Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 23
XXII. O Nevra vai gostar de saber...


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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Karenn não estava nada feliz quando finalmente a libertei do meu abraço esmagador, mas não tardou a perdoar-me quando ficou a par dos meus planos com Lee. O elfo queria ir ao mercado depois do pequeno-almoço para comprar os ingredientes da poção do portal e Karenn predispôs-se de imediato a ir connosco, embora nenhum de nós a tenha convidado. Calculei, pela expressão de Lee, que a ideia não lhe agradava, provavelmente por ver Karenn como uma ameaça ao seu plano, mas não fez qualquer tentativa para demove-la. Combinámos encontrar-nos os três no jardim do quartel daí a uma hora, dando-me tempo de ir à biblioteca e fazer, finalmente, o teste das Guardas.

Keroshane estava ocupado quando o encontrei, analisando uma pequena montanha de papéis, mas largou-os com o que me pareceu alívio quando lhe disse que estava pronta para fazer o teste. O bibliotecário guiou-me até uma pequena sala, sentou-se atrás de uma pesada secretária de madeira e convidou-me a sentar na sua frente. Abriu o livrinho com as perguntas, puxou uma folha limpa para anotar as respostas e iniciou o teste. Repeti a lengalenga que Nevra me ensinara e, quando terminei, observei Kero calcular o meu resultado. Parecia bem mais complexo do que pensara…

— Feito — disse finalmente o bibliotecário, poisando o lápis na folha onde estivera a escrever — Eduarda…

— Sim?

— És, a partir de hoje, um membro da Guarda Sombra. Parabéns…

— Porreiro — comentei com um pequeno sorriso — O Nevra vai gostar de saber…

— Sim, imagino que sim — concordou Kero, rindo.

— Está tudo tratado, então?

— Quase, preciso que assines uns papéis para formalizar a tua admissão na Sombra. Não te preocupes, não é nada de complicado. Só tens de escrever o teu nome aqui em baixo.

Kero estendeu-me duas declarações da minha entrada para a Guarda Sombra, uma destinada aos arquivos da Guarda Reluzente e outra para entregar ao chefe da minha Guarda. Assinei as duas e, enquanto isso, o bibliotecário tentava convencer-me a fazer o teste para receber um mascote. Recusei, uma vez que não pretendia perder tempo com animais de estimação. Não queria, além disso, passar pela experiência de abandonar o bicho quando conseguisse regressar à Terra.

Saí da biblioteca com a declaração para Nevra na mão, mas como não sabia onde encontrar o vampiro e não tinha tempo para o procurar, decidi fazer um desvio até aos dormitórios para deixar o papel no quarto e entregá-lo mais tarde. Estava já a voltar para trás, pronta para me juntar a Lee e Karenn, quando me cruzei com Lithiel no corredor… e tive uma grande ideia.

— Bom dia, Lithiel! — cumprimentei-a, parando na sua frente — Como estás?

— Cheia de sono — disse a rapariga com um grande bocejo, os guizos tilintando quando ergueu uma mão para cobrir a boca — O meu namorado não me deixou pregar olho…

— Ah — fiz, atrapalhada com resposta.

Lithiel voltou a bocejar.

— Acho que vou dormir mais um bocado — continuou — Não tenho nada para fazer mesmo…

— Sério? Isso é ótimo, porque queria convidar-te para vir comigo ao mercado.

Lithiel franziu o sobrolho, estranhando o pedido.

— Fazer o quê?

— Vamos comprar os ingredientes para a poção do portal.

— O Lee não estava a ajudar-te com isso?

— Sim, mas fiquei a pensar no que disseste sobre o cheiro a mentiras e… achei que seria bom ter-te também comigo.

— Estás a tentar usar-me como detetor de mentiras?

— Não…! — comecei a negar, mas um toque de Lithiel no próprio nariz fez-me admitir — Okay, pronto, tens razão, estou a tentar usar-te como detetor de mentiras, desculpa… É só que… eu preciso de me certificar que o Lee não está a tentar enganar-me quanto ao portal e tu és a única pessoa que me pode ajudar. Por favor, Lithiel…

— Tudo bem, eu faço-o.

— A sério? — perguntei, abrindo um sorriso animado.

— Claro… se pagares.

O sorriso escorregou-me lentamente dos lábios.

— Pagar?

— Sim! — confirmou Lithiel com um pequeno sorriso presunçoso —Detetar mentiras é um dos serviços que presto enquanto membro da Guarda Sombra, logo, tem um preço!

— Eu não… sabia… Pensei que…

— Poderia abrir uma exceção para ti? — completou — Não, não me parece. É um serviço bastante procurado, sabes? Não posso pura e simplesmente oferece-lo.

— Ah…

— Posso, no entanto — acrescentou a rapariga —, aceitar outros métodos de pagamento.

— Como o quê?

Lithiel ergueu o braço direito, sacudindo o pulso para chocalhar os guizos.

— Se eu desvendar as verdadeiras intenções do Lee… terás de tirar-me isto.

— Não consegues tirar?

— Não…

— Porquê?

— Preciso das duas mãos.

— Eu posso tirar-te isso agora, não tens de esperar até…

— Tenho, sim — retorquiu a rapariga num tom incisivo — Eu dir-te-ei quando quiser que tires a pulseira. Combinado?

Franzi ligeiramente o sobrolho, estranhando aquele “método de pagamento”, mas aquiesci com um aceno de cabeça.

— O Lee e a Karenn estão à nossa espera no jardim — acrescentei —Vamos?

— Vamos — concordou ela, dando meia volta e encaminhando-se para a saída do dormitório. Eu segui-a apressadamente, esperando, pela segunda vez naquele dia, não estar a cometer um grande erro…

Lee e Karenn estavam sentados à sombra de uma árvore próxima da entrada do quartel, de modo que os encontrámos assim que chegámos ao exterior. Aproximamo-nos e o elfo interrompeu a conversa com a vampira para se erguer e lançar um olhar pouco amigável a Lithiel.

— Porque trouxeste essa mentirosa contigo, Eduarda? — perguntou-me assim que ficámos ao alcance da sua voz.

Vi, pelo canto do olho, a expressão da rapariga ensombrar-se e… Era impressão minha ou o cabelo dela estava a ficar vermelho?

— A Lithiel não é mentirosa — defendi rapidamente, antes que esta tivesse tempo de abrir a boca.

— É, sim! — insistiu Lee — Lembraste do que ela me disse ontem? Sobre o Nevra estar a pensar expulsar-me da Guarda? E que ele ia partir numa missão esta madrugada? Fui a correr feito maluco falar com ele para lhe explicar a minha situação e, afinal, era tudo mentira! Tudo! O Nevra não tem nenhuma missão fora da cidade, não tem intenção de expulsar ninguém e ainda me disse umas quantas coisas sobre ti, Lithiel!

— O que é que ele te disse? — perguntou a rapariga enquanto as raízes do seu cabelo aclaravam até ficarem cor de laranja. O que era aquilo…?

— Avisou-me para desconfiar de tudo o que te sai da boca! Disse que, para ti, mentir é tão natural como respirar e… e porque diabos está o teu cabelo a mudar de cor?!

Lithiel levou uma mão aos curtos cabelos vermelhos com raízes laranja e sacudiu-os como se estivesse a enxotar a cor. Os cabelos voltaram de imediato ao tom negro que conhecíamos e a rapariga deixou cair a mão com um sorriso tão forçado que parecia doloroso.

— Não te preocupes com o meu cabelo, não é algo que te diga respeito. Sobre as mentiras… não tens muita moral para falar, Lee!

— Do que é que estás a falar?

— Estou a falar do fedor a mentiras que te cobre! Vais negar que nos estás a mentir de alguma forma, neste preciso momento?!

O quê?! Vou negar, sim…!

— Mentes!

— Não, tu é que mentes!

— Mentiroso!

— Mentirosa…!

— Parem! — exclamei, batendo com o pé no chão — Parem com isso!

— A culpa é dela! — defendeu-se Lee, apontando um dedo acusador a Lithiel.

— Ah, claro, a culpa é sempre minh…!

— Eu disse para pararem! — berrei alto o suficiente para chamar as atenções em nosso redor — Eu não vos chamei aqui para ficar a ouvir-vos discutir sobre qual dos dois é o maior mentiroso! Chamei-vos para me ajudarem com a poção e é isso que vocês vão fazer! Toca a marchar para o mercado!

— Mas…! — Lee ainda tentou dizer.

— Agora!

Lee e Lithiel trocaram um olhar mortífero, mas começaram a encaminhar-se para a cidade. Soltando um pequeno suspiro, fui atrás deles.

— Bom trabalho a domar as feras — elogiou Karenn, colocando-se a meu lado.

— Obrigada…

— Como correu o teste? — perguntou, mudando descaradamente de assunto.

— Ah… correu bem. Entrei na Sombra…

— A sério?! Isso é fantástico! Vamos ser colegas de Guarda!

— É — concordei com um pequeno sorriso.

— Tu vais adorar a Sombra, nós aprendemos a fazer coisas tão giras! As nossas missões também são, de longe, as mais interessantes do quartel e…

Karenn continuou a tagarelar o resto do caminho, falando das missões, dos treinos, dos membros, saltitando de um assunto para o outro ao sabor das suas divagações. Eu ouvia-a com um sorriso nos lábios, divertida com o seu entusiasmo.

Chegámos, por fim, ao mercado e foi lá que passamos o resto da manhã enquanto procurávamos os ingredientes da poção do portal. Lee pagou tudo sozinho, fazendo-me sentir completamente agradecida e, ao mesmo tempo, terrivelmente endividada. O elfo afiançou-me que não havia problema e que não precisava de lhe devolver o dinheiro, mas insisti em compensá-lo de alguma forma no futuro.

Percorremos o mercado duas vezes, mas, mesmo assim, não conseguimos completar a lista. Lee explicou-me que a maior parte dos ingredientes em falta eram plantas ou minerais raros que deveríamos ser nós mesmos a procurar, pelo que não tínhamos mais nada a fazer ali.

— O que fazemos com os ingredientes que já temos? — perguntei enquanto atravessámos os jardins do quartel, apontando com o queixo para as bolsas que trazia nos braços.

— Guardamo-los — disse Lee.

— Não seria preferível entrega-los já ao Ezarel? — sugeriu Lithiel — É mais seguro…

— Ah… p-pois, t-talvez… — gaguejou Lee, atrapalhado — Eu só não… queria incomodá-lo… Ele está sempre tão ocupado…

— Eu também preferia ficar longe dele pelo maior tempo possível — admiti.

— Eu posso entregar-lhe os ingredientes por vocês, se quiserem — ofereceu-se Karenn.

— N-não é preciso! — negou Lee, com um sorriso amarelo — Nós tratamos disso.

— Nós? — repeti com uma pequena careta.

— Sim, tu vens comigo.

— Ah, não…

Lee ignorou-me e agarrou-me um pulso, puxando-me atrás de si pelos corredores do quartel. Karenn correu atrás de nós, protestando por o elfo estar a tentar excluí-la da aventura. Lithiel, por outro lado, deixou-se ficar para trás.

Lee arrastou-me para a chamada ala de Alquimia, um corredor longo, estreito e muito frio onde se alinhavam várias portas com janelas na altura do rosto. Nós espreitámos algumas, procurando Ezarel nos vários laboratórios, mas não o vimos em nenhum. Foi um homem com barbatanas nas orelhas e escamas nas maçãs do rosto que nos disse que o elfo estava no seu gabinete, na última sala do corredor. Dirigimo-nos para lá e Lee bateu hesitantemente à porta, abrindo-a quando uma voz no interior deu licença para entrar.

Ezarel estava sentado atrás de uma pesada secretária de madeira, segurando a caneta com que estivera a escrever e lançando um olhar inexpressivo à porta. Não parecia satisfeito com a interrupção, mas abriu um sorriso quando me viu entrar atrás de Lee.

— Cuspideira! O que fazes aqui? — perguntou antes de o sorriso lhe cair por terra — Não me digas que entraste na Absinto…

— Não, felizmente não — neguei com um sorriso cínico.

— Ah, felizmente…

— Viemos entregar isto — continuei, avançando para poisar as sacolas num espaço livre na secretária.

— O que é isso?

— Os ingredientes para a poção do portal. Não conseguimos encontrá-los a todos, mas queríamos entregar-te o que já temos.

— Ah, sim… A Miiko falou-me disto — confirmou Ezarel, espreitando o conteúdo de algumas sacolas — Podias ter encontrado a maior parte destes ingredientes nos nossos laboratórios, mas parabéns pelo esforço.

Eu lancei-lhe um olhar fulminante, sem querer acreditar que ele só me dizia aquilo agora, mas decidi não fazer comentários. Preferi, em vez disso, dar espaço a Lee para poisar as sacolas que carregava junto das minhas. O elfo aproximou-se com passos tão apressados que bateu com o pé numa das cadeiras dispostas diante da secretária de Ezarel, tropeçou, caiu para cima da mesa… e acertou em cheio no tinteiro que voou contra o peito do Diretor da Absinto, cobrindo-o de tinta negra.

— Ah! — guinchou Lee, horrorizado com o que fizera.

Ezarel mirou o peito manchado antes de dirigir os olhos verde-água para o outro elfo. Começou a erguer-se do seu cadeirão e eu recuei cautelosamente um passo. Desculpa, Lee, mas não pretendo morrer contigo…

— Como te chamas? — perguntou Ezarel, abrindo um sorriso perigosamente doce.

O meu amigo engoliu ruidosamente em seco.

— L-Lee.

O sorriso de Ezarel alargou-se.

— Tenho um trabalho para ti, Lee…

— A-ah, sim?

— Sim… Sabes? — Ezarel começou a desabotoar a camisa — Eu gosto imenso desta camisa. A Purriry fê-la para mim quando salvei a sua mercadoria de uma praga de traças. Foi um presente de agradecimento, feito com todo o amor e carinho. Imagina, por isso, quão furioso ficaria se lhe acontecesse alguma coisa…

Ezarel terminou de desapertar a camisa e fê-la deslizar pelos ombros, revelando o peito liso e o tronco magro. Sorrindo, estendeu a roupa suja ao elfo que parecia estar a hiperventilar.

— Podes limpá-la para mim?

Lee acenou veemente com a cabeça e apressou-se a pegar na peça de roupa. Ezarel fez um sorriso diabólico antes de acrescentar:

— O tecido é bastante delicado, sabonetes e detergentes poderão danificá-lo, por isso creio que seria melhor se usasses a língua.

— A… língua? — repetiu Lee, surpreendido.

— Estás a brincar, certo? — perguntei, decidindo intervir.

Ezarel olhou para mim de sobrancelha erguida.

— Não. Porque estaria a brincar?

— Não lhe podes pedir uma coisa dessas! — defendi.

— Porque não?

— A tinta vai deixá-lo doente!

— Problema dele.

Seu…!

— Está tudo bem, Eduarda — interrompeu-me Lee — Eu faço-o.

— O quê?! Não…!

— Eu não me importo — continuou o elfo, abrindo um pequeno sorriso — Se ficar doente, terei a desculpa perfeita para vir pedir uma poção de cura ao Diretor Ezarel… Se ficar com náuseas, poderei vomitar-lhe nas calças e vê-lo tirá-las. Se começar já, poderei tê-lo nu daqui a pouco!

Karenn soltou um sonoro par de gargalhadas do lado de fora do gabinete e Ezarel apressou-se a arrancar a camisa suja das mãos de Lee, soltando um grunhido arreliado.

— Engraçadinho — rosnou enquanto vestia a camisa — Sai do meu gabinete antes que decida punir-te pela audácia!

Lee ergueu as mãos em rendição e saiu. Eu segui-o com um sorriso nos lábios.

— Foi lindo — começou Karenn a gabar quando fechei a porta atrás de mim — É a primeira vez que vejo alguém baixar a crista do Ezarel e foi lindo!

— Obrigado — disse Lee, rindo.

— O meu irmão vai morrer a rir quando souber!

— Falando no Nevra… — intrometi-me — Eu preciso de lhe entregar a declaração da minha entrada na Sombra. Sabem onde posso encontrá-lo?

— Tu entraste na Sombra?! — admirou-se Lee.

— Ah, yah… Eu disse à Karenn, mas esqueci-me de te dizer, desculpa…

— Isso são ótimas notícias! — guinchou o elfo, abraçando-me com entusiasmo — Parabéns!

— Lee… Lee, não consigo respirar — arquejei, sufocada pelo seu abraço.

— Karma — sussurrou Karenn, abrindo um sorriso malicioso.


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 21/1/18]



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