Estado de amor e de sonhos escrita por Camila Maciel


Capítulo 52
CAPÍTULO52




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CAPÍTULO52

    Chapecó estava sentada de frente para a médica Ana Luísa, no
consultório; havia chegado a hora, ela iria abrir para a doutora o
segredo que jamais teve coragem de revelar à ninguém:
— Doutora - começou ela -, a senhora sabe o motivo pelo qual eu estou
aqui, tentando engravidar pelo método artificial! Eu... bem, eu namoro
outra moça, nós estamos dando um tempo agora mas não terminamos!
— Sim, querida, eu sei!
— Desde muito pequena, doutora, eu sempre fui vaidosa, sempre gostei de
me enfeitar como uma menina normal, mas me sentia diferente das minhas
colegas! Me tornei adolescente, minhas amigas começaram com os seus
namoricos de colégio, foi aí que eu comecei a sentir que o corpo
feminino me atraía! Eu comecei a me sentir um monstro por causa disso,
principalmente depois que meus pais morreram; só que com o tempo eu fui
repreendendo esse sentimento e coloquei na minha cabeça que não havia
nada errado comigo!
    A doutora Ana Luísa ouvia com atenção, com serenidade:
— Eu tinha dezoito anos quando eu decidi contar pra minha família; a
essa altura eu já tinha perdido meus pais, já morava com uma tia e
sofri muito naquela casa! Não via a hora de chegar à maior idade e ir
embora de lá! No dia em que eu contei pros meus tios sobre a minha
orientação sexual, a minha tia me disse com todas as letras que se minha
mãe estivesse viva, ela teria vergonha de ter uma filha como eu!
As lágrimas vieram implacáveis, e mesmo chorando, Chapecó tinha que
continuar de onde parou:
— Eu apanhei, doutora, eu apanhei do meu tio, o meu pai nunca tinha me
encostado a mão! E depois que ele me bateu, ele disse que se eu não
gostava de homem como tinha que ser, ele ia me ensinar a gostar nem que
fosse na marra, apanhando! Nesse dia ele me forçou; me levou para uma
casa abandonada que a gente tinha lá na fazenda e eu tive a minha... a
minha primeira relação!
    Ana Luísa já trabalhava a alguns anos, e jamais havia ouvido uma
história tão absurda. Ela agora segurava a mão de sua paciente:
— Eu fiquei grávida, doutora - continuou Chapecó -, eu engravidei do meu
tio, e a minha tia sabia que era dele! Ela se mostrou muito prestativa,
só que na verdade era tudo uma farsa! Ela começou a fazer todos os
dias um chá com algumas ervas, mandava que eu tomasse e dizia que era
pra segurar o meu bebê; eu não sabia nada disso, obedecia, cega, acreditando
que ela realmente queria o meu bem, o bem do meu filho! Ela não teve
filhos com o meu tio, dizia que criaria o meu como se fosse dela, só que
dias depois eu perdi meu bebê!
    Ana Luísa estava chocada; jamais havia sentido vontade de chorar
durante uma consulta, diante de uma paciente, mas a lágrima caiu e foi
inevitável. O suspiro de Chapecó ao terminar de falar demonstrava o
quanto aquela história pesou em sua vida durante tanto tempo; ela agora
soluçava diante da médica, só queria jogar aquela dor toda pra fora.
    - Doutora - continuou a moça agora mais calma -, depois eu acabei
descobrindo que o tal chá era uma mistura de ervas pra me fazer abortar,
perder o bebê! Por isso eu tenho medo, medo de não engravidar, medo de
ter ficado com algum problema por causa desse aborto, que
involuntariamente eu acabei provocando, induzindo!
A secretária bateu na porta e entrou em seguida; entregou o copo com
água para a doutora e saiu educadamente. Ana Luísa passou o copo para a
mão de Chapecó:
— Olha só, minha querida - continuou a médica, pacientemente -, não há
motivo nenhum pra você ter tanto medo; nós fizemos exames antes de
iniciar o tratamento, você pode ter quantos filhos quiser, na hora que
quiser sem nenhum problema!
— Doutora, só de ter conseguido te contar essa história, essa história
que me envergonha tanto, eu já me sinto melhor!
— Joinville sabe disso?
— Não, eu nunca tive coragem de contar pra ela! As vezes ela dormia lá
no flat comigo, eu acordava no meio da noite me sentindo angustiada, eu
tenho pesadelos com o meu tio, doutora Ana! Nessas horas eu morria de
vontade de acordar Joinville, me abraçar a ela, chorar tudo o que eu
tivesse pra chorar e contar pra ela! Mas agora eu me sinto melhor; agora
eu sinto que me livrei desse peso que me perseguiu desde os meus dezoito
anos!
— Então? Vamos pra mais uma etapa?
    Naquela manhã, Chapecó deixou o consultório de Ana Luísa sentindo-se
livre de um peso; conseguiu abrir seu coração para a doutora, agora ela
sabia que o aborto de anos atrás não iria prejudicá-la.
    Todos os anos, a escola onde Jaraguá e Palhoça estudavam promovia
uma festa de fim de ano para os alunos e os pais; e não seria diferente
naquele ano. Faltava um mês para o fim das aulas e todo mundo já estava
animado para esse momento:
— Você vai, né, mãe? - insistia Palhoça, na hora do almoço:
— Não sei, meu amor - respondeu Florianópolis -, seu irmão ainda é muito
pequeno, vamos ver até lá!
— Ah, mãe! A Márcia cuida dele!
— Vamos ver até lá, filha! E falando em escola, eu espero não ter
nenhuma surpresa com o seu boletim, senhorita!
— Relax, mãe!
— Sei!
Joinville e Jaraguá ouviam a conversa, em silêncio:
— Mãe - disse a futura arquiteta -, uma amiga da faculdade vai dar uma
festa de aniversário no dia dois de dezembro; a família dela tem uma
casa na praia e a festa vai ser lá! Eu fui convidada, eu e mais alguns
colegas da nossa turma e de algumas outras turmas também! A gente resolveu alugar um micro-ônibus
que vai levar e buscar a gente; é mais seguro, assim todo mundo pode
aproveitar a festa sem precisar vir dirigindo pra casa!
— Ótimo, filha; você está precisando mesmo sair, se distrair!
— É bom assim - falou Jaraguá -, quando vai bastante gente, é mais
divertido!
— E está todo mundo alvoroçado pra essa festa; da nossa turma eu acho
que vai umas quinze pessoas, e tem gente de outras turmas também que vai
pra lá!
    Chapecó passou pelo apartamento antes de ir pro trabalho; estava
animada, cheia de forças. Ela e Joinville continuavam separadas, mas a
engenheira costumava passar por lá de vez em quando; a família da amada
continuava sendo a sua família. Florianópolis saiu da sala por um instante e voltou
com seu pequeno nos braços:
— E a médica - quis saber Joinville -, o que ela disse?
— A gente vai continuar o tratamento agora; vamos tentar de novo!
— Chapecó, será que você pode me deixar no shopping quando você for pro
trabalho?
— Claro, minha querida; te deixo lá e vou pro batente!
— Eu combinei com uns colegas da gente se encontrar lá agora as duas da
tarde, mas já que você está aqui eu vou antes e aproveito pra comprar
umas coisas pra mim!
— Ótimo; eu te levo!
— Eu vou me arrumar, prometo que não demoro!
    Joinville saiu da sala, e suas irmãs saíram logo depois;
Florianópolis agora estava sozinha com Chapecó. A engenheira pegou o
bebê, ajeitou-o cuidadosamente no colo:
— Como ele cresceu! - comentou, emocionada:
— Cresceu, minha querida; o pediatra disse que ele está super bem, ele é
uma criança muito calma! Mas eu queria falar de você, Chapecó; eu fico
muito feliz em saber que, mesmo que você e minha filha não estejam mais
juntas como antes, você continua vindo visitar a gente, continua
frequentando a nossa casa!
— Foi a maneira que eu encontrei de continuar me sentindo em casa,
Florianópolis, a maneira que eu encontrei de não perder minha família
pela segunda vez! Eu perdi meus pais, sofri na casa dos meus tios, vocês
são a família que eu tenho!
— A gente também te ama muito aqui em casa, todo mundo; eu quero que
você saiba disso, todo mundo aqui em casa sempre vai te receber com
carinho, mesmo que você e Joinville não...
— A gente vai voltar, Florianópolis; é só o tempo de eu resolver a minha
situação com aquela maluca e a gente vai retomar tudo de onde a gente
parou!
    Joinville apareceu na sala minutos depois, estava linda, sorridente,
a presença de Chapecó lhe trazia de volta o brilho nos olhos.
As duas saíram; a engenheira a deixaria no shopping e depois seguiria
para a empresa onde trabalhava.
    Era uma linda manhã de segunda feira; Concórdia entrou na cozinha
de camisola, os longos cabelos amarrados em um rabo de cavalo, cara de
sono e colocou a água no fogo pra preparar um
café; percebeu que havia um envelope debaixo da porta e foi apanhá-lo.
Sentada em uma cadeira, ela abriu com cuidado o tal envelope;
desdobrou o papel que estava dentro dele e começou a ler com atenção:
— Minha querida irmã! Me perdoe por ter feito isso assim, sem aviso, mas
eu não tinha outra alternativa; pra evitar o seu sofrimento e o
sofrimento do meu menino eu tomei essa decisão! Concórdia, quando você
ler essa carta eu já estarei longe; eu sei que você não deve estar
entendendo nada, mas vou lhe explicar! Minha irmã, eu me envolvi com um
aluno, menor de idade; ele tem dezessete anos, a idade do meu filho; eu
sei que é loucura mas não sei explicar ao certo em que momento isso
começou; só sei que nós nos envolvemos, a família dele descobriu e
ameaçou me denunciar! Já estava-mos saindo juntos a alguns meses, e na mesma época eu
voltei a ter contato com o meu ex-marido, pai do meu filho! Desesperada,
contei a ele que eu estava tendo um envolvimento com um aluno menor de
idade, e a uma semana, quando a família dele descobriu e ameaçou me
denunciar, eu decidi aceitar a proposta do meu ex-marido e ir embora com
ele! Estamos embarcando hoje para Buenos Aires, e só te peço uma coisa;
cuide do meu filho! Tudo o que eu mais queria era levá-lo comigo pra
essa vida nova, mas seria crueldade eu arrancá-lo de Jaraguá, do lugar
onde ele cresceu, dos amigos e principalmente de você, que sempre foi
muito mais parceira dele do que eu! Em breve eu estarei te enviando um
documento, dando a você a tutela de São Miguel até que ele complete a
maior idade! Mais uma vez me perdoe, mas eu não podia continuar aqui; eu
estaria condenando o meu filho a ser apontado na escola como o filho da
professora criminosa, que seduziu um aluno menor de idade! Coloquei os
bens, propriedades que herdei do nosso pai em seu nome para que você tenha uma vida
confortável e possa oferecer isso a o meu filho! Essa foi a única porta
que se abriu na minha frente! Amo vocês mais que tudo, e fiz o que fiz
pra evitar o sofrimento seu e do meu filho! Assinado: Brusque!


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