Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 48
XLVI


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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Levou mais uma semana até finalmente conseguir recuperar a minha forma humana. Foi um processo demorado e difícil, mas valeu a pena o esforço. Quase chorei de emoção quando me vi novamente coberta de pele rosada, com sardas no rosto, sem asas, sem cauda, sem chifres… e com um estômago que podia encher!

Vim a descobrir que o meu corpo humano era mesmo uma segunda forma-base, pelo que conseguiria mantê-lo em qualquer situação e sustentá-lo sem qualquer esforço ou, mais importante ainda, sem qualquer custo de Maana. Isso não só facilitaria imenso a minha vida, como facilitaria o meu regresso à Terra. Poderia ter pedido a Ashkore que me levasse para casa depois de tomar um banho e saciar a minha fome debilitante… mas não o fiz. E tinha muitas razões para isso.

A primeira razão era a relação controversa dos titãs com os seus progenitores. O conflito familiar entre eles não só impedia Ashkore de me acompanhar na travessia do portal, como poderia vir a afetar-me a mim também. Ihlini dizia que isso dificilmente aconteceria, pois Úrano e Gaia não me teriam criado se não me quisessem na Terra, mas eu não tinha qualquer vontade de descobrir sozinha se a titânide estava certa ou errada.

A segunda razão para não regressar era mais difícil de entender, mesmo para mim. A minha cabeça estava cheia de dúvidas e questões e eu não fazia a mais pálida ideia de como resolvê-las. Afinal, o que iria eu fazer na Terra? Voltaria para junto dos meus pais e fingiria que nada aconteceu? Deixaria Eldarya completamente para trás? Como poderia fazer isso? Não conseguiria olhar para o casal que me criou e ignorar o facto de eles não serem os meus verdadeiros pais! Não conseguiria andar na rua sabendo que era uma criatura fabricada pelo Céu e pela Terra! Como dormiria sabendo que, numa realidade paralela, os meus “irmãos” estavam a enfrentar uma luta épica pela liberdade…? Eu não queria participar naquela guerra, não me sentia sequer parte dela, mas também não lhe conseguia ficar indiferente. Eu queria fazer alguma coisa… Queria devolver Eldarya à sua paz anterior… e não seria na Terra que conseguiria fazer isso.

Por outro lado, tinha perfeita noção de que eu era só uma miúda de dezoito anos. O facto de ter descoberto que era uma espécie de divindade não alterava em nada a imagem que tinha de mim mesma. Eu não me sentia uma divindade, muito menos me sentia capaz de operar um milagre. Sentia-me tão fraca e impotente como no dia em que chegara àquela realidade. Ficar ali só para atrapalhar e habilitar-me a ser presa num cristal não era opção. Seria mais seguro voltar para a Terra… mas sempre que esse pensamento cruzava a minha mente, era novamente soterrada pelas questões anteriores.

A melhor opção era permanecer onde estava até organizar as minhas ideias e tomar uma decisão consciente e ponderada. Entretanto, dediquei-me a explorar o labirinto de túneis subterrâneos em que estávamos escondidos.

Os túneis eram o lar de uma pequena colónia de adoradores dos titãs, descendentes dos sobreviventes da Titanomaquia. Mais de meia centena de faeries vivia ali, entre homens, mulheres e crianças de diversas raças. Aquele era o único lugar onde podiam transmitir a verdadeira história dos titãs e expressar o seu afeto por eles sem serem perseguidos pelas Guardas, por isso protegiam-no com tudo o que tinham. A rotina diária da colónia era mais sobre garantir que os encantamentos estavam a funcionar e as passagens estavam devidamente guardadas do que propriamente a garantir a subsistência das famílias que ali viviam. Ninguém saia ou entrava sem a autorização do chefe, que, até à libertação de Ashkore, fora um velho centauro chamado Mokuba. Por outro lado, os faeries refugiados não precisavam realmente de sair dali. A colónia era autossuficiente graças a uma grande cratera exposta ao sol onde eles cultivavam hortaliças e criavam animais de pequeno porte como porcos, cabras e galinhas. Eu ficara a pensar sobre como é que os outros faeries ainda não tinham descoberto a cratera, sendo ela tão visível do ar, e Rubih explicou-me que esta estava coberta com uma magia de ilusão. Os faeries que se aproximassem da cratera do lado de fora dos túneis vê-la-iam como um mero lago habitado por peixes perigosos.

Explorar os túneis, contrariamente ao que esperava, não ocupou muito do meu tempo e não tardei a aborrecer-me. Estava prestes a oferecer-me para ajudar na horta (embora realmente odiasse trabalhar na terra), quando uma conversa entre Rubih e Ashkore me salvou da monotonia e me devolveu à ação. Aparentemente, a menina vermelha seguira o meu conselho e contara ao titã sobre o estranho olhar que Lee lhe lançara. Ashkore ficara tão intrigado que enviara um outro elemental até ao meu antigo grupo de viagem para tirar a questão a limpo. A pequena criatura voltou ao fim de quarenta e oito horas para confirmar as suspeitas de Rubih: Lee vira-a e até tentara falar com ela.

Ashkore não tinha nenhuma ideia de como explicar esse fenómeno. Só os titãs e outros elementais conseguiam ver os seres brilhantes e era certo e sabido que Lee não era nenhuma das duas coisas.

— O que sabes sobre esse elfo, Eduarda? — perguntou-me o titã a meio da conversa.

Eu encolhi os ombros.

— Praticamente nada. Sei que é um membro da Guarda Sombra de Eel. É meio desastrado. A sua afinidade é a água… Ah, e ele tinha este plano maluco de vir comigo para a Terra.

— Deveras? — inquiriu Ashkore, interessado — Porquê?

Voltei a encolher os ombros.

— Ele disse que queria conhecer o berço da sua raça e coisas do género…

Ashkore desviou ligeiramente o rosto para o lado e, embora não conseguisse ver a sua face coberta com a máscara negra e vermelha, sabia que estava pensativo.

— Gostaria de conhecer esse elfo — disse de súbito — Achas que consegues trazê-lo até aqui? Vamos conceder-lhe o seu desejo e ver o que acontece…

E assim ficara decidido o “rapto” de Lee. Eu deveria entrar à socapa no quartel-general de Eel, recorrendo à camuflagem, encontrar o elfo e trazê-lo comigo. O ideal seria que Lee viesse de livre e espontânea vontade; poderia usar o nosso acordo como isca para convencê-lo. Ashkore, todavia, não me deixaria ir enquanto não me fornecesse os meios para me defender caso algo corresse mal… ou caso tivesse de trazer o elfo à força. Se a missão fosse bem-sucedida, o titã gostaria que voltasse a Eel para libertar a titânide no cristal azul, mas eu não estava muito segura quanto a essa parte, por isso, preferi adiar a minha resposta para mais tarde.

Os meus treinos começaram cinco dias depois de recuperar a forma humana. Os habitantes da colónia tinham-me concedido algum do seu “afeto” no tempo em que estivera entalada no meu quarto e, graças a isso, estava muito mais forte do que esperava. Os meus murros atravessavam paredes, os meus pontapés derrubavam árvores… e a minha magia começou finalmente a manifestar-se, com a ajuda dos elementais. A terra foi o primeiro elemento que consegui invocar. Depois foi o ar, depois a água e, por fim, o fogo. Não posso dizer que os dominei, mas conseguia fazer com eles o suficiente para me safar num aperto.

O meu treino demorou algumas semanas a ficar concluído e, no entretanto, Rubih ia e vinha para nos informar sobre a situação no quartel general de Eel e ajudar-nos a traçar o melhor plano. Ela descrevia o ambiente na cidade como “estranhamente calmo”, como a bonança antes de uma grande tempestade. A segurança fora reforçada, havia guardas por todo o lado e sentia-se a tensão no ar. Parecia que as Guardas só estavam à espera de descobrir onde deveriam mirar para se lançar no combate.

— O portão da cidade é fechado todas as noites — dizia Rubih, flutuando sobre o mapa de Eel que Ashkore estendera na mesa — e ninguém entra ou sai sem ser devidamente revistado e identificado. Com a camuflagem, a Ama Eduarda deverá conseguir entrar sem problemas. Infelizmente, eu não poderei acompanhar-vos, Ama. O risco de ser vista e denunciada pelo elfo que ides buscar é demasiado elevado. Além disso, temos de atentar na hipótese de existirem mais faeries no quartel com a capacidade de nos ver…

— Eu compreendo, não faz mal — tranquilizei-a —, mas tenho uma questão.

— Diz — incentivou-me Ashkore.

— Como é que vou para Eel? A cidade parece ser bem longe daqui e eu não sei o caminho…

— Eu vou ensinar-te a invocar os sluagh — anunciou o titã — Eles levar-te-ão e trazer-te-ão de volta.

— Invocar os sluagh? Como assim?! — inquiri, admirada.

Ashkore inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, confuso.

— Exatamente como te disse. Irás chamar um sluagh e ele levar-te-á até Eel.

— Mas…! Como?! Os sluagh não são perigosos? Houve um que nos atacou durante a viagem…!

— Ah… pois… — murmurou Ashkore, coçando a nuca com ar comprometido — Esqueci-me de te avisar… Os faeries sentinelas não se dão muito bem com os outros faeries. A sua tendência é matá-los e comê-los.

— Porquê?!

— Porque foi essa a última ordem que nós lhes demos, durante a Titanomaquia. Matar tantos faeries quanto conseguissem. Eles são os nossos filhos mais leais e sempre nos obedeceram sem hesitar. Mesmo depois de termos desaparecido, os sentinelas continuaram a atacar os faeries sempre que estes cruzavam o seu caminho.

— Espera aí… Foi por isso que o sluagh parou quando eu lhe pedi? — continuei a questionar — Ele reconheceu-me? Como titânide, quero dizer…

— Eu não estava lá para ver, mas imagino que sim…

— Ele pediu-me mimos!

— Sim, eles adoram mimos.

Imagino que a minha expressão embasbacada fosse hilariante, porque tanto Ashkore quanto Rubih soltaram uma gargalhada.

— Amanhã ensino-te a invocar os sluagh — prometeu o titã, ainda com vestígios de um sorriso na voz — Vais ver como é fácil…

Sim, teoricamente, não era difícil invocar os passarões de bruma negra. Bastava recitar uma lengalenga e imbui-la com magia para que chegasse aos ouvidos do seu destinatário, independentemente de quão longe este estivesse. O único problema era decorá-la! A cantilena tinha um tamanho considerável e nem sequer rimava; não estimulava, por isso, a minha memória. Consegui decorar a generalidade do encantamento, mas acontecia frequentemente esquecer-me dos termos exatos e substitui-los por sinónimos. Infelizmente, não era assim que a magia funcionava. Se não dissesse as palavras exatas, o encantamento desmoronar-se-ia.

— Os encantamentos são difíceis — dizia Ashkore enquanto eu escrevia a ladainha num pergaminho, esperando que isso me ajudasse a memorizá-la ou, no mínimo, me fornecesse uma cábula segura — Pior ainda se tiveres de desenhar um círculo. Basta uma pequena irregularidade numa linha do círculo para o encantamento perder o efeito… ou rebentar na tua cara.

— Pieguice… — resmunguei em surdina.

— Maana é perigosa, Eduarda, e os encantamentos são muitas vezes uma manipulação dela no seu estado puro. Não é como controlar os elementos. Um passo em falso e acabas com uma pequena versão da explosão que destruiu Darr na cara.

— A sério? — perguntei, erguendo a cabeça do pergaminho, alarmada — Isso pode acontecer?

— Pode…

— Então, se eu me enganar na invocação…

Ashkore soltou uma pequena gargalhada.

— Não, a invocação dos sentinelas não é desse tipo. Podes ficar descansada, nada irá acontecer se te enganares. Só os encantamentos que exigem a construção de um círculo se tornam perigosos.

— O Ezarel desenhava sempre um círculo à volta do nosso acampamento — recordei, apreensiva.

— Os círculos mais simples não constituem um perigo. Por outro lado, são muito mais frágeis e fáceis de desmantelar. Já o círculo que eu ergui à volta do cristal da Ihlini…

— O que é que tem?

— Esse, sim, podia ter-nos matado aos dois.

— Obrigadinha, Ash. Sinto-te muito mais tranquila.

— Qual é o problema? Já não estás lá dentro, já não tens com o que te preocupar.

— Pois é, mas agora sei que podia ter morrido!

— Podias ter morrido várias vezes naquela noite — lembrou-me ele —Tiveste muita sorte de teres conseguido chegar à sala do cristal sem um só arranhão.

Eu fiz uma pequena careta.

— Não diria que cheguei lá sem um só arranhão… A Ihlini quase me fritou o cérebro ao forçar a telepatia e um guarda maluco acertou-me duas vezes com uma espada!

— O guarda não conta — negou Ashkore, rindo — Ele só te arranhou depois de teres chegado à sala do cristal, por isso a minha afirmação continua a ser verdadeira.

— Palhaço — resmunguei, atirando-lhe uma bolinha de pergaminho amarrotado.

Ashkore riu-se e atirou a bolinha de volta.

A minha relação com o titã era, no mínimo, estranha. Olhando para trás, perguntava-me como é que as coisas entre nós tinham evoluído tão depressa. O meu coração, todavia, dizia-me que fazia todo o sentido que assim fosse. Ashkore era tão amável e ajudava-me tanto… Ele contou-me a verdade, explicou-me o que eu era e cuidou de mim enquanto estive presa no meu quarto, não só trazendo comida, mas também fazendo-me companhia. Nós passáramos horas a conversar e ele contara-me tantas histórias caricatas sobre si que eu não conseguira continuar a vê-lo como um monstro destruidor. Ele era tão… humano. Sentia e pensava exatamente como nós. Quero dizer, como “eles”. O que for…

O facto de Ashkore nunca me mentir também contribuíra imenso para a construção da nossa relação. Talvez fosse estupidez da minha parte confiar tão prontamente que ele estava a dizer a verdade depois de todas as mentiras de que fora vítima, mas a minha intuição dizia-me que Ashkore era muitíssimo honesto em tudo o dizia. Inclusive… nas suas tendências sádicas. Não era boa ideia tirar o titã vermelho do sério, como os faeries tinham conseguido fazer ao iniciar a guerra contra os seus criadores. Nem Ihlini foi poupada da sua ira. Depois de ter atacado o irmão durante um interrogatório, Ashkore prendera-a dentro de um círculo igual ao que erguera em Ryss e dera ordens para que ela não recebesse comida ou apreço algum. Isso acontecera há quase duas semanas e o titã ainda não mostrara ter intenção de reverter ou suavizar o castigo. O anterior chefe dos túneis, Mokuba, até tentara intervir a favor da sua senhora, mas a única coisa que conseguira fora convencer Ashkore a dar água à irmã dia sim, dia não, apenas o suficiente para a manter viva. Ihlini iria continuar a passar fome até o seu irmão decidir o contrário. Eu fui vê-la na noite em que parti em direção a Eel e a sua debilidade física encheu-me de aflição. Ainda assim, não tentei sequer falar sobre isso com Ashkore. Sabia que não valia a pena…

Parti em direção a Eel numa noite de lua nova. A escuridão era absoluta, apesar da quantidade de estrelas que salpicavam o céu. Ashkore, Mokuba, Rubih e outros três elementais da água, terra e ar acompanharam-me até ao exterior dos túneis para se despedir de mim.

— Boa sorte, Ama Eduarda — diziam as meninas brilhantes e coloridas.

— Tenho a certeza que tudo irá correr bem, Ama Eduarda — disse Mokuba — Sois a criatura mais forte e bela de toda Eldarya…

— Ah, vou ficar com ciúmes, Mokuba — disse Ashkore com um sorriso a transparecer na voz — Eu também sou um titã, sou tão bonito e forte quanto ela!

— Tendes razão, Amo, peço desculpa — disse o centauro, curvando respeitosamente a cabeça.

Ashkore soltou uma gargalhada.

— Estou a brincar, Mokuba, estou a brincar. Concordo contigo, na verdade! A Eduarda é realmente a criatura mais bela e forte deste mundo… Por enquanto! Não tarda nada estarei pronto para te fazer concorrência, irmãzinha! — garantiu ele, envolvendo-me com os braços.

Eu sorri e abracei-o de volta. O calor que sentíamos sempre que nos tocávamos era cada vez mais forte e Ashkore dissera que isso era um ótimo sinal. O calor era uma consequência do contacto entre a nossa Maana e o aumento da sua intensidade indicava um aumento do nosso poder. Eu não me importava muito com o seu significado, para dizer a verdade. Eu só gostava de o sentir…

— Vai correr tudo bem — murmurou Ashkore, acariciando ternamente o meu cabelo — Vai correr tudo bem e vais voltar para mim, sã e salva. Não há razão para ser de outro modo.

Eu acenei uma concordância contra o seu peito e afastei-me com relutância.

— Invoca o sluagh — incentivou-me o titã — Está na hora…

Acenei mais uma concordância e tirei a cábula que escrevera há dois dias do bolso. Eu já não precisava dela, na verdade; decorara a cantilena no mesmo dia em que a escrevera no pergaminho, mas preferia tê-la sempre diante do nariz, para me assegurar que não me enganaria.

Entoei o encantamento com uma voz firme e clara. Ashkore elogiou a minha performance, no entanto… não aconteceu nada. Nenhum sluagh apareceu.

— Calma, Eduarda — disse o titã ao notar a minha ansiedade — Tens de dar tempo ao sluagh de voar até aqui. Isso não é um encantamento de teletransporte.

— Como é que sei se o encantamento resultou? Pode não ter funcionado…

— Funcionou — garantiu Ashkore — Eu senti a magia na tua voz.

Tivemos de esperar mais dez minutos até o sentinela finalmente aparecer. Anunciou-se com um grito de fazer retinir os ouvidos e, segundos depois, aterrou ao meu lado. A primeira coisa que fez foi empurrar o meu braço com o bico, grasnando baixinho. Estava a pedir mimos, como o outro… ou talvez fosse o mesmo?

Hesitante, teci algumas carícias no longo bico negro. O bicho imobilizou-se e fechou os olhos, desfrutando do toque dos meus dedos.

— Precisas de lhe tocar com uma parte titã para lhe dares consistência — lembrou-me Ashkore, aproximando-se para mimar o bicho — Achas que consegues?

Não sabia, eu não tentara voltar ao meu corpo titã desde que recuperara a forma humana. Não tentara sequer uma transformação parcial, que era aquilo de que precisava naquele momento. Eu teria de tocar no sluagh com uma mão iridescente se quisesse montá-lo, caso contrário ele não seria mais do que névoa sem densidade.

Inspirando um pequeno fôlego de coragem, concentrei-me em imaginar que a minha mão direita era, novamente, branca iridescente. Não foi difícil, afinal, essa era uma visão que me assombrava desde o teste de Maana. Numa questão de segundos, a minha imaginação tornou-se realidade. Deslizei a mão direita do bico para a cabeça da criatura e senti a névoa que a constituía deslizar por entre os meus dedos, como água. Pressionei um pouco mais, enterrando a mão na bruma, até finalmente sentir algo consistente. Eu estava à espera de encontrar carne e ossos, mas o sluagh era como… uma grande almofada macia. Ele conseguiria realmente levar-me?

— Isto é seguro? — perguntei a Ashkore — Ele consegue mesmo levar-me até Eel?

— Consegue, sim — confirmou o titã, com um sorriso a transparecer na voz — É como montar uma nuvem, é muito divertido…

— Se tu o dizes — resmunguei para mim mesma.

O sluagh parecia ter entendido a nossa conversa porque baixou a cabeça até o queixo rasar a chão e grasnou como se estivesse a convidar-me a subir para as suas costas. Eu palpei hesitantemente o seu corpo macio através da névoa para entender melhor a sua constituição e descobrir como haveria de me sentar. Quando me acomodei na base do seu pescoço, com as pernas na frente das suas asas, senti-me como se me tivesse sentado numa boia insuflável envolvida por bruma negra. Não me parecia nada seguro e imagino que a minha apreensão se expressasse no meu rosto, porque Ashkore soltou uma pequena gargalhada.

— Agarra-te bem ao pescoço dele — aconselhou-me, manuseando os meus braços até os enrolar no pescoço do sluagh — Aperta-o com os joelhos também… e se mesmo assim caíres, lembra-te que tens sete pares de asas que não servem só para enfeitar.

— Não me vão servir de muito, ainda não aprendi a voar — lembrei-o num tom resmungão.

— Tenho a certeza que irás aprender rapidinho quando vires o chão aproximar-se.

— Palhaço — rabujei, fazendo um beicinho.

Ashkore riu-se e deu-me um aperto brincalhão no nariz antes de se afastar.

— Vai agora ou não chegarás a Eel antes de amanhecer.

— Okay, então… adeus…

— Adeus, irmãzinha.

— Boa viagem, Ama Eduarda! — disseram o centauro e as elementais em uníssono.

Eu dirigi-lhes um pequeno sorriso e um aceno antes de me virar para o sluagh.

— Vamos?

O pássaro soltou um guincho de concordância e abriu as asas. Eu fechei os olhos com força quando o senti erguer-se no ar e apertei-o entre os meus braços e pernas com todo o vigor dos meus músculos. Sendo uma titânide, tinha bastante força… ainda assim, o passarão não se queixou.

Durante a primeira meia hora de viagem, mantive o rosto escondido nas brumas do pescoço do sluagh. Não queria abrir os olhos e olhar para baixo, temendo ser acometida por uma onda de vertigens ou até de enjoos. Porém, ao fim dessa meia hora, com o voou estabilizado e um pouco mais calma, não resisti a espreitar o que me rodeava. Fui por partes, para tentar preservar a calma que conseguira reunir. Primeiro, abri os olhos. A névoa do sluagh era tão densa que não fez qualquer diferença, eu não conseguia ver nada. Arrisquei virar o rosto para o lado e um dos meus olhos emergiu da bruma. Vi o céu, as nuvens e as estrelas, mais próximas do que nunca. Era bonito… por isso continuei a mirar o céu até reunir coragem suficiente para olhar para baixo. Infelizmente, não vi nada. A escuridão era demasiado cerrada para me permitir ver alguma coisa. Não vi sequer pontinhos de luz que acusassem uma povoação próxima. Tudo era negro. Desiludida, voltei a olhar para o céu.

Não sei quanto tempo demorou a viagem, mas pareceu-me imenso. As conversas com Ashkore tinham dado a entender que a viagem demoraria a noite toda, por isso parti do princípio que o sol começaria a nascer dentro de uma hora, talvez nem isso.

O sluagh deixou-me numa clareira na floresta diante do quartel, porque seria demasiado arriscado levar-me para o interior das muralhas. Um sluagh dificilmente passaria despercebido aos guardas. Sendo assim, eu teria de esperar até que o portão da cidade fosse aberto e servir-me da camuflagem para entrar sem ser vista. Entretanto, aproveitaria o tempo de espera para dormir ao abrigo das árvores. Não teria de me preocupar com nada até ao amanhecer…


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 9/7/18]



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