Os habitantes de uma terra estranha escrita por OITO


Capítulo 2
O RELÓGio Esquecido - Parte Dois


Notas iniciais do capítulo

Bem, bem, que dia é hoje? Não sei. @_@
De todo modo, esta é a segunda parte do capítulo um. Estou agendando com antecedência, mas tenho certeza de que não teria muita coisa para comentar aqui, pois não vou fazer absolutamente nada nos próximos dias - não por falta do que fazer, mas porque não faço mesmo. Vou chorar? Não, né?
Espero que gostem da segunda parte do capítulo e continuem comigo! Até! :D



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“Sim, sim, uma cruz de madeira. Dentro do relógio,” disse Valiae à mãe. Ela esperava que alguém lhe desse a racionalidade que a mente, horrorizada por encontrar um símbolo religioso em algo que, essencialmente, lhe causava horror, tanto precisava. “Por que ele colocaria uma cruz de madeira ali dentro?”

“Não faço ideia,” respondeu a mãe. Estavam as duas sentadas na sala de estar, enquanto Valiae continuava a observar atentamente a cruz de madeira entre as duas, à frente, sobre a mesinha de centro. A mãe, no entanto, não parecia muito interessada naquele último resquício do falecido marido. Era uma ação que pouco lhe importava. Não era ele. A mãe lia uma revista de moda, folheando preguiçosamente as páginas sem realmente registrar o que estava lendo. “Ele nunca foi muito religioso ou mexeu muito naquele relógio. Eu gostaria de dizer que ele esqueceu lá dentro, mas não acho que faça muito sentido.”

“Isso me traz uma série de desconfortos. Ah, que coisa terrível. Eu detesto aquele relógio!”

“Pensei que o achasse belíssimo. Estava, inclusive, cogitando trazê-lo finalmente para a sala.”

“Eu o considero bonito, mas, ao mesmo tempo, você sabe…” Valiae vacilou alguns segundos em suas palavras. Mas o quê? Nem ela mesma sabia; tudo parecia muito sem sentido. Como se nada daquilo se encaixasse com a racionalidade pela qual clamava constantemente e voltava-se apenas ao medo irracional negado.

“Eu sei… e o que é que eu sei, mesmo?” perguntou ela, e colocou a revista para baixo. Sua atenção tinha um peso peculiar; onde já sentira aquilo antes? Era algo de antes, de muito antes. Mas quando?

“Você sabe… eu tenho… bem, tinha, muito medo daquela coisa. Ela é estranha. Nunca me agradou e não me parece nada que possa ser remediado,” Valiae parou de falar um instante. A irracionalidade era mesmo uma coisa paralisante, mas a tendência à proteção era algo tão notável – ou mais notável – que a paralisia em si. Continuava sendo um sentimento desagradável, no entanto. Um sentimento que lhe causava um profundo desconforto.

Não, não era apenas o medo; havia uma voz dentro de si que dizia coisas diferentes. Muitas coisas diferentes.

“Eu sei que você tinha medo daquela coisa quando criança, mas não acho que seja algo que valha a pena alimentar depois de tanto tempo,” disse a mãe, e colocou a mão sobre o colo, devagar e estendeu a mão em direção à cruz. “Deixe-me ver isso.”

Ela tomou a cruz nas próprias mãos. Não, nunca vira aquilo. Na verdade, não parecia com algo que o marido compraria algum dia, ou mesmo algo pelo que o marido teria alguma – mesmo mínima – afeição. Lá fora, as pessoas conversavam nas ruas e as vozes entravam pelas janelas e confundiam-se com os barulhos da casa, assim como com a respiração de Valiae e a própria respiração da mãe, que, silenciada por si mesma, continuava a examinar a peça com algum interesse. Ela devolveu-a à filha. Não, não, não conhecia aquela coisa; não se lembrava daquilo. Era, de fato, muito estranho estar dentro do relógio. Além disso, não parecia tão velha; era uma peça muito bela.

“E o que pretende fazer com isso?”

“Não sei, não sei se algo pode ser feito com um objeto como esse, além de usar como enfeite, ou coisa que valha. Está bem nova; ele deve ter esquecido lá dentro.”

Mau agouro.

“Provavelmente…”

“O que disse, mamãe?” perguntou Valiae.

“Que ele provavelmente esqueceu lá dentro. Não acredito que tivesse uma alma muito religiosa, mas tudo indica que, sim, ele esqueceu. O que mais poderia ser? Talvez algum de seus amigos saibam de alguma coisa… mas… não, não. Bobagem. Não devem saber nada. Estou me dizendo qualquer coisa,” disse a mãe, e se debruçou em direção à filha – os olhos, eles estavam mesmo marejados?, ou era apenas algo na mente de Valiae?, na mente? – e tomou-lhe a mão. “Não se preocupe. As coisas estão bem. Você não arrumou a sala? Logo estará acostumada a ficar lá e ao relógio.”

“Eu acho que sim. Obrigada. Além disso, preciso trabalhar. Já havia pensado em ficar com a sala para mim mesma antes, mas sempre havia algo…”

“Sim, sim. Eu havia pensado o mesmo. Eu não queria mexer nas coisas dele. Não havia motivo para isso. Não podia.”

“É exatamente o que eu pensava,” disse Valiae, e ficou tomada por uma súbita tristeza. Ainda se sentia um pouco daquela maneira. Eu estava esperando apenas a morte chegar e, pronto, começaria a absorver sua vida, com um tipo de crueldade que os vivos poderiam ter apenas para com os mortos. O apagamento. Não é um verdadeiro apagamento, é claro; é algo que mistura uma diminuição da existência, após a morte encerrar a permanência daquele indivíduo na terra, e o início da desfamiliarização do cérebro com o espaço vago. A cruz em sua mão, de alguma maneira, pulsava como essa verdade de apagamento; ela estava se desfazendo do pai aos poucos, para reconstruir o espaço que ele deixara. Ah, era mesmo muito cruel; não é uma celebração da memória, é o seu apagamento. Mas o que mais poderia fazer? O que mais poderiam todos eles fazer, além de deixar-se incentivar e destruir, aos poucos, a memória? Ela seria, em algum momento, apenas uma referência.

Quando começaria a esquecer do rosto dele? Quando começaria a esquecer aspectos fundamentais de sua vida? Ela já começara derrubando um dos espaços dele; a sala estava vazia, finalmente, do pai. Era, agora, a sala dela, onde ela trabalharia e onde ela começaria a escrever o mais novo romance.

“E o novo livro?” questionou a mãe. Que coisa! Parecia ler os pensamentos de Valiae! A mãe escolhera exatamente um ponto específico. O novo livro e o apagamento do pai. O espaço. Ela seria obrigada a preencher aquele espaço, então?

“Ainda não tenho nada muito bom. Ainda não posso. Estou cansada.”

“Mas precisa pensar em algo logo. O novo já saiu, não pode deixar seu lugar esfriar.”

“Não há um lugar, mamãe. Eu não vendo tão bem assim; vendo apenas o suficiente para garantir um lançamento no ano seguinte.”

“Exatamente! Mais um motivo para buscar logo o que escrever, não acha?”

“Talvez… eu ainda preciso descansar um pouco, pensar sobre algumas coisas. Principalmente, preciso me acostumar com a sala e com a ideia de sentar num lugar que me causa alguma dor,” refletiu brevemente. Apertou o dedo nas mãos. “Eu quero e preciso fazer isso.”

“Compreendo bem, minha querida. Mas não pense muito nisso,” disse a mãe, e apontou para a cruz, “ou naquilo lá em cima,” continuou, referindo-se ao relógio, “nenhuma dessas duas coisas é um problema de verdade, fique tranquila. Ah, sim, quase esqueci-me de perguntar! Eu já estou planejando isso há tempos, mas sempre esqueço. Você sabe, minha cabeça já não funciona tão bem!”

“Sim, o quê?”

“O livro, o livro do amigo de seu pai. Você o encontrou? O livro do tal Pomerillo.”

“Ah, sim, sim, eu o encontrei, mas não o li. É um tanto antigo, não é mesmo?”

“Sim, você era uma criança naquela época. Você não deve se lembrar bem, mas foi pouco depois de você vir morar conosco. Ele a observava bastante e disse que escreveria um livro para você. Quando voltou de viagem, nos visitou com uma publicação bem bonitinha, para crianças. Uma história de horror sobre um relógio. Eu não a deixei ler; achei de extremo mau gosto.”

“O livro era ruim?” perguntou Valiae, um tanto surpresa, pois a expressão de asco pronunciada de sua mãe a fez rir.

“Não, não, de modo algum! Apenas achei um absurdo trazer uma coisa como essas para uma criança já horrorizada com alguma coisa. Com um relógio! Penso que era um tanto sádico, não acha?”

“As pessoas são, de certa forma, muito sádicas, mamãe,” riu Valiae para si mesma, mais uma vez.

A mãe continuava com a expressão, mas logo deu os ombros. Se a menina não se importava, quem era ela?

“Bem, eu vou ler,” disse Valiae.

“Se você quer mesmo, então faça. Boa sorte. Pelo menos agora estou protegida de choro na madrugada,” riu a mãe.

E ela fez! Nos dias seguintes, Valiae lia em seu quarto, a cada noite, o pequeno volume que encontrara entre as coisas do pai, assinado para a corajosa Valiae, uma dedicatória simples, por Pomerillo Niguno. Durante a manhã, ela seguiu trabalhando na arrumação da biblioteca e as noites eram reservadas para o romance. Não parecia um texto muito interessante, mas uma passagem em particular lhe chamava muita atenção; havia uma breve descrição ali que lhe parecia extremamente familiar, ainda que o motivo dessa familiaridade não fosse facilmente identificável. Ela pensou nisso durante alguns dias. Durante esse período, uma interessante ideia lhe veio à mente e ela começou a trabalhar, sentada na biblioteca já organizada para melhor satisfazer a própria vontade – a isso, culpava o livro; a história em si, era uma fábula infantil sobre a perda. Precisaria daquilo para conseguir exorcizar completamente os sentimentos conflituosos que aquela sala causava e usaria, assim como fizera Pomerillo Niguno, um relógio como elemento metafórico.

Foi um dia, trabalhando em um dos breves roteiros iniciais para a nova história, que a familiarização com a personagem encontrada no livro lhe voltou como um soco no estômago; um calafrio roçou-lhe a pele e ela, sem emitir qualquer som, pôs a caneta que tinha em mãos – pois escrevia – sobre o papel, levantou as vistas para o relógio a pouca distância de onde estava e deixou-se fluir. Sim, ela se lembrava claramente, aos poucos retornava, é claro, mas a clareza das cenas que guardou em si mesma, ocultas, reacendeu diversos pontos de iluminação nas salas internas de seu Eu. Ah! Sim, era isso, ela lembrava. Ah, o livro! Havia algo no livro que ela lembrava bem!

Teria ela lido, no fim das contas, numa infância distante, sem que a mãe soubesse? Talvez o pai a tivesse dado às escondidas… não, não, ela não lembrava daquele livro, nada naquele contexto era familiar, com exceção de um único ponto; um único elemento. A mulher. A feiticeira. Ela era uma bruxa. No livro, a chamavam Höpa.

Valiae tinha ciência dos encantos do cérebro; das coisas que o cérebro faz quando queremos muito acreditar que determinada coisa, de fato, tem uma ligação íntima conosco, ou conversa com o indivíduo como ele gostaria de pensar que acontecia. Mas havia algo ali naquele meio, uma questão muito clara de incoerência; como ela poderia lembrar-se de um único elemento? E tão bem?

O cérebro mistura nossas memórias, ele confunde diferentes elementos, substituindo alguns espaços vacantes por lembranças que pareçam claras. A ampla história da vida guardada pelo cérebro se desfaz com o tempo, comida pelas traças das horas que passam e mitigam os elementos que, importantes ou não, começam a amarelecer, perder as cores, tornando-se preto e branco. Então já não existem mais; as traças das horas consomem pequenos fragmentos e eles, de certa forma, são substituídos por uma criação ou por outras lembranças que se adéquem aquele espaço – como um quebra-cabeças de encaixe perfeito, mas errado. Mas e todo resto do livro? Onde estava?

Não, não era uma lembrança de leitura. Aquilo acontecera; bem, de certa forma.

Parecia real, mas ela sempre soube que fora um sonho e apenas um sonho. A bruxa.

Ela sabia de tantas coisas que a própria Valiae, a pequena Valiae, naquela época, sabia sobre si mesma e sobre os outros, assim como sabia muitas coisas que Valiae não sabia. Ela era uma mulher de um lugar muito distante, habitante de uma terra estranha, onde as coisas não aconteciam como aqui. Não era isso mesmo? Não foi o que ela lhe dissera? Ela lembrava da visita? Da visita à casa da mulher e como ela a encontrara?

Como começou o sonho, Valiae, ela perguntou para si mesma. Não percebeu, mas olhava diretamente para o relógio de pedestal, obsessivamente, como se sua atenção não servisse mais para nada. Ela existia apenas para ver o relógio; a bruxa, a tal Höpa, talvez, tinha algo a ver com aquilo.

Seria isso mesmo, Valiae? Você lembra mesmo, Valiae?

Ela acordou num sobressalto, no meio da noite. Tinha seis anos, os pés aquecidos pelos cobertores, pois a noite era gélida, sombras caindo sobre o quarto e vozes que vinham de dentro da sua mente, como uma confusão indescritível de sons do além. Ela levantou-se e pôs-se a caminhar pela casa, fosse qual fosse o motivo. Pôs os pés no chão, sentiu o frio da noite sobre a madeira escura, e deixou-se caminhar sem destino pela casa. Mas acabou na biblioteca! Em frente a porta, pensando sobre entrar ali, questionando-se atentamente se deveria mesmo entrar. Você sabe o que tem aí dentro, não é mesmo? Você sabe o que te espera aí dentro e, pense bem, papai não está aí; papai não vai te proteger do… do quê?

Do relógio, é claro!

O relógio é uma estupidez, mas o relógio é o monstro das garras mais afiadas, Valiae!

Deteste o relógio!

Repudie o relógio!

Mantenha-se distante e ele não te pegará. Não há como suas mãos fecharem-se ao seu redor e puxá-la para dentro dele. Fique longe do relógio. Mas ela abriu a maçaneta.

Ela abriu a maçaneta e entrou.

Lá dentro havia apenas a completa escuridão, exceto por uma luzinha de lâmpada acesa, próxima ao sofá, mas Valiae logo percebeu que a lâmpada não era exatamente uma lâmpada. Uma gigantesca borboleta de asas brilhantes como a manhã mais bela pousara sobre uma pintura de Meng Po, mexendo suas asas brilhantes lentamente. A cada movimento, uma leve camada de pó brilhante se desprendia e desaparecia no caminho até o chão. Valiae jamais vira algo tão estranho em toda sua vida; de pé na porta, sem ousar entrar na sala, continuou observando a borboleta à distância.

Permaneceu grudada a porta, pois, ali, ao lado da borboleta, uma mulher sorria para ela, sentada com as pernas cruzadas e recostada contra o encosto do sofá. Ela riu, muito baixinho. Ela era muito alta, com cabelos longos e cacheados, presos num coque no alto da cabeça, completamente descuidado. Suas roupas longas eram coloridas em roxo, amarelo e preto, com muitos tecidos sobrepostos. Pareciam longas asas fechadas sobre o corpo delgado e comprido. Uma borboleta. Suas vestes também eram muito velhas; puídas por traças e pelo desgaste dos anos.

“Não pode tocar nelas, sabe?” sugeriu a mulher, e estendeu os próprios dedos em direção à borboleta sobre a pintura de Meng Po, não a tocou, mas manteve a palma aberta próxima à coisa monstruosa. “Elas queimam. Não pode pegar.”

“Eu não ia pegar,” Valiae respondeu. Ela não sabia porque respondeu, apenas lembrava que acontecia assim.

“Venha até aqui,” disse a mulher, “quero lhe perguntar uma coisa. E quero mostrar outra,” ela estendeu a mão.

“Quem é você?”

“Alguém que ainda não importa muito para você. Talvez mais no futuro. Venha aqui. Não há o que temer. Eu não sou o que tem ali dentro,” a mulher apontou para o relógio. “Entendo perfeitamente você não gostar nem um pouco daquela coisa. Isso, talvez, diga algo interessante sobre você. Talvez não. Precisamos saber.”

“O que quer dizer?”

“Me diga, o que você vê ali, quando olha para o relógio?”

“Nada, eu só não gosto dele,” vacilou Valiae.

“Não gosta, não é? Acredito que nós deveríamos conversar um pouco sobre isso.”

“Conversar sobre o que?”

“Sobre você,” disse a mulher. E baixou a mão estendida para a menina. Parecia ter desistido do convite. “E você não veio quando a chamei. Você é uma menina esperta.”

“Eu não achei que deveria. Mas, agora, acho que devo.”

“Por quê?” perguntou ela. Seus olhos se apertaram levemente. Pareciam brilhar, como um mar brilhante de joias púrpuras. Valiae nunca vira olhos violeta antes.

“Não sei. Só acho que devo. Quem é você?”

“Eu sou… bem, você pode pensar que eu sou uma bruxa. Sou outras coisas, mas… sim, uma bruxa. Conhece Glinda, eu imagino.”

“Sim, a bruxa boa.”

“Eu sou melhor que ela,” algo naquela frase pareceu muito engraçado para a bruxa, pois ela desatou-se a rir por alguns longos segundos. Valiae ainda não entendia a graça naquilo tudo. “Eu também sou, digamos, uma bruxa boa. Meus interesses são bons.”

“Aquilo não é bom, não é?” ela sugeriu o relógio.

“Ah, não exatamente.”

Como ela conseguia recordar tudo isso? Era tudo tão vívido! Uma magia desperta, talvez; tinha cores vibrantes, uma explosão brilhante de sensações. Como se estivesse a todo tempo acordada, mas era evidente que estava adormecida por muitas horas e aquele, como todo sonho, provavelmente durou apenas cinco minutos.

“Me diga, alguém já leu o seu futuro antes? Já olhou bem para você e contou coisas interessantes que podem acontecer a você, Valiae?” perguntou a bruxa.

“Como sabe meu nome?”

“Eu só sei. Eu precisava saber seu nome, então eu sei. As borboletas me disseram. Elas me contam o que preciso,” disse a bruxa, e apontou para a borboleta na parede, “esta daqui, vê? Foi ela quem me trouxe até aqui esta noite. Eu precisava vir, então ela trouxe. E me contou muitas coisas.”

“Que tipo de coisas?”

“Ah, não posso contar aqui. Preciso que venha comigo até um lugar. Lá eu poderei contar tudo o que quero. E preciso te mostrar uma coisa, também. Você aceitaria me acompanhar até lá? É o lugar de onde eu venho. É uma terra distante e muito, muito estranha, as coisas acontecem de maneira diferente, mas, de vez em quando, eu posso vir até aqui e levar alguém comigo. Mas apenas quando é extremamente necessário. Você precisa querer ir comigo, é claro.”

“Eu não quero,” respondeu Valiae. Mas lembrava-se que havia algo dentro dela como um sopro de vitalidade que lhe dizia ser um dever aceitar a proposta. O que fazer?

“Compreendo,” disse a bruxa, balançando a cabeça afirmativamente. “Mas eu ainda acho que deveríamos ir. Eu preciso que veja uma coisa. Se você não for, nunca poderá saber como se livrar de algumas tristezas do seu futuro. Eu posso ver tudo. Eu posso ver absolutamente tudo. Quero dizer… tudo o que for possível ver.”

Ela estendeu a mão novamente e deixou-a pendendo no ar.

“E então? Não vai pegar a minha mão?”

Valiae caminhou lentamente até ela, pé ante pé, e todo aquele tempo lhe pareceu uma eternidade. A sala se estendia a sua frente. Havia um zumbido em sua orelha.

Ela colocou a própria mãozinha dentro da palma aberta daquela mulher e seus dedos finos e longos se fecharam sobre ela como as pernas de uma aranha pálida.

“Vamos lá,” a bruxa sussurrou.

Valiae não sabia exatamente como, mas tudo ao seu redor começou a se mexer; um farfalhar delicado. Demorou um pouco até perceber o que era exatamente aquilo. As formas das coisas, das paredes, dos objetos, tudo, tudo, tudo, movimentava-se para cima e para baixo. A velocidade aumentando, aos poucos, e logo Valiae pode perceber, com o barulho, o que era aquilo. Borboletas! Milhares e milhares de borboletas, batendo suas asas em sincronia e descolando-se da parede da existência, dissolvendo a sala que ela conhecia como um ambiente da própria casa e voando ao redor delas, em movimentos circulares.

Não levou muito tempo até as borboletas, unidas, formarem um denso turbilhão, como um tufão fortíssimo, de rabiscos coloridos; uma mistura confusa dos diferentes tons na antiga sala. Os cabelos de Valiae levantaram; o vento as empurrava para frente e para trás, à bruxa e à menina, e o mundo girava, girava, girava; a cabeça girava e elas subiam e desciam, rodopiando naquele belíssimo balé de borboletas coloridas, um tufão!, um tufão!, ela pensou que havia gritado isso, pensou que estava caindo e que gritava, tufão de borboletas! Me tirem daqui!, enquanto a sala girava cada vez mais rápido e, quando menos esperava, o tufão se desfez, assim como as borboletas dissolveram a sala minutos antes. Elas escapavam por janelas abertas e pelo teto escancarado para o céu noturno, cheio de estrelas, na mais curiosa sala que Valiae já vira em toda sua vida.

A bruxa continuava sentada, mas, agora, aquele era um outro sofá. Ao lado dela, pousada sobre o braço descascando do velho sofá, a borboleta brilhante irradiava a luz incandescente, que fazia os olhos doerem. A bruxa soltou-lhe a mão.

“Bem-vinda, minha querida, ao meu pequeno lar. Bem-vinda ao Esconderijo do Nada.”

 

 


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Notas finais do capítulo

E aí acabo mais uma parte do capítulo um. Que coisa, não?
Eu gosto muito de borboletas.
Espero que tenham gostado do capítulo e, por favor, me deixa um comentário bacana para saber o que acharam!
Valeu! :DDD



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