A Hora da Caçada escrita por Diamond


Capítulo 1
Season of the Witch


Notas iniciais do capítulo

Para uma melhor imersão no ambiente em que a história se passa, recomendo ler o conto escutando o seguinte instrumental: https://youtu.be/2nhIMKxzOjc

Sem mais delongas, desejo uma boa leitura a todos!



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O vento gélido assobiava ao passar entre as casas situadas na pequena aldeia de Altïr, soando como um aviso mórbido. Os aldeões apressaram os passos, correndo para dentro de suas moradas. Traziam consigo comida e lenha, tanto quanto eram capazes de carregar. As crianças eram tangidas para dentro por suas mães, enquanto os chefes de família selavam as portas e janelas com tábuas de madeira. Não havia nada que aquelas pessoas pudessem fazer, a não ser esperar que a noite findasse o mais rápido possível e, durante a espera, rezar. Clamar aos céus por suas pobres e sofredoras almas. Implorar pela piedade divina. Às vezes funcionava, o que não tornava o temor daquela data menos apavorante.

Naquela região o sol costumava se pôr em torno das 19 horas nos meses de outono, porém aquela data prometia ser diferente. Nem bem o relógio localizado na praça central soou indicando as 16 horas da tarde e a claridade já se despedia daquele povoado, de modo fúnebre e pesado. Pouco tempo depois já não havia uma única pessoa que fosse nas ruas. O local poderia ser facilmente dado por deserto e abandonado. Mas elas sabiam que eles estavam lá.

No interior da catedral de Altïr encontrava-se o bispo responsável por aquela diocese. De joelhos dobrados, cabeça curvada e mãos estendidas ao alto, ele rezava sem parar desde que o relógio indicava o início daquele 31 de Outubro. O fazia todos os anos desde que passou a se responsabilizar pelo minúsculo povoado. Estava certo de que eram suas poderosas preces que mantinham aquelas pessoas a salvo das atrocidades monstruosas advindas do mundo inferior.

Mesmo com os olhos cerrados, ele percebeu quando a iluminação natural despediu-se do mundo com um último lampejo tristonho. Dentro da igreja, as velas que queimavam de modo lento e insistente desde a madrugada produziam a única fonte de luz, impedindo que as trevas tomassem de conta daquele local.

Ao lado de fora, a escuridão avançou sobre Altïr. A lua cheia parecia maior e mais presente do que nunca e providenciava uma luz branca e fraca, que acalentava o coração dos aldeões com o estúpido sentimento de esperança. Escondidas sob as sombras do mundo, elas riam silenciosamente. Sua hora estava chegando e as centelhas de esperança que pareciam pairar sobre o ar atiçavam seus desejos mais íntimos. A ansiedade aumentava para a hora da caçada.

Planando sobre a aldeia, um corvo desceu dos céus ao chão. Tão logo tocou o piso de terra batida ele foi encoberto por uma fumaça escura como pó de carvão, revelando então uma moça atraente, mas cujos olhos da cor de sangue assustariam até mesmo o mais destemido dos homens.

— Tem certeza de que ela se encontra aqui? — perguntou uma de suas companheiras, que encontrava-se preguiçosamente deitada sobre o galho de uma árvore, penteando o cabelo castanho com a ponta dos dedos. — Me admira que uma de nossas irmãs tenha sido mantida prisioneira aqui por tantos anos. Este lugar não possui qualquer estrutura que sequer simule um obstáculo. Simplesmente patético.

— Tenho certeza. Mas não me admira que tenha passado tantos anos presa, ela ainda se encontra adormecida. É nossa missão resgatá-la e acordá-la. — respondeu a jovem que portava o corpo de um corvo minutos atrás.

— Achei que estivéssemos aqui para nos divertirmos. — protestou outra de suas companheiras. Esta se ocupava em trançar os cachos dourados, agachada junto ao chão. — Faz muito tempo desde a última vez que tivemos uma boa caçada.

— A do ano passado foi triste, sinto muito se alguma de vocês discorda. — comentou uma companheira de fios negros e olhos esbranquiçados como a lua.

A mulher corvo não deu atenção à conversa das demais, apenas encarava fixamente a lua cheia, que àquela altura estava parcialmente coberta por espessas nuvens cinzentas. “Falta só mais um pouco, apenas mais um pouco até que chegue a nossa hora”, ela mentalizava enquanto acompanhava o movimento lento das nuvens.

Após alguns minutos o tão esperado momento havia chegado. Ravena não precisou dizer absolutamente nada, pois elas todas já estavam habituadas àquele rito anual. Assim que a última brecha de luz lunar foi ocultada pelas nuvens, elas puseram os pés para fora das sombras, livres para correr entre as ruas vazias da aldeia de Altïr.

Aradia, a moça que antes penteava os cabelos sobre as árvores quase adormecida, agora se aproximava de uma das casas isoladas de dentro para fora. Ela bateu na porta tal qual um visitante faria, questionando se havia alguém dentro da residência. A ausência de resposta fez com que ela soltasse uma gargalhada maquiavélica e estridente.

— Se não há ninguém aqui dentro, certamente não haverá ninguém para sentir falta desse casebre insignificante.

Dito isto, ela pousou a palma da mão sobre a parede de pedra, sussurrando algumas palavras num tom inaudível para os ouvidos humanos. Feitiços não vinham das cordas vocais como palavras comum, mas do fundo da alma daquelas criaturas renegadas, além da compreensão dos seres ordinários que habitavam o mundo. Como se estivesse submetida a uma pressão de oito mil léguas submarinas, a casa implodiu e sufocou seus moradores debaixo das rochas pesadas.

Sorrindo satisfeita consigo mesma e com o resultado obtido, a moça seguiu para outra residência com a mesma intenção. Aradia era muito habilidosa naquilo que fazia, até demais. Enquanto caminhava pelas ruas escuras e desertas, vislumbrou algumas de suas irmãs entretidas em suas próprias travessuras.

Lavínia estava sentada sobre a beirada do poço, mas não chegou a ver a morena caminhando de modo saltitante diante de si. A jovem de cabelos escuros e olhos esbranquiçados estava demasiadamente compenetrada no movimento grotesco  que fazia com as mãos, dando a impressão que sequer havia ossos debaixo da pele. Cada gesto era acompanhado por um comando de sua voz, e logo a água parada ao fundo poço jorrou para fora e atingiu um pequeno conjunto de casas tal qual uma onda do mar o faria. As residências atingidas tornaram-se aquários, enquanto os peixes de quatro membros sufocavam em busca de ar. Lavínia ria enquanto escutava as batidas desesperadas e recheadas de arrependimentos do aldeões que, se não tivessem isolado as casas com estacas de madeira, talvez pudessem fugir pelas portas e janelas.

Ravena caminhava a passos lentos e decididos em direção à catedral de Altïr, absorta em pensamentos e alheia às travessuras de suas irmãs. Normalmente ela estaria em busca de diversão, mas naquele ano específico seria diferente. Finalmente ela a havia encontrado. E não seria o frágil bispo daquela diocese que iria atrapalhar seus planos.

Ao encontrar as portas da igreja fechadas e trancadas por dentro, a mulher corvo não hesitou em um segundo sequer. Erguendo as palmas das mãos em direção aos portões do templo sagrado daquela pequena aldeia, ela proferiu palavras mudas similares àquelas que suas irmãs utilizaram. Seu corpo novamente fora envolto em fumaça preta, mas sem a intenção de transformá-la em corvo desta vez. Ao invés disso, a fuligem escura adentrou na catedral pelas pequenas frestas existentes entre a porta e o chão. Logo em seguida os pequenos pontos escuros uniram-se e revelaram a imagem da ruiva.

Todo o ambiente estava envolto em trevas, à exceção do altar repleto de velas parcialmente queimadas. Ao chão, em posição de súplica, seu velho conhecido, o bispo de Altïr. Ravena sorriu de canto, já sentindo o gosto da vitória nos lábios. Era hora de dar início a sua caçada.

— Vocês, humanos, têm a estranha compulsão em mensurar as coisas. — ela apontou em alto e bom tom, chamando a atenção de sua companhia, que tornou o rosto portando uma expressão semelhante ao pânico. — Algo que jamais consegui compreender. Mas já que gostam tanto, será que poderia mensurar o tamanho da minha saudade?

O bispo nada disse para responder àquela afronta. Virando-se no chão, ele sentou com as costas rentes ao altar. Os joelhos latejavam em razão do longo período que ele havia passado em oração. Não ousou se levantar, pois sabia que se o fizesse, a queda seria certa. Além do mais, seria perda de tempo tentar fugir da ruiva. Quando um mortal caia nos gostos de uma bruxa, era impossível escapar. Enzo conhecia seu destino já havia muitos anos e tinha consciência de que uma vida de devoção e castidade jamais seria capaz de apagar as marcas do pecado já vivido.

— Afaste-se de mim. — ele proferiu em tom baixo, de modo quase ameaçador. Não que aquilo causasse qualquer reação na jovem à frente dele. — Você me enganou, me seduziu e me arrastou para essa onda de pecado em que desperdiça sua eternidade.

— Eu o enganei? Eu o seduzi?! — ela questionou de forma irônica, enquanto soltava uma gargalhada. — Poupe-me de suas lamúrias estúpidas, você se deixou seduzir.

Cada palavra proferida pela ruiva correspondia a um passo que ela dava, caminhando lentamente em direção a sua presa. O cheiro daquela alma fraca atiçava-lhe os sentidos. Havia planejado ser objetiva naquela noite, mas o ímpeto de saborear sua caçada era mais forte que seu autocontrole. Para elas, brincar com a comida era algo quase instintivo.

Quando já estava bem em frente ao bispo, ela agachou-se diante dele, pouco preocupada com o que as fendas de seu vestido poderiam revelar. Apesar de sentir-se aterrorizado por dentro, Enzo não conseguia desviar os olhos daqueles orbes sanguinários.

— Não me venha com desculpas, você sabia. Sempre soube. — ela respondeu de modo estranhamente doce, que em nada combinava com sua personalidade e intenções atuais. — Além do mais, queria aquilo tanto quanto eu.

— Não, não, eu fui enganado, jamais escolheria de livre vontade algo assim. — ele respondeu com a voz trêmula, acanhado com aquela aproximação. Ele sabia o que viria a seguir.

A negativa, a voz trêmula e os olhos assustados excitavam Ravena de tal maneira que ela não era capaz de explicar. O dom da feitiçaria era capaz de lhe proporcionar sensações impossíveis de exprimir em palavras, mas todas muito agradáveis de se sentir. No entanto, aquilo não era suficiente para ela. A mulher corvo estava longe de se sentir saciada.

Avançando de forma lenta e hipnótica, sem desviar o olhar de sua presa, ela engatinhou sobre o bispo até sentar-se sobre seu colo. O caos se espalhava do lado de fora da igreja, mas ela só tinha olhos para ele.

— Enzo, meu amor, não existia a mínima possibilidade de você desconhecer onde estava se metendo. — ela comentou de modo doce e sedutor, posicionando-se melhor sobre o colo dele. Estava  absorta naquele jogo e por um instante esqueceu-se de sua intenção inicial quando adentrou no templo. — Nenhuma mortal que já tenha habitado este mundo seria capaz de lhe conferir tanto prazer quanto eu.

As palavras foram proferidas em meio a um sussurro, parecendo entrar diretamente na mente do bispo, enervando seus pensamentos de imediato. Para acompanhá-las, Ravena realizou um movimento sugestivo com o quadril enquanto puxava os cabelos do homem para trás. Ao expor o pescoço de sua companhia, a mulher teve seu olfato invadido pelo cheiro de pudor que emanava dele. Estava prestes a aproximar o rosto daquela área, apenas aguardando o momento em que o pudor se misturaria com o pecado, numa deliciosa e proibida combinação. Tão logo sua vista ficou bloqueada pela pele morena do italiano à sua frente, um ardor subiu-lhe às costas, parecendo atingir diretamente sua alma.

O grito de dor da mulher corvo preencheu o templo, ecoando nas paredes decoradas por anjos e santos. Ela afastou-se do bispo de imediato, arrastando-se para longe enquanto as sensações atordoavam-lhe os sentidos. Seu vestido estava molhado, mas ao invés da sensação fria da água, ela sentia chamas consumindo sua pele.

Enzo levantou-se com pressa, tendo em vista que não teria outra chance daquelas. Correndo em direção à porta, ele tampou com uma rolha o vidro de água benta que sempre trazia consigo. Puxando os largos portões de madeira talhada com dificuldade, não houve tempo para mais que dois passos antes de sentir a bochecha do rosto pressionada contra o chão de pedra.

— Você não deveria ter feito isso. Achei que poderia me divertir na caçada deste ano, mas você não parece querer colaborar comigo como antes. Uma pena realmente. — ela disse de modo sôfrego, com um dos pés sobre as costas do homem. — Agora direi a que vim. Diga-me onde ela está.

— Não sei do que está falando. — ele respondeu com dificuldade, pois apesar da aparência frágil as bruxas eram conhecidas por sua força descomunal e Ravena pressionava seu peito contra as pedras sem dó nem piedade. A negativa enfureceu ainda mais a ruiva, que tomou-lhe novamente os fios entre os dedos, mas desta vez para chocar a cabeça do homem com fúria no chão duro.

— Acha que estou brincando? Diga onde ela está ou não serei capaz de responder por mim! — ela ordenou enquanto repetia o ato diversas vezes. O sangue escorria vigorosamente do nariz do bispo e sua sobrancelha encontrava-se cortada em diversos pontos.

— Você nunca é capaz de responder por si mesma, vive para servir ao pecado. — ele a provocou, mesmo sabendo que pagaria fisicamente por aquilo. Em retaliação, Ravena ergueu o pé que o prendia apenas alguns centímetros, para então descê-lo com força sobre as costas de sua presa.

O grito de dor ficou preso em sua garganta e o som dos ossos se trincando preencheu seus ouvidos. Ele precisava ter cuidado com suas palavras, pois era certo que seu corpo não resistiria a outra investida daquelas.

Um rápido olhar para sua direita e ele vislumbrou uma pá comprida apoiada na parede da catedral, bem debaixo de um dos sinos. Em um único movimento rápido, ele conseguiu esticar o braço, alcançando a base da pá, para então jogá-la contra o sino. As badaladas penetraram os ouvidos de Ravena como pequenas agulhas e novamente ela foi obrigada a se afastar, enquanto cobria as orelhas que a essa altura sangravam.

Enzo aproveitou sua chance e correu para longe, indo contra o ímpeto de desistir de sua vida ali naquele momento. Seu rosto além de inchado sangrava em demasia, todo o corpo doía e ele se questionava se Deus seria capaz de perdoá-lo pelo que estava prestes a fazer.

O sino continuava atordoando os sentidos da ruiva, que sequer conseguia manter-se de pé. De olhos fechados, ela não percebeu o momento em que um urso pardo aproximou-se da entrada da igreja e desferiu um golpe certeiro contra a campainha de metal. O fim das badaladas trouxe alívio para a mulher corvo e ela pôde ver o momento em que o grande animal marrom transmutou-se em Maritza, a loira de cachos trançados.

— Pare de brincar e faça logo o que tem que ser feito. — a mulher urso comentou com descaso. — Eu só presto um favor desses a cada cem anos, então não espere algo assim tão cedo. Ele correu para perto do lago.

Assentindo, Ravena correu na direção indicada pela irmã antipática. Mal conseguia sentir o chão sob os pés, tamanha era a velocidade em que corria. O calor do momento era tanto que ela sequer pensou que poderia transformar-se em corvo para chegar ao seu destino mais rapidamente. Ela tinha urgência em encontrar-se com aquela que figurava como objeto de sua busca por tantos anos.

Logo encontrou uma casa distinta das demais. Era maior e trazia maiores comodidades que a dos demais aldeões. Nada além do esperado para a morada de uma pessoa distinta como o bispo. A despeito da velocidade em que ela se encontrava, a bruxa fora obrigada a parar de imediato. Agora, era ela que portava uma expressão de espanto no rosto.

As labaredas queimavam de modo vigoroso e os tons de vermelho e laranja preencheram a visão de Ravena assim como o terror apossou-se de seu coração. O bispo segurava a tocha bem próximo à parede da casa, que aquela altura já deveria estar banhada em qualquer coisa que ajudasse a propagar o fogo.

— É a última vez que lhe rogo, deixe-nos em paz. — ele proferiu de modo choroso, enquanto as lágrimas escorriam soltas pelo seu rosto. A mulher não parecia lhe dar outra escolha, mas ele se odiaria para sempre se tivesse de dar continuidade àquela loucura. — Acredite em mim quando digo que eu sou o único que posso salvá-la e livrá-la do pecado ao qual ela está fadada.

— Nós não pedimos por esse dom, nós nascemos assim! — a ruiva gritou, desesperada com a possibilidade de sua busca de tantos anos se tornar em vão ao ser consumida pelas chamas implacáveis. — Que escolha o mundo nos deu? Que escolha o seu Deus nos deu? Somos perseguidas por sermos assim! Vivemos escondidas, com medo, tendo de ocultar nossa própria identidade pois sequer os astros nos aceitam como somos.

— Você poderia ter se arrependido dos seus pecados…

— E o quê? Me entregar para a Igreja e ser queimada viva, na esperança de obter perdão por um erro que não cometi? Na esperança de alcançar a vida eterna? — ela questionava de forma desesperada, tentando se fazer ouvir ao menos uma vez na vida. — Eu não preciso desse sofrimento gratuito, eu já nasci com direito à vida eterna.

— Eu não queria fazer isso… juro como não queria, mas você não me deu outra escolha! — em um último grito de desespero, Enzo jogou a tocha em direção à sua antiga morada.

Ravena assistiu, imobilizada pelo terror das chamas, o momento em que a tocha se chocou contra a porta de madeira, que incendiou de imediato. O fogo alastrou-se rapidamente, consumindo a casa em questão de segundos.

Enfurecida, a mulher corvo conjurou um de seus feitiços, repleto de ódio e de sede de vingança por privá-la de seu bem mais precioso. A fumaça preta assumiu um formato esférico sobre sua mão e foi jogada para dentro da casa em chamas. A bola escura desapareceu por uns instantes e reapareceu alguns segundos depois, realizando a trajetória oposta seguindo em direção ao bispo, agora revestida de chamas provenientes das labaredas quentes.

A bola de fogo atingiu em cheio o peito de Enzo e a força do impacto fez com que ele se chocasse contra uma árvore. O corpo já debilitado não suportou a fúria da bruxa e padeceu de vez. Agora, tudo que ela esperava era que sua alma aproveitasse a viagem somente de ida para o inferno.

Desconsolada, ela sentou-se ao chão enquanto observava as últimas estruturas da casa serem consumidas pelas chamas. Ela tinha uma chance, uma única oportunidade e havia desperdiçado. Amargura que tomava conta de si a seguiria por muito tempo, talvez por toda a eternidade que ela teria pela frente.

Inesperadamente, ela escutou o som de discretas passadas aproximando-se do local onde ela estava. Seu instinto de sobrevivência a orientava a manter-se alerta, mas ela já não se importava mais com o que pudesse acontecer consigo. Para ela sua caçada havia terminado e da pior maneira possível.

No entanto, de dentro da floresta surgiu uma menina ruiva e de expressão impassível. A criança não deveria ter mais que cinco anos de idade e Ravena reconheceria aquele tom rubro em suas madeixas mesmo que se passassem mil anos sem vê-lo.

— Quem é você? — a menina questionou levemente desconfiada da presença daquela mulher. Em seu íntimo, ela sentia que já se conheciam, mas por mais que forçasse a memória, não conseguia recordar-se onde.

— Não está me reconhecendo? — a mulher corvo questionou enquanto ria consigo mesma, incrédula de que uma alma condenada como a dela pudesse ser agraciada com uma benção. — O meu nome é Ravena, mas eu gostaria de vê-la me chamando de "mamãe”.

A menina arregalou os olhos, mas nada disse. Ela conseguiu enxergar na mulher a sua frente semelhanças físicas consigo mesma. Além disso em seu íntimo ela sabia que a ruiva diante de si falava a verdade, embora não soubesse explicar o porquê daquela sensação. Tudo que sabia era que se sentia invadida por um sentimento de proteção materna.

Quando a menina fez menção de virar o rosto, Ravena a segurou pelas bochechas de modo que ela não pudesse ver o corpo morto do bispo Enzo, seu pai. Por mais que ela fosse uma legítima bruxa, havia certas coisas que não deveriam ser mostradas a uma criança e o corpo parcialmente carbonizado do homem estava incluso nesta categoria.

— Diga-me querida, como se chama? — a mulher questionou de modo amável para a menina diante de si. Sua criança, arrancada de seus braços pela Igreja opressora e seus dogmas obsoletos.

— Circe.

— É uma sorte que você não estivesse em casa, seria muito para você fugir de um incêndio dessa magnitude. Ainda assim, está bem tarde, por qual razão você não estava em casa?

— Eu fico muito nervosa de ficar sozinha nessa casa. Às vezes saio para caminhar na floresta, mas papai me odiaria se soubesse disso. Por favor, não comente nada sobre isso com ele! — a menina requisitou de forma angustiada e em troca recebeu um menear positivo e confidente de sua suposta mãe.

— Circe, você gostaria de conhecer suas tias? Mamãe tem uma porção delas. — Ravena perguntou-lhe de modo doce, estendendo a mão para que a menina a segurasse. Após hesitar por uns instantes, ela deu-lhe a mão e ambas puseram-se a caminhar juntas.

— Papai me disse uma vez que vocês se escondem nas sombras. — a menina comentou de modo ingênuo, sem demonstrar medo ou insatisfação. Ela sequer parecia afetada com o incêndio da própria morada, o que já era a demonstração de um dos sinais de bruxaria nela. As bruxas costumeiramente não davam importância aos bens materiais. — Eu não quero viver escondida.

— Bom, isto é uma meia verdade, querida. Os homens acreditam que vivemos ocultas sob as sombras, mas não é bem assim. O Sol não nos permite caminhar entre os mortais. Mas ele não é lá muito inteligente. Além disso, somos muito boas na arte do disfarce. — a mulher corvo explicava enquanto caminhava de volta para o centro de Altïr, segurando uma das mãos pequeninas de sua filha. — Durante a noite, podemos demonstrar quem realmente somos. Mas durante o dia, nos infiltramos no cotidiano dos humanos sob uma outra forma.

Dito aquilo, ela afastou-se alguns passos da criança ruiva e transmutou-se num corvo. A menina olhou para a mudança súbita maravilhada com aquele tipo de magia. Instigada a fazer o mesmo, ela fechou os olhos, se concentrou por um instante e deixou que o feitiço fluísse do fundo de sua alma. Quando abriu os olhos, ela percebeu que encontrava-se em um plano mais baixo.

O corvo planou baixo, quase rente ao chão até a beirada do lago e Circe a seguiu de modo empolgado. Mirando seu reflexo naquelas águas calmas, ela vislumbrou qual seria seu disfarce a partir de então: uma raposa da cor de carmim. Olhando para o lado, ainda confusa com tantas informações novas, ela viu que Ravena estava novamente em sua forma humana. Infelizmente, ela não poderia se manter assim por muito tempo. O Sol já dava sinais de vida junto ao horizonte.

Circe precisou concentrar-se novamente para voltar à sua forma original. As duas deram as mãos e caminharam juntas ao encontro de suas irmãs. O dia estava amanhecendo, mas não havia um único morador da antiga aldeia para recepcioná-lo. Todos foram sacrificados para apaziguar o desejo de caça das bruxas.

— Aonde estamos indo? — a menina questionou, dirigindo um olhar curioso e ao mesmo tempo empolgado para sua recém conhecida mãe.

— Para casa, minha querida. — Ravena respondeu com simplicidade, portanto um genuíno sorriso de felicidade no rosto.

— E onde isso fica?

— No lugar onde nós formos mais felizes.


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Notas finais do capítulo

Nota: esse último diálogo entre a Ravena e a Circe é uma pequena homenagem minha a um dos meus filmes favoritos sobre o tema, que é abordado de modo bastante divertido e nostálgico. Aos interessados, esse pequeno diálogo foi extraído do filme "A Feiticeira".

Conforme informado nos avisos, este conto faz parte do Desafio dos Escritores do grupo Caneta Tinteiro. Faz um bom tempo desde a última vez que ousei escrever algo voltado para a literatura fantástica e confesso que gostei do resultado. Agora resta saber se vocês também gostaram, seus comentários, críticas e sugestões são todos muito bem vindos!

Deixo aqui um agradecimento especial à Milla Moura, que corrige todas as minhas crases (eu juro como vou tirar um tempo para estudar melhor esse assunto) e está sempre acompanhando meus projetos de pertinho ♥



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