Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 56
LIV




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— Invoco para a boca a força que me habita o sangue…

Abri um pequeno corte no lábio inferior com a adaga cerimonial do tamanho do meu dedo indicador e recolhi a gota de sangue que se formou com a ponta da língua.

— Que a magia me inunde a voz e seja feita a minha vontade. Não há ordem minha que não possa ser cumprida porque o poder reunido no meu corpo assim mo permite…

Inseri a adaga ensanguentada num orifício no centro do círculo e os riscos negros iluminaram-se com um brilhante tom de violeta. Uma suave aragem mística libertou-se do meu corpo e começou a redemoinhar em meu redor, sacudindo-me os cabelos. A força da magia, revoltosa e pujante, fez-me estremecer levemente. Segurei o cabo da adaga com mais força, fechei os olhos e concentrei-me em domá-la.

— O mundo em que me quedo tornou-se pequeno para a minha ânsia de saber. Não há caminho que não tenha trilhado ou grão de areia que não tenha tocado. Não há rio que não tenha atravessado ou gota de água que não tenha bebido. Não há estrela que não tenha contado ou nuvem que não tenha visto passar…

O encantamento era longo, mas recitei-o sem hesitar. Tinha uma cábula na mão esquerda, para prevenir, mas não fiz uso dela. A cantilena estava bem presente na minha memória e, a cada palavra que pronunciava, as formas no interior do círculo rodavam e moviam-se, como o mecanismo de uma fechadura, destrancando lentamente a porta.

— Por minha força e vontade, abrirei caminho através do véu que aparta os mundos. Que a barreira se rasgue à minha ordem e me dê passagem sem opor resistência… porque o poder reunido no meu corpo assim mo permite! A Terra é o meu destino… Desvendai-me o caminho!

O brilho do círculo tornou-se tão intenso que se transformou num poço de luz que encadeou todos os presentes. Fechei os olhos e concentrei-me em visualizar com toda a minha força mental o sítio para onde queria ir. A adaga minúscula que continuava a segurar no centro do círculo estremecia tanto que quase se me saltava dos dedos, vergastada pela força da magia do portal. Pareceu demorar uma eternidade até os tremores começarem a enfraquecer e a luz que me perfurava as pálpebras perder intensidade suficiente para me permitir abrir os olhos. Não consegui evitar um arquejo ao ver o que estava diante de mim.

O círculo na parede transformara-se numa passagem redonda coberta por uma espessa película translúcida e viscosa. Do outro lado… estava uma fileira de árvores que eu conhecia muito bem. Costumava vê-la todos os dias através da janela do meu quarto, quando abria ou fechava a persiana. Talvez fosse uma estupidez direcionar a saída do portal para as traseiras do meu quintal, mas não me lembrara de nenhum outro sítio onde o círculo ficaria escondido e não chamaria a atenção de ninguém. O portal estava do lado de fora do muro que delimitava o terreno da minha casa, virado para a floresta, onde ninguém entrava há anos, exceto talvez idosos antiquados em busca de agulhas e pinhas para acender as lareiras no Inverno. Era a localização perfeita… com o único inconveniente de deixar-me a metros de distância dos meus pais, com quem eu não me sentia nem um pouco pronta para me cruzar.

Despertei dos meus pensamentos quanto senti a aproximação do meu irmão nas minhas costas. Virei o rosto no momento em que ele se colocou ao meu lado, poisando uma mão aprovadora no meu ombro.

— Muito bem, irmãzinha. Conseguiste…

Não consegui evitar um sorriso, satisfeita comigo mesma.

— A poção?

Ashkore tirou a rolha do frasco da poção estabilizadora e eu desembainhei metade da adaga cerimonial da membrana viscosa. Peguei no recipiente na mão do meu irmão e inclinei-o sobre a lâmina, deixando um fino fio de líquido deslizar pelo metal até à estranha substância translúcida. A reação foi imediata. A superfície da membrana efervesceu e começou a dissolver-se, derramando-se no chão. Eu continuei a verter a poção, mas a última camada da substância resistiu ao seu efeito, impedindo-me de abrir caminho até ao outro lado. Ashkore avisara-se que isso poderia acontecer devido à escassez de Maana em Eldarya. Só nos restava rezar para que a poção tivesse tornado a membrana fina o suficiente para nos permitir passarmos sem esmigalhar os ossos.  

— Não temos muito tempo — lembrou Ashkore, passando-me rapidamente a mochila que preparara no dia anterior para as mãos — Vai, depressa. E boa sorte, irmãzinha…

Eu fiz um sorriso e dei um último beijo na bochecha da sua máscara antes de meter a adaga cerimonial no bolso e colocar a mochila às costas. Dirigi um rápido olhar ao canto em que Mokuba vigiava Lithiel e a rapariga acenou um incentivo com a cabeça. Inspirando um fôlego de coragem, avancei para a película parcialmente derretida e poisei as mãos na sua superfície.

Não consegui evitar um trejeito enojado ao tocar aquela coisa. A membrana era pegajosa e muito elástica, cedendo sobre a pressão das minhas mãos, mas sem se rasgar. Fiz mais força e as minhas mãos ultrapassaram o limite da passagem, emergindo na Terra, mas a película continuava a colar-se aos meus dedos e antebraços, como uma luva, em vez de me deixar passar.

— Força — incentivou-me Ashkore.

Cerrando os dentes, desenterrei uma mão da membrana e recuperei a adaga no meu bolso. Pressionei a ponta aguçada contra a película e, depois de alguma resistência, a maldita coisa rompeu-se. Fiz um sorriso aliviado e comecei a recolher a adaga, mas Ashkore impediu-me.

— Se tirares a lâmina, o buraco voltará a fechar-se. A regeneração da membrana é muitíssimo rápida. Continua a fazer força. Obriga a tua mão a passar para o outro lado.

— Mas… o buraco é demasiado pequeno…

— Ele alargar-se-á, não te preocupes.

Eu não estava muito convencida, mas obedeci. Empurrei a adaga contra a membrana, fazendo a lâmina atravessá-la na totalidade. Continuei a empurrar e a massa viscosa começou a envolver-me os dedos. Já estava a abrir a boca para dizer a Ashkore que aquilo não estava a resultar… quando os meus dedos brotaram do outro lado! Seguiu-se o meu pulso e o meu antebraço. Usei a outra mão para alargar o orifício o suficiente para passar a cabeça… e as lágrimas brotaram-me em cascata dos olhos quando senti a conhecida brisa com cheiro a pinheiro acariciar-me o rosto e entrar-me pelo nariz.

Céus… Estava de volta…

Quero dizer, quase. Metade de mim ainda estava em Eldarya.

O meu tronco deslizou sem dificuldade através da película, mas tive de dar uma cambalhota no chão da floresta para passar as pernas. Antes de me virar na direção do portal, limpei rapidamente as lágrimas com as costas das mãos.

O buraco na membrana fechara-se assim que eu passara e Lithiel estava agora a enfrentar os mesmos problemas que eu, no início. Empunhando a pequena lâmina, furei a película estirada entre os dedos de Lithiel e meti uma mão novamente em Eldarya. Agarrei o pulso de Lithiel e comecei a puxá-la. Mão, braço, cabeça, ombros… As costelas dela estavam entaladas no meio da membrana, com um braço preso contra o corpo, quando ela soltou um gemido de dor.

— Puxei com muita força? — perguntei, preocupada.

— Não — negou a rapariga por entre os dentes cerrados —, mas acho que o véu está a recuperar do efeito da poção. Está a ficar apertado aqui…

Praguejando em surdina, puxei Lithiel com força suficiente para lhe deslocar um braço, mesmo sendo uma faery. A doppelganger saltou da membrana como a rolha de uma garrafa e aterrou em cima de mim com um grito surpreendido, atirando-me ao chão.

— Não era preciso tanta força! — ralhou ela, endireitando-se.

— Desculpa…

Lithiel sacudiu a cabeça com reprovação antes de voltar a concentrar-se no portal. Como seria de esperar, o buraco provocado pela passagem de Lithiel já se fechara e a restante membrana começava a regenerar-se, corrigindo o estrago que a poção estabilizadora lhe fizera. Ainda assim, conseguíamos claramente ver Ashkore, Mokuba e as elementais coloridas do outro lado. Eu levantei-me e aproximei-me quando vi o meu irmão erguer a mão. Talvez ele tenha dito algo, mas não o consegui ouvir. A membrana era demasiado densa e afastava-nos cada vez mais um do outro. Senti um aperto no peito ao constatar que aquela seria a última vez que veria Ashkore em sabe-se lá quanto tempo. Não queria deixá-lo, não queria afastar-me dele mais do que aquilo, mas o portal estava a consumir a minha energia rapidamente e começava até a sentir-me indisposta. Tinha de fechá-lo ou não teria energia para procurar os titãs.

Combatendo as lágrimas, levantei a mão para acenar uma despedida… e murmurei o encantamento para encerrar o portal. As linhas do círculo regressaram, cruzando-se diante da película translúcida até formar uma cópia do desenho em Eldarya. A sua intensa luz violeta forçou-me a proteger o rosto com um braço e, quando o afastei… o portal estava reduzido a meros riscos pretos na parede.

Atrás de mim, Lithiel soltou um suspiro aliviado.

— Estamos livres…

Eu soltei também um suspiro, mas o meu expressava dor e tristeza. Odiava estar longe de Ashkore… Não estava daquele lado do portal nem há cinco minutos, mas a saudade já era tanta que me comprimia o peito! Era tão difícil respirar…

— O ar da Terra é diferente — comentou Lithiel, ainda sentada no chão, olhando em volta com uma certa desconfiança — É tão… pesado… Custa até respirar!

Espera aí… Lithiel também o sentia?

— Tenho o estômago às voltas — queixou-se a doppelganger, levando a mão ao dito — Serão efeitos secundários da travessia?

Abri a boca para responder que não sabia, mas voltei a fechá-la rapidamente quando senti o meu esófago contrair-se violentamente. Um suor frio e peganhento começou a brotar-me dos poros, cobrindo a pele. Céus… Eu não me sentia nada bem…

— Eduarda?

Levei uma mão à testa e a outra ao peito, assolada por uma onda de tonturas e náuseas. Lithiel principiou a levantar-se com movimentos apressados, possivelmente para vir até mim, mas caiu sobre um joelho com uma mão na cabeça e um gemido de dor. Eu deixei de me conseguir suster nas pernas nesse momento e caí para o lado.

— Eduarda!

Os espasmos começaram nos pés e subiram rapidamente pelas minhas pernas. Sentia uma potente corrente elétrica percorrer-me, como se tivesse enfiado os dedos dos pés em tomadas, e o meu corpo reagia-lhe com violência. A última coisa que vi antes de ser dominada pelas convulsões, foi Lithiel a tentar arrastar-se até mim.

Não sei durante quanto tempo apaguei. Não sei sequer quando despertei. Poderia estar ali há horas, dias ou apenas segundos, olhando o vazio com o cérebro em ponto morto. Poderia estar de pé ou deitada. Poderia estar a flutuar ou sobre uma superfície sólida. Não sabia… e talvez não interessasse. A única coisa que sabia era que, quando voltei a mim, estava num lugar que parecia não ter limites. Abaixo de mim, estava um plano branco; acima, um plano negro, e ambos se estendiam infinitamente em todas as direções.

“Nossa querida filha…”

Ergui o olhar ao som das duas vozes combinadas na perfeição, mas não me incomodei em procurar a sua origem. As vozes estavam em todo o lado… mas não vinham de lugar nenhum. Eram só um eco no fundo da minha cabeça que se desdobrou numa voz feminina e masculina.

“Cresceste…”

“Cedo demais…”

“Culpa dos teus irmãos…”

“Sabemos que eles te levaram…”

“O que foi que te fizeram?”

Fechei os olhos e não respondi, procurando despertar do torpor e raciocinar devidamente. Sentia-me como se ainda estivesse a dormir… Seria aquilo real? Ou um sonho? Onde estava? A quem pertenciam as vozes? Chamaram-me filha, portanto…

Abri desmesuradamente os olhos quando a minha capacidade cognitiva começou a voltar. Se as vozes me tinham chamado filha… e sabiam sobre os meus irmãos… deveria assumir que estava na presença dos meus criadores? Úrano e Gaia?! Isso era possível? Como é que fora ali parar?! Que lugar era aquele?! A última coisa de que me lembrava era de ver Ashkore através de… O portal! Eu abrira e atravessara um portal para a Terra e depois… tinha uma vaga ideia de me ter sentido mal. Desmaiara?

“Filha…”, insistiram as vozes.

“O que te fizeram?

“Os teus irmãos…”

Franzi ligeiramente o sobrolho, confusa.

— Nada… — balbuciei cautelosamente, perguntando-me se haveria alguma etiqueta sobre como deveria falar com as divindades e esperando não estar a quebrá-la — Eles não me fizeram nada.

“Isso não é verdade…”

“Estás diferente…”

“Cresceste…”

“Cedo demais…”

— Ah… Estão a falar da minha casca humana?

“Sim…”, disseram Úrano e Gaia em uníssono.

— Caiu. Os faeries fizeram um teste para encontrar Maana no meu corpo e a poção abriu um buraco na casca. Ela começou a desfazer-se e… caiu.

Os meus “pais” ficaram em silêncio, como se estivessem a processar o que eu lhes dissera. Olhei em volta, procurando uma manifestação concreta da sua presença que pudesse fixar durante a nossa conversa, mas não havia nada. Só negro infinito sobre branco sem fim.

“Porque te levaram?”

“Os teus irmãos…”

— Eles não me levaram. Eu caí num círculo de cogumelos.

“Eles invocaram o círculo…”

“Era a Maana de Sirsha…”

— Sirsha? Quem é a Sirsha?

“A tua irmã…”

“Azul celeste…”

Inclinei a cabeça ligeiramente para o lado enquanto ponderava as palavras dos meus criadores. O círculo fora invocado por uma titânide… azul celeste? Não era essa a cor do cristal de Eel? Mas… como é que a titânide no seu interior conseguira criar um círculo de cogumelos na Terra se estava completamente incapacitada? Era impossível! Mas, ao mesmo tempo, fazia sentido… De que outra forma explicaria o facto de o círculo me ter levado precisamente para a frente do cristal, guardado numa sala forrada a feitiços que impediam qualquer forma de teletransporte? Assumir que os cogumelos foram invocados pela titânide, por outro lado, levantava uma data de novas questões. Não acreditava que uma titânide encarcerada fosse desperdiçar a sua primeira e provavelmente última oportunidade de lançar um feitiço para criar um círculo de cogumelos no meio duma floresta qualquer na Terra…

— Então… eu não fui parar a Eldarya por acaso? — inquiri com um murmúrio.

“Não…”

“Eles sabiam…”

“Eles sentiram-te…”

“Vieram buscar-te…”

“Como podiam…”

“Com um propósito…”

“Diz-nos…”

“Qual?”

Percebi pela pergunta que Úrano e Gaia não sabiam o que tinha acontecido aos seus filhos na realidade que estes criaram. Afinal, mesmo sem ter falado sobre esse assunto com Ashkore ou a titânide do cristal azul, era fácil adivinhar que ela me levara até Eldarya para a libertar da sua prisão. Úrano e Gaia teriam chegado a essa mesma conclusão se soubessem da Titanomaquia e do destino dos titãs. Deveria contar-lhes? Talvez não fosse boa ideia… Dado tudo o que acontecera entre as duas divindades e a primeira geração de titãs, não ficaria surpreendida se eles achassem que o destino dos meus irmãos era bem merecido. Além disso, se lhes dissesse que a titânide azul me levara até Eldarya para a libertar, não lhes seria difícil deslindar o motivo do meu regresso: como não conseguira libertar os titãs em Eldarya sozinha, viera procurar reforços junto dos titãs da minha geração. E eu tinha sérias dúvidas de que sairia dali inteira, ou sequer viva, se eles soubessem disso…

“Filha…”

“Conta-nos…”

“O que queriam de ti?”

“Os teus irmãos…”

O que responder? Eu não podia dizer a verdade… mas não seria arriscado tentar enganar duas divindades? O que seria de mim se eles percebessem a mentira? Forçar-me-iam a contar a verdade e talvez ainda me castigassem por os ter tentando iludir! Sentia o estômago encolher-se de medo só de pensar no tipo de castigo a que me poderiam condenar… Se a mitologia nos ensinava algo, era que os deuses sabiam ser criativos na hora de punir alguém! Como sairia daquela situação sem terminar amarrada a uma rocha com uma águia a comer-me o fígado todos os dias, para o resto da eternidade…?

   “Por favor…”

   “Não nos ignores…”

   “Não nos escondas…”

   “O que te vai na mente…”

   “Não tenhas medo…”

   “Conta-nos tudo…”

Inclinei a cabeça ligeiramente para o lado, intrigada. Pensando bem, as suas perguntas eram um pouco estranhas… Duas entidades tão poderosas quanto Úrano e Gaia não deveriam ser capazes de ler os meus pensamentos? Ashkore conseguia. Durante o meu treino de preparação para a viagem a Eel, o meu irmão exercitara as minhas habilidades telepáticas atacando a minha mente, visando as minhas memórias. Recuperar uma lembrança alheia era muito mais difícil do que manter uma conversa mental, precisava de uma maior imersão na mente que se queria perscrutar e isso era extremamente doloroso para a vítima. Os ataques de Ashkore fizeram-me desmaiar várias vezes antes de eu saber defender-me. Ao acordar, as memórias que o titã visitara ainda me flutuavam na cabeça, como se fossem um sonho. Fiquei nesse momento a saber que a inconsciência não era um obstáculo ao ataque, muito pelo contrário. Deixava-me completamente indefesa.

Eu sentia Úrano e Gaia dentro da minha cabeça enquanto conversávamos, mas não estavam a tentar alcançar as minhas memórias. Atendendo à sua vontade de saber o que os meus irmãos me tinham feito… a sua atitude era suspeita. Deuses como eles não deveriam ter pejo algum em entrar na minha cabeça, procurando obter a verdade a qualquer custo. Também não os imaginava a desperdiçar a oportunidade de esquadrinhar a minha mente sem encontrar resistência depois que eu desmaiara junto ao portal. Tinha a certeza que eles tinham procurado no meu cérebro as respostas às suas perguntas no tempo em que eu demorara a despertar, mas se mesmo assim estavam a interrogar-me… deveria pressupor que não tinham conseguido o que queriam?  

— Seria mais fácil mostrar-vos — disse, tentando controlar a nota desafiante na minha voz — Posso partilhar as minhas memórias convosco.

As vozes hesitaram.

“Perscrutar as tuas memórias…”

“Mesmo com o teu consentimento…”

“Seria muito doloroso…”

“Não queremos que sofras…”

— Eu não me importo. Estejam à vontade…

Baixei o rosto e fechei os olhos, esperando pelas pontadas de dor na minha cabeça… mas não vieram. Úrano e Gaia continuaram a vagar na superfície da minha mente, em silêncio. Era impossível saber se eles se tinham simplesmente recusado a aceitar o meu convite ou se estavam mesmo a tentar, sem sucesso, alcançar as minhas memórias, mas estava disposta a apostar na segunda opção. Eu quase conseguia sentir a frustração das duas divindades.

— Então? — indaguei ao fim de algum tempo, sem abrir os olhos — Não vão ver as minhas memórias?

Úrano e Gaia não responderam de imediato.

“A tua mente está selada…”, disse a voz feminina num tom mais gélido.

“Bem como a da tua acompanhante…”, continuou a voz masculina num tom mais grave.

“O que te fizeram?”

“Os teus irmãos…”

Eu disfarcei um sorriso. Não sabia porque é que a minha mente estava fechada ao escrutínio de Úrano e Gaia; talvez o seu acesso à minha mente tivesse ficado comprometido com o desaparecimento da casca humana ou talvez Ashkore tivesse mesmo mexido na minha cabeça. Independentemente da razão, era muito conveniente…

— Nada — respondi, encolhendo os ombros — Eles não me fizeram nada.

“Mentes…”, acusaram as vozes em uníssono.

“Se vieste para interceder…”

“A favor dos teus irmãos…”

“Vieste perder…”

“O teu tempo…”

“Jamais lhes iremos perdoar…”

“O que fizeram à nossa criação!”

— Quem sai aos seus não degenera, hã? — constatei com um resmungo — Dá para ver de quem os titãs herdaram o talento para guardar rancor. A diferença é que eles têm uma razão válida para fazê-lo!

“Os teus irmãos…”

“Não deveriam…”

“Ter criado…”

“Os faeries…”

“Se não conseguiam…”

“Controlá-los!”

Eu soltei uma gargalhada.

— Vocês falam como se nunca tivessem falhado em controlar as vossas criações! Por favor…! Vocês não controlaram a primeira geração de titãs, não controlaram os humanos, não controlaram as ninfas e está visto que também não me controlam a mim! Se assim fosse, não teriam de me interrogar para ficar a saber o que querem saber, pois não? Além disso, porque deveriam os titãs controlar os faeries se foram os humanos que começaram as hostilidades?

“Isso…”

“Não…”

“É…”

“Verdade…”

— Ah, não? Quem é que atacou quem porque estavam com inveja dos poderes dos outros?

“Isso…”

“Não…”

“Justifica…”

— Anos de perseguição e chacina não justificam uma retaliação? — cortei — Essa é boa! Lamento informar-vos, caríssimos pais, mas os faeries tinham todo o direito de se defender!

“Eles não se limitaram a defender-se…”

“Eles iniciaram um genocídio!”

— Não teria chegado a esse ponto se vocês tivessem metido mão nos humanos e os tivessem obrigado a deixar os faeries em paz! Querem falar de controlo?! Vocês são os últimos a poder falar desse assunto! Vocês deixaram os humanos fazer o que bem entendiam, fecharam os olhos à sua crueldade, recusaram-se a ver o problema! Só decidiram atuar quando o jogo virou contra os humanos e foi para ficar do lado deles, como se estivessem na posse da razão! Digam-me uma coisa, honestamente… Se algum dia os humanos se virarem contra a nova geração de titãs… vocês vão fazer connosco, comigo, o mesmo que fizeram com a primeira geração?

“Ah…”

“Estou a ver…”

“Os teus irmãos levaram-te…”

“Para voltar-te contra nós…”

— Não… Vocês fizeram isso sozinhos, com as vossas decisões de mer…!

“Tu não estavas lá…”, cortou-me a voz feminina.

“Não sabes o que aconteceu…”, completou a masculina.

“Sabes apenas aquilo que…”

“Os teus irmãos te disseram…”

— A Lithiel, a rapariga que veio comigo, sente o cheiro de mentiras e ela não detetou nada quando o Ashkore nos contou a história dele. Tenho a certeza de que ele disse a verdade.

“A verdade…”

“Tem muitas facetas…”

“Tudo depende…”

“De como olhas para ela…”

— Não me parece que haja muitos pontos de vista sobre uma perseguição motivada por inveja.

Úrano e Gaia ficaram em silêncio por instantes. Quando voltaram a falar, as suas vozes eram frias e secas.

“Parece que os teus irmãos…”

“Fizeram um bom trabalho…”

“A envenenar-te contra nós…”

“Tem cuidado, querida filha…”

“Com o que vieste fazer aqui…”

“Nós não iremos desculpar…”

“Atos que nos prejudiquem…”

“Ou às nossas determinações…”

“Ou às nossas criações…”

“Considera-te avisada…”

“Esta conversa…”

“Está encerrada.”


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