Mar escrita por Mahii


Capítulo 3
Maré Alta


Notas iniciais do capítulo

Nesse cap, nós voltamos à cena do primeiro, onde eles estão na praia conversando.
Boa leitura!



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A praia já estava tingida de laranja, assim como nossos corpos e todo o resto.

—- O que 'tá pensando aí tão concentrado? -- sua voz invadiu meus ouvidos, me despertando daquela memória tão dolorosa.

—- No dia em que você conheceu a Carol -- sorri forçado. Eu me arrependia amargamente de não ter sabotado o relacionamento deles naquele dia. Podia ser que nem tivesse existido. Eu tive esse poder nas minhas mãos e desperdicei.

—- Lembra disso? -- ele retirou a cabeça das minhas pernas, se sentando ao meu lado e olhando na direção em que o sol se punha -- Parece que faz tanto tempo, mas não tem nem dois anos! Eu sinto que a conheço há uns 30 anos, sei lá... É estranho como o amor funciona.

—- "Amor"? -- franzi o cenho -- Esse não é o seu primeiro relacionamento? Você fala como se tivesse muita experiência! -- me coloquei de pé, cruzando os braços e olhando para o céu.

—- Não seja mau comigo -- deu risada de novo, se levantando e passando um dos braços pelos meus ombros -- O amor pode aparecer de várias formas diferentes. Eu amo várias pessoas, então eu entendo isso um pouco.

—- Eu não entendo o amor, e muito menos a paixão -- fiz um bico com os lábios, me desvincilhando do meio abraço.

—- É bom de sentir -- ele tocou meus ombros com as duas mãos, me virando pra ele -- Dandan, promete que não vai sumir?

—- Quê? -- desviei o olhar -- Não posso prometer isso.

—- Se eu te ligar, vai atender o telefone?

—- Não gosto de falar por telefone... -- falei baixo, mas ele ouviu bem.

—- Vai responder minhas mensagens?

—- Eu não gosto de falar por mensagem.

—- Não some, 'tá? -- me soltou, respirando fundo -- O sol já se pôs, nós podemos entrar agora.

Voltamos em silêncio.

Assim que chegamos ao hotel o Renato foi interceptado pelos outros convidados do casamento, os caras estavam animados com a tal "despedida de solteiro" e ele acabou sendo contagiado. Não o vi mais. O domingo chegou e eu preferi me arrumar sozinho no quarto que dividia com meu pai. Quando dei por mim, estava entrando no salão matrimonial, ao lado de uma mulher desconhecida., no meio da cerimônia de casamento.

Haviam cerca de cem pessoas sentadas, todas sorriam e olhavam na minha direção, foi assustador. Após todos os padrinhos e madrinhas terem entrando, vi o Renato. Ele parecia tão, tão feliz, que pareceu mais fácil aceitar que estava partindo. Estava indo em direção à essa felicidade. Logo vinha a Carol, vestida de branco e sorrindo ainda mais que qualquer outro presente.

Por outro lado, a sensação que aquela cerimônia me passava, era parecida com a de um funeral.

Me senti tão deslocado.

O tempo passou como um borrão, e eu fugi do Renato o máximo possível durante o almoço de casamento. Não foi difícil, já que todos pareciam querer falar com ele. Eu olhava de longe, não conseguia despregar meus olhos dele. Não entendia, eu não entendia nada do que estava acontecendo. Por que as pessoas se casavam? Por que ficavam tão felizes sendo que o Renato iria morar em outro estado com uma desconhecida? Isso parece horrível. Os pais dele, os outros amigos que tem, os parentes... Eles não exergam o quanto é estranho? Não enxergam que ele está partindo e nunca mais vai voltar?

—- Você vai ao aeroporto de tarde? -- meu pai acabara de voltar para a mesa. Havia estado o tempo todo conversando com os pais do Renato.

—- Não sei.

—- Você pode ir com o carro, eu vou voltar com os pais dele, já combinamos, tem lugar pra mim -- ele falava distraído, comendo alguns petiscos de um prato em suas mãos.

—- Hum... -- entortei os lábios, em dúvida.

—- Você já deu os parabéns pelo casamento?

—- Não -- olhei para baixo, incomodado com a conversa.

—- Eu não entendo. Vocês brigaram? Achei que fossem melhores amigos, mas está aqui no canto, como se estivesse entediado -- havia um tom crítico na sua voz, mas eu já estava acostumado.

—- Eu não gosto de festas, de lugares com muita gente -- olhei em volta, constatando que realmente não era pra mim.

—- Eu sei, filho. Mas achei que seria diferente, por ser seu melhor amigo.

—- Não é diferente.

—- Hum... Mas vá no aeroporto, pode se arrepender se não dor. Depois disso, não sabemos quando vai vê-lo de novo, né? Porque ele vai direto para Santa Catarina e vai estar sem dinheiro -- deu uma pausa, comendo.

—- É... -- olhei para as minhas mãos, respirando fundo.

Eu não queria mais vê-lo.

Não podia.

No aeroporto, essa tinha que ser a última vez.

A festa acabou por volta das 14 horas, os noivos seguiram em um carro com motorista, saindo do litoral e indo até o aeroporto em São Paulo. Eu fui logo atrás, dirigindo o meu carro, pensando que parecia inútil aquela "despedida" a qual eu buscava. Provavelmente não conseguiria dizer nada, como sempre, não é? De que adiantaria ir vê-lo antes do embarque?

Ainda assim, iria dar uma chance.

Felizmente, o aeroporto estava vazio naquele domingo. Eu entrei alguns minutos depois deles e, perto da área de embarque, após alguns poucos instantes os encontrei. A Carol estava rindo e conversando com a família dela, o Renato ao lado da esposa. Não quis me aproximar, seria incômodo ficar perto daquelas pessoas que eu não conhecia direito e estavam tão animadas. Hesitei por tanto tempo que ele acabou me percebendo ali, parado no meio do salão.

Me senti estúpido e quis voltar, mas ele me alcançou antes que eu pudesse fazer isso.

—- Você veio! -- ele correu ao meu encontro, sorrindo aliviado.

—- Hum.

—- Eu achei que não viria. Por que não atende o telefone? -- ele segurava seu celular com força nas mãos.

—- Telefone...? Deve estar no vibra-call -- coloquei as mãos na cintura, respirando fundo novamente.

—- Já 'tá começando mal, hein -- apertou os lábios, parecendo tentar forçar uma cara feliz.

—- Desculpe. Ahn... Já está com as roupas preparadas para o caribe? -- perguntei com humor, apontando para a camisa florida e o colar de flores em volta do pescoço.

—- Foi ideia da Carol, claro -- tocou meus ombros com ambas as mãos, me trazendo para perto -- Como você 'tá?

—- Bem, vou ficar bem, ué -- olhei nos olhos dele, me perguntando se conseguiria ver que estava mentindo.

—- A gente se conhece há mais de 23 anos, Dandan. Sabia que eu me lembro da primeira vez que nos vimos? -- passou a acariciar onde tocava, movendo os dedos devagar.

—- Se lembra? -- franzi as sobrancelhas, nunca havíamos falado disso -- Eu também me lembro. Minha mãe disse repentinamente, "um menino vai dormir aqui hoje". Eu nem sabia quem você era.

—- Eu também não. Eu tinha apenas cinco anos, era a primeira vez que dormia fora de casa -- sorriu terno -- Nossas mães foram muito loucas, mas fucionou, né?

—- É. Eu já era antissocial naquela época, provavelmente se não fosse algo doido assim, não teríamos nos tornado amigos -- fiquei sério, incapaz de sustentar um sorriso falso por tanto tempo.

—- Eu te adoro, Danilo. Sabe disso, né? -- ele falou baixo, carinhoso.

—- Sei -- fui convencido, mas eu realmente tinha certeza daquilo. De que outra forma ele aguentaria um chato como eu?

—- Então, você não vai me abandonar, né?

—- Eu te abandonar? Parece que o contrário está acontecendo -- falei calmo, apenas constatando um fato.

—- Não, não diz isso. Nós vamos manter contato, não vamos? Você... Tem que fazer isso, por favor -- uma de suas mãos subiu pelo meu pescoço e ele tocou meu rosto, arrastando o dedão pela bochecha vagarosamente.

—- Eu vou tentar -- menti de novo. Será que ele percebia?

—- Quando puder, eu venho pra São Paulo, nos feriados, sempre que der. Ok? Estamos combinados?

—- Certo -- torci internamente para que ele não viesse.

Nós dois, passando tanto tempo separados... Ele voltaria como uma pessoa completamente diferente, não é? Com o casamento, a vida em outra cidade, outro trabalho, outros amigos, outra família... Seria ainda mais doloroso olhar pra ele e não reconhecer o Renato de sempre. Eu conseguiria me aproximar dessa nova pessoa que ele se tornaria? Provavelmente não.

—- Ei, Dandan -- ele aproximou mais o rosto, olhando nos olhos com atenção. Ele sabia. Sabia que eu pretendia evitá-lo -- Não seja teimoso, 'tá bom?

—- Isso é impossível pra mim, você sabe.

—- Sei -- sorriu triste e observei uma lágrima escorrer -- O seu rosto... -- ele continuava a dedilhar minha pele -- Eu nunca tinha percebido que essas três pintinhas formavam um triângulo.

—- Formam? -- nem mesmo eu sabia.

—- É fofo -- ele se abaixou alguns centímetros e me abraçou com força.

—- E-Ei, Renato! -- bati nas costas dele.

—- Abraça de volta, vai, nunca te pedi nada -- seu tom de voz não era engraçado. Parecia... Ele estava chorando.

—- Certo -- rodeei a cintura dele com os braços, sentindo aquele calor que eu não era acostumado a sentir.

O corpo de todas as pessoas é quente assim?

Meu segundo abraço em toda a vida.

—- Se você não puder falar, mesmo que fique em silêncio, me liga, atenda as minhas ligações, por favor. Me deixa ouvir sua respiração, que seja, apenas me escute -- ele me apertou ainda mais -- Por favor, Dandan, não some.

—- Eu vou tentar -- mentira, eu não ia sequer tentar.

— Sim, tenta, por favor -- ele sabia que eu não ia -- Eu te adoro, do jeitinho que você é, sempre adorei. Mas hoje, só hoje, eu queria que fosse um pouco diferente, só um pouquinho...

—- Eu queria poder ser diferente disso, mas é apenas o que eu tenho. É só isso que posso oferecer -- meus olhos arderam, estranhamente -- Obrigado por ficar satisfeito com isso, por me aceitar.

—- O quê? Eu tive o privilégio de conhecer a pessoa maravilhosa que você é, eu fui o único que conheceu quem você é de verdade -- ele se separou apenas o suficiente para olhar no meu rosto -- Eu é que agradeço, Dandan. E para com esse papo, até parece que nunca mais vamos nos ver.

—- Nunca se sabe -- olhei para baixo, não querendo que ele visse meus olhos marejados.

—- Para com isso -- ele mergulhou o nariz nos meus cabelos, inspirando fundo.

—- O quê...? O que 'tá fazendo?

—- Seu cheiro -- ele desceu o nariz para o meu pescoço -- Eu nunca pude me aproximar o suficiente pra sentir.

—- Hum... -- timidamente, com uma curiosidade que nunca mais poderia ser sanada, inspirei mais forte, o cheirando também.

—- Como eu pensei, é cítrico -- ele levantou o rosto, me olhando novamente -- Eu te dei um perfume com toque cítrico há uns 10 anos atrás. Ainda usa?

—- Bem, sim. É que eu gostei do cheiro, e acabei comprando de novo, e de novo e... -- me senti envergonhado por ter conscientemente escondido isso.

—- Fico feliz de saber disso -- ele apartou o abraço, enfiando a mão no bolso da calça -- Tenho algo pra te dar.

—- Ah, não precisa -- eu sempre negava presentes.

—- É uma corrente de amizade. Parece bobo, não é? Eu fiquei em dúvida se devia ou não te dar isso, mas... -- ele exibiu a corrente prateada, bem na frente do meu rosto -- Você viu o pingente? É uma gota, eu pensei que seria como a gota do mar. No mar, na praia, você também sente algo diferente quando estamos juntos, né? É algo só nosso, por todos esses verões em que viajamos junto com nossas famílias.

—- Ah... Eu... Obrigado -- eu senti meus olhos ficarem ainda mais úmidos.

—- Já coloquei a minha -- ele puxou a jóia de dentro da camisa, exibindo o pingente -- Vou ajudar a colocar a sua, ok?

—- Tudo bem -- virei de costas, para facilitar o processo.

—- Isso é de prata, então não precisa tirar pra nada. Eu nunca mais vou tirar também -- ele permaneceu atrás de mim e puxou o celular do bolso -- Vamos tirar uma foto?

—- Não, eu não estou com cara pra foto! -- tapei meu rosto com as mãos.

—- Vamos, por favor.

—- Hum -- acabei concordando, olhando para o obturador e forçando um sorriso.

A foto deveria ser feliz, mas nossos rostos pareciam...

—- Pronto. Eu estou atrasado, tenho que ir -- o rosto dele se dobrou numa feição dolorida, e outras lágrimas escaparam -- Eu tenho que ir.

—- Deveria estar sorrindo. Não ama a Carol? Não está realizando seu sonho de se casar e ter uma família? Sorria -- fui um pouco cruel, talvez, mas eu estava machucado -- Pode ir, ou vai atrasar sua viagem de lua de mel.

—- Não some, Dandan.

—- Eu ainda estarei aqui, do mesmo jeito de sempre.

—- Eu te amo, cara -- deixou um beijo na minha testa, ficando com os lábios colados na pele por longos segundos -- Ouviu isso? Eu te amo -- e finalmente se afastou.

Ele deu as costas.

Eu não vi mais o rosto dele.

O casal entrou na área de embarque no mesmo minuto, e eu fiquei lá, parado, olhando na direção em que haviam ido como um bobo.

Eu devo ter ficado ali em pé, olhando para o nada, por longos minutos, horas talvez. Eu perdi a noção do tempo.

Não sabia pra onde ir.

Não sabia o que fazer.

Não sabia nem como respirar.

Sequer sabia o que estava sentindo.

Eu olhando para dentro do meu íntimo e via um grande vazio. Estava oco. Sem vida. Não havia nada. Não era tristeza, era apenas nulo. Zero absoluto.

Parecia que os poucos sentimentos que eu tinha, tão sutís e inconscistentes, haviam ido embora junto com o Renato.

—- "Alô? O que foi filho?"

—- Vem me buscar. Eu não consigo dirigir o carro -- falei calmo, olhando para a chave ignição.

—- "O que aconteceu? Você 'tá bem, Danilo?"

—- Estou no estacionamento do aeroporto -- desliguei o celular e terminei de me esparramar no banco do carona.

Olhei para o céu azul, sem nuvens, e vi um avião decolar. Será que era o avião do Renato e da Carol? Eu não tinha como saber, então tomei como se fosse. Uma lágrima atrevida rolou pela minha bochecha. Apenas uma. Podia parecer pouco, mas aquela lágrima solitária era tudo que eu tinha. Para uma pessoa como eu, significava muito.

Peguei a corrente que ele havia me dado, estendendo o pingente até a frente dos olhos. Ele disse que era uma gota do mar? Para mim, aquele formato melancólico de gota seria sempre a representação da única lágrima que pude derramar pelo meu amigo. Ou por qualquer pessoa. Quando chorei copiosamente alguns anos antes, próximo a morte da minha mãe, eu chorava por mim mesmo. Hoje, era por ele. Talvez houvesse um mar inteiro para chorar dentro de mim, mas eu não tinha essa capacidade, não haviam válvulas que permitissem a saída.

—- Renato... Ele morreu -- falei comigo mesmo, prometendo que seria a última vez a falar aquele nome. "Já era, Danilo, você deve aceitar." Agora era apenas eu, num planeta Terra ao qual eu sentia que não pertencia.

 


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Notas finais do capítulo

E isso é tudo, por hora. Dependendo do apoio de vocês, irei escrever mais 3 capítulos, sobre o que aconteceu depois dessa separação.
Ah, gente, eu quase chorei escrevendo isso. Minhas histórias são sempre tão cheias de comédia, foi bom variar um pouquinho.
Até mais, pessoal!
Não se esqueçam de comentar (principalmente se quiser a continuação), favoritar, recomendar, sei lá o que mais e
^3^ Kisus~~



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