Mar escrita por Mahii


Capítulo 2
Refluxo


Notas iniciais do capítulo

Oie, beleza? Cá estamos nós.
O título do capítulo se refere ao refluxo do mar, as correntes de retorno que levam a água de volta ao oceano.
Nesse capítulo veremos um pouco do passado.
Boa leitura!



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O primeiro abraço que eu recebi foi logo após ter chorado pela primeira vez, tudo aos 19 anos de idade. Não é como se eu nunca tivesse recebido um abraço quando criança -- embora desde sempre, segundo as histórias dos meus pais, eu fugisse desses contatos -- ou como se eu nunca tivesse chorado -- embora eu não considere aquelas lágrimas solitárias como choro -- é só que, daquela vez, eu tive certeza disso tudo e foi realmente desesperador.

O mais triste foi que, mesmo chorando copiciosamente e aceitando aquele abraço tão apertado para alguém como eu, ainda me sentia tão oco.

Eu estava arrumando minha gaveta de meias, seguindo a cor e o tamanho, quando a porta do meu quarto foi aberta por uma tia. Estranhei que ela tivesse entrado em casa daquele jeito, e estranhei ainda mais a cara de horrível que ela estava fazendo. Lhe dei as costas, continuando a dobrar as meias, esperando que falasse alguma coisa.

—- S-Sua... Sua mãe... -- sua voz saiu tremida e chorosa -- Sua mãe foi atropelada, Danilo. Seu pai já foi para o hospital e... E parece que é grave, ela pode não sobreviver.

Pisquei devagar, parando o que fazia e encarando minhas mãos. Elas não tremiam e mesmo meus batimentos continuavam no mesmo ritmo de antes. Aquela revelação não teve qualquer impacto sobre mim. "Tão normal, milhares de pessoas são atropeladas todos os dias. Não tem nada de especial sobre isso, e não tem nada que eu possa fazer para mudar esse fato.", foi o que eu pensei, entortando os lábios e continuando a dobrar as meias.

—- Danilo...? -- ela esperou alguns segundos, fungando -- Vamos para o hospital, talvez consigamos falar com ela, disseram que está acordada. Eu posso te levar de carro, seus primos vão também.

—- Hum... -- pensei por alguns segundos, olhando para o monte de meias que faltavam dobrar -- Eu vou depois.

—- Oi? Como? -- pareceu irritada, no meio do seu estado lamentável.

—- Pode me deixar sozinho agora? -- a olhei de soslaio, sentindo repulsa da sua expressão facial. Parecia com um monstro da tristeza, ou algo assim, não queria olhar para aquilo.

—- Você...! Tudo bem. Eu espero te ver no hospital mais tarde -- saiu, fechando a porta. Parecia decepcionada.

Eu menti sobre ir ao hospital "mais tarde". Naquele momento eu logo pensei que não queria olhar para minha mãe depois de ter sido atropelada. Seu rosto, seu corpo, poderiam estar deformados e ensanguentados, e isso parecia asqueroso. Além de que, eu não seria muito útil por lá, não a abraçaria, não choraria, não diria que a amo, todos me olhariam feio e minha reputação dentro da família apenas pioraria. Era melhor terminar de organizar minhas meias.

Eu tomei como verdade que, dali algumas horas ela estaria morta, algo normal no mundo em que vivemos, nada de especial. Apenas seria péssimo porque eu não sabia como meu pai reagiria, e seria incômodo ter que lidar com uma pessoa deprimida, ele era tão sentimental que me assustava às vezes.

—- É uma pena não ter irmãos numa hora dessas... -- lamentei, pensando que seria mais fácil apenas mandar "irmãos" para o hospital e depois para lidar com nosso pai, que acabara de perder a esposa.

No fim, minha mãe não sobreviveu por muito tempo após o acidente, foram apenas algumas horas agonizantes. Meu pai me ligou do hospital e deu a notícia, "Sua mãe faleceu", sua voz soou baixa e melancólica, deixando um longo silêncio como se esperasse alguma reação minha. O que eu respondi foi algo como "Ok" ou "Entendido", indo em seguida preparar meu jantar. "Já que ela não estará mais aqui, é bom tentar cozinhar ao menos o básico."

Não é como se eu não estivesse triste, eu apenas demonstro e sinto de uma forma diferente -- mesmo que eu ache que realmente era desprovido de amor pela minha progenitora -- e quase imperceptível. Esse episódio apenas me fez questionar minha sanidade, mas não foi capaz de me tirar uma lágrima sequer -- o motivo pelo qual eu chorei ainda viria.

No dia seguinte, pela noite, eu recebi uma visita em casa. Era o meu melhor e único amigo, a pessoa que eu exclusivamente aturava e gostava em todo o mundo -- eu não me dava conta disso na época. Ele estava com os olhos vermelhos e chegou junto do meu pai, depois do enterro da mamãe. Logo percebi que esse amigo, o Renato, fora quem estivera dando todo o apoio que meu pai precisava. Eu os observei atravessar a sala e ir em direção aos quartos, para então o Renato voltar sozinho e se sentar ao meu lado. Ele fungou o nariz e parecia me analisar.

Eu fiquei logo muito nervoso, pensando que ele iria me tomar por uma pessoa sem coração, ou brigar comigo. Quero dizer, minha mãe estava morta há dois dias e eu assistia TV e comia doces como se nada tivesse acontecido. "Isso era normal? Eu era normal?", as dúvidas que me acompanharam durante toda a minha vida voltavam numa velocidade absurda e nada saudável. Vi o rosto do meu amigo de infância tão abatido,e achei incrível o fato dele conseguir se sensibilizar tanto com a morte de alguém que sequer era da sua família.

Ele estaria chorando por mim? Fazendo o que eu não conseguia?

—- Dandan... Você 'tá bem? -- ele perguntou tão calmo e preocupado, não me julgava nenhum pouco.

Longos minutos se passaram. Eu adorava o modo como ele sempre me dava o silêncio de que precisava, respeitando o espaço tão grande que eu impunha entre eu e o mundo. E ter ele do meu lado bem naquele momento, foi crucial para que eu começasse a entender o que era gostar de alguém.

Meus olhos ardiam cada vez mais e um desespero tomou conta do meu interior. Logo eu estava soluçando e meus olhos pareciam jorrar água. Aquilo era chorar, então? Aquela sensação... Sem ar e sentindo seus músculos se contrairem, a barriga ardendo e um grande bolo na garganta. Eu estava assustado e aposto que o Renato que me conhecia tão bem, ficou ainda mais assustado.

A primeira vez em que eu chorava.

E ainda por cima, estava sendo visto por alguém.

Senti seus braços rodearem meu corpo, me apertanto num abraço. Eu já estava pronto para empurrá-lo, mas percebi que não era asqueroso. O seu abraço, unicamente seu abraço, unicamente seu cheiro e seu calor... Parecia bom. Aceitei o carinho.

A primeira vez em que eu recebia um abraço.

—- Ei, Dandan, sua mãe- -- ele ia falar algo sobre aquela mulher, mas logo o cortei.

—- Não! Não é por isso que estou chorando! -- quase gritei, me agarrando no seu corpo.

—- Hum? -- pareceu perdido, tocando meus cabelos e falando próximo à minha orelha.

—- É que... Quão errada uma pessoa pode ser? -- falei num único fôlego, tentando controlar o choro -- Renato, minha mãe morreu e eu não consigo sentir nada. Eu não sinto nada.

—- Como assim, Dan? -- ele segurou meu rosto, me fazendo encará-lo.

—- Eu não sinto! Não estou sentindo nada! -- sacodi seu corpo levemente, arregalando os olhos -- Eu não estou triste, eu não estou com raiva, eu não estou feliz, eu... Eu devo ser horrível, Renato! Eu sou horrível!

—- Não, não, não diz isso -- ele sorriu de lado, aproximando o rosto do meu -- Você sente sim, do seu jeito. Não somos todos iguais, sabia? Não existem regras sobre como devemos nos sentir.

—- Ela sempre foi tão boa comigo, mesmo eu sendo desse jeito frio, ela me amava, Renato, enquanto eu... Eu realmente nunca senti amor por ela. Eu sequer sei o que é sentir isso -- solucei, voltando a esconder o rosto -- Sou um monstro!

—- Não, Dandan. Você é diferente, só isso. Mesmo que não a amasse, eu sei que tinha um grande carinho e respeito por ela, isso já vale muito. Todos temos nossas limitações, e eu te acho uma pessoa linda e única -- voltou a falar doce e, de algum modo o meu primeiro abraço se estendeu por longos minutos.

Ao mesmo tempo em que eu percebia, de fato, o quanto era diferente das outras pessoas, eu descobria que aquele na minha frente me aceitava, do jeitinho que eu era.

"Eu amo o Renato."

Os anos foram passando e eu não mudei quase nada, nem mesmo chorei depois daquela noite. Passando frequentemente no psicólogo aprendi a me aceitar, e a certeza de que a única pessoa que eu seria capaz de gostar na vida era o Renato só aumentava. A única pessoa com quem eu trocava mais de duas palavras, com quem eu me abria, com quem eu imaginava qualquer futuro e com quem eu gostava de sair.

"Um dia, ele iria embora?", era um pensamento que me balançava muito mais do que qualquer outra coisa. Mas o momento, inevitavelmente, chegou.

Uma sexta-feira, eu tinha acabado de fazer 26 anos, comemorei apenas com o Renato e meu pai, em casa, algo simples. No dia seguinte chamei meu amigo para vir em casa, eu tinha algo muito bom para mostrar. Havia visto um apartamento perfeito para nós no centro de São Paulo e não ficava tão longe da casa do meu pai. Eu tinha até mesmo entrado em contato com a imobiliária e separado uns planfetos e plantas, junto com o contrato para mostrar para o Renato. Eu não parava de sorrir, animado, querendo ver qual seria a cara dele ao ver aquilo.

Finalmente éramos adultos e tínhamos dinheiro para dar continuidade ao nosso plano.

Deixei os papéis na sala e fiquei esperando que chegasse.

Ele demorou, se atrasou mais que o previsto.

—- Dandan, você não vai acreditar! -- ele adentrou a sala eufórico, sorrindo de orelha à orelha.

—- O que foi? -- arqueei uma das sobrancelhas, apreensivo.

—- Conheci uma garota incrível hoje! Quem sabe a minha futura esposa, finalmente! O nome dela é Carol, tem 26 anos igual à gente e...

Minha mente parou de ouvir naquele ponto.

Uma "garota incrível chamada Carol" havia entrado na vida dele, e eu não me lembrava de tê-lo visto tão feliz assim antes. Ele falava que estava bem sobre ser um eterno solteiro, mas será mesmo verdade? Agora, eu tinha certeza que esse tempo todo ele apenas havia mentido. Ele falava da Carol como se tivesse ganhado na loteria, como se finalmente sua vida estivesse tomando rumo. Eles namorariam? Se casariam? Teriam filhos? E eu... Como eu ficaria nessa história?

"Ele finalmente ia me abandonar", foi o que pensei, racionalmente.

Disfarçadamente, reuni os papéis sobre o apartamento, os amassando na minha mão. Um grande bola de papel. Eu estava tão envergonhado de ter preparado aquilo. O que eu faria para despistar o corretor de imóveis agora? Que embaraçoso! Eu sou tão idiota às vezes. Realmente acreditei que isso aconteceria? Porque ele escolheria passar a vida ao meu lado? Ele não é como eu, ele é uma pessoa normal, ele quer namorar, casar, e todas essas outras coisas.

—- ...e então... O que é isso que você amassou? -- notou o que eu havia feito, mesmo que eu tivesse sido discreto.

—- Isso? -- encarei os papéis, sorrindo fraco -- É só um monte de lixo.

—- Ah, certo. Continuando o que eu estava dizendo -- ele manteve o sorrisão no rosto e veio se sentar ao meu lado -- O único problema é que ela é de Santa Catarina e estava apenas visitando São Paulo. Ela me deu o número de telefone e é tudo que eu tenho pra manter contato. Acha que eu deveria ligar agora? Ou amanhã? Ou então mandar uma mensagem? Estou ansioso.

—- Eu... Eu não sei, não entendo dessas coisas -- apertei ainda mais os papéis da imobiliária. Mesmo que não admitisse, eu estava com raiva. Não raiva do Renato, mas da situação.

—- Nem eu! -- deu risada, tirando as coisas do bolso e colocando na mesinha de centro -- Só um minuto, vou no banheiro!

Ele se levantou e seguiu sem pressa em direção ao banheiro. Ouvi o barulho da porta se fechando e meus olhos seguiram direto para a meseinha. Bem ali nas coisas dele... O celular, a carteira e um pedaço de papel com um número de telefone e o nome "Carol", numa letra que não era a dele. Meu coração acelerou e quando me dei conta o papel estava na minha mão.

Eu deveria rasgar?

Guardar no meu bolso?

Queimar no fogão?

Jogar pela janela?

Colocar no congelador?

É claro que o Renato ficaria arrasado, afinal sua única chance de ter uma namorada teria se perdido para sempre, mas ele sobreviveria. E então, poderíamos prosseguir com nosso plano, não é? Parecia uma boa ideia. Eu quis muito dar um fim ao papel. Naqueles poucos segundos, minha mente ficou tão agitada que não pude pensar direito e não tive coragem de fazer nada. Achei que eu não tinha o direito de interferir. Apenas coloquei o bilhete de volta e suspirei.

Ao invés de destruir o papel onde estava o número da "futura esposa", eu me levantei e joguei os nossos planos no lixo. Mas eu não os destruí sozinho, fizemos isso juntos naquele dia.

 


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Notas finais do capítulo

E então... Eu realmente fico triste com esse capítulo. Espero que esteja passando as emoções certas para vocês.
Não se esqueçam de comentar e até o próximo! Na próxima sexta tem mais.
^3^ Kisus~~



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