha frente eram possibilidades.

Possibilidades com ela.

— Eu te disse, Oliver. – ela piscou para mim ainda exibindo o sorriso que acelerava o meu pulso - Eu curo corações.

Sorri para ela.

Agora eu sorria o tempo todo.

Eu tinha certeza de que ela curava corações. Com sua compaixão, com seu sorriso doce, com seu coração sempre disponível ela havia curado o meu.

— Felicity? – chamei seu nome, mesmo que não houvesse necessidade uma vez que ambos ainda estávamos presos um no olhar do outro, mas que culpa eu tinha se amava a forma do nome dela em meus lábios? - Eu estava pensando, se estiver com um horário vago, será que pode me ajudar? A curar meu coração?

— Ele ainda está machucado?

— Não exatamente. – me aproximei um pouco, nossos lábios a um palmo de distância - Desde que eu conheci essa mulher, em uma noite em que tudo parecia perdido ele vem agido de uma maneira estranha. Primeiro, ela me oferece o seu próprio coração em aluguel, apenas para ajudar o meu por um tempo. E ajudou. Ela o fez voltar a bater, fez dele inteiro novamente, e mesmo que algumas feridas tenham deixado suas marcas, elas já não me machucam mais. Só que agora...

— Qual o problema agora...? – seu rosto se aproximou um pouco mais.

— Meu coração se curou, mas ele ainda quer o dela por perto. – havia um sorriso que Felicity teimava em segurar em seus lábios, havia também um brilho de expectativa no olhar dela. – Ele precisa do coração dela por perto. Será que ela ainda aceita sorrisos como pagamento pelo aluguel do seu coração?

— Eu acho que ela não pode mais alugar o seu coração se o dele não está mais ferido. – negou para meu desespero.

— Mas o coração dele ainda precisa do dela.

— O coração dele está inteiro. – eu balancei a cabeça.

— Pode estar inteiro, mas sempre que ela se afasta o coração protesta querendo segui-la, querendo estar com ela, pensando nela em cada momento, querendo que ela preencha cada parte da vida dele e não apenas algumas noites passadas sentadas em um banco. E quando ela está por perto? Ele é feliz outra vez, ele acredita em coisas boas, ele volta a sonhar acordado e a fazer planos para o futuro  – revelei mais do que planejava. Mas qual era o ponto de se esconder sentimentos? Eu fiz isso por muito tempo, e isso apenas me causou dor. – Eu volto a sorrir quando estou com você.

Felicity suspirou, suas emoções transparecendo em cada parte dela.

Seu olhar.

O pequeno sorriso.

Seu toque.

— Eu gosto mais assim – a mão dela se colocou suave em meu rosto sobre a barba, seu polegar tracejando vagarosamente o contorno da minha boca onde agora havia um sorriso permanente desenhado. Um sorriso que ela colocou lá. - Mas eu sinto muito, Oliver. Acho que o seu caso é mais grave do que pensamos – nossas respirações se mesclavam agora, nossas mãos se uniram e se apertaram enquanto esperava pelo diagnóstico - Eu acho que seu coração pode estar doente de amor.

— É grave, Doutora? – brinquei, aliviado e ao mesmo tempo feliz por estarmos em sintonia.

— Não se o outro coração estiver doente também. – ela negou balançando a cabeça, seu rosto ficando a pouquíssimos centímetros do meu.

— Ele está? – não resisti, meus lábios roçaram os dela me dando um prelúdio do seu gosto doce. 

— Completamente. – respondeu e seus olhos se fecharam os meus copiaram seu movimento sabendo o que viria a seguir. Sua mão puxou meu rosto para si delicadamente rompendo a distância, nossas bocas finalmente se encontraram, nossos lábios se provaram felizes e ao mesmo tempo com a calma de quem sabia que tínhamos todo o tempo para aproveitar. Aproveitar todos os sentimentos e emoções, cada pequena nova sensação que tínhamos toda uma vida para descobrir e saborear, porque aquele beijo apenas provava o que nossos corações já sabiam.

Eles se pertenciam.

 


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Notas finais do capítulo

Hey, espero que a fic tenha colocado um sorriso no rosto de vocês, se quiserem deixem seus comentários...



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