Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 16
XV. Não devias passar muito tempo comigo.


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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O refeitório estava praticamente vazio, por isso não demorei muito tempo a recolher um pão tostado com manteiga e uma caneca de leite. Sentei-me na primeira cadeira vazia que encontrei e, dez minutos depois, estava pronta para regressar ao quarto. Vi, porém, a porta aberta para o exterior quando saí do refeitório. O sol entrava no átrio a jorros e a suave corrente de ar carregava um cheiro irresistível a terra e flores. Sair do quartel far-me-ia bem, precisava de me distrair e apanhar ar fresco, mas não tinha a certeza se podia sair. Keroshane tinha dito que eu podia andar por onde quisesse, mas… Ah, que se lixe…

Aproximei-me da porta para espreitar o exterior e tive de fazer uso de toda a minha concentração para não deixar cair o queixo. Era… lindo. Um relvado verdejante estendia-se em todas as direções, polvilhado com flores, arbusto e árvores de todas as cores e feitios. Uns quantos caminhos de pedra branca deslizavam por entre a relva e o maior deles estendia-se da entrada do quartel até um muro pouco mais alto que eu. Do lado de lá, uma cidade colorida e barulhenta efervescia com vida.

A minha vontade era atravessar o jardim a correr e ir explorar a cidade, descobrir todas as suas cores, barulhos e cheiros, mas não tinha a certeza de conseguir lidar com todos os humanoides que por lá havia. Já me era difícil lidar com os humanoides que passavam por mim ali, imagine-se num ambiente tão desordenado, e por vezes agressivo, como o de uma cidade. Para uma primeira viagem ao exterior, talvez devesse cingir-me ao jardim.

Dei rapidamente meia volta e fui a correr buscar os livros que Keroshane me entregara. Peguei em três e voltei lá para fora, procurando um sítio sossegado (escondido, por assim dizer) onde pudesse dedicar-me à minha leitura. Acabei por me sentar contra o tronco de uma árvore rodeada por alguns arbustos, ocultando-me da visão da maioria das criaturas que passavam por ali.

Eu limitara-me a pegar nos três livros que estavam no topo da pilha, de modo que só soube o que tinha nas mãos quando verifiquei as capas. “Grande Exílio”, “Manual de Mascotes” e “Titanomaquia”. Lembrei-me que Keroshane referira algo sobre mascotes, por isso decidi começar por aí. Não li, todavia, o livro até ao fim. O primeiro capítulo foi suficiente para ficar a saber o que eram mascotes: bichos de estimação criados em Eldarya que gostavam de presentear os seus donos com objetos encontrados ou mesmo roubados. Havia uma infinidade de mascotes diferentes e os restantes capítulos dedicavam-se a fazer descrições exaustivas de cada um e a dar instruções sobre como cuidar deles, assuntos que não julguei interessantes ou sequer necessários para mim.

Mudei para o “Grande Exílio”, um livro pequeno, mas absolutamente fascinante, que contava a história de como os faeries tinham sido perseguidos na Terra por humanos que invejavam a sua capacidade de canalizar Maana. Temendo a extinção, os humanoides decidiram fugir daquela realidade e refugiar-se numa dimensão paralela criada através da força mágica das mais poderosas raças faeries: Eldarya.

A história do Grande Exílio cativou-me tanto que quase desisti do sol para ir à biblioteca buscar um livro que relatasse o acontecimento com maior detalhe. Tinha, no entanto, um outro livro ali para ler, pelo que decidi dar primeiro uma hipótese à “Titanomaquia”. Se não me interessasse, iria então à biblioteca.

Acabei por ficar ali sentada mais um par de horas. A minha esperança de encontrar novas referências ao Grande Exílio na “Titanomaquia” não se realizou, mas fiquei tão enredada na nova história que nem me importei. O livro relatava a forma como os titãs, seres poderosíssimos vindos doutra realidade, tinham chegado a Eldarya com o intuito de consumir os cristais. A energia pura das pedras atraíra-os através de incontáveis dimensões, despertando a sua fome insaciável de poder e destruição. Os faeries fizeram tudo ao seu alcance para proteger os cristais e daí resultou a longa e sangrenta guerra a que chamavam Titanomaquia.

Estava completamente concentrada na minha leitura, horrorizada pela destruição de cinco dos dez cristais existentes naquele tempo, quando um conhecido tilintar de guizos me trouxe de volta ao tempo presente. O som aproximava-se como se estivesse a vir na minha direção e parou mesmo atrás de mim, do outro lado da árvore a que estava encostada. Segundos depois, uma voz baixa, maravilhosa, começou a cantar. Curiosa, fechei o livro e levantei-me, contornando rapidamente a árvore.

A rapariga que me dera a escova estava sentada contra o tronco da árvore, cantando para um bicho semelhante a um gato preto que segurava nos braços. Ela calou-se assim que me sentiu chegar, lançando-me um olhar algures entre o surpreendido e o desconfiado.

— Olá — cumprimentei-a, arriscando um pequeno sorriso.

O gato preto ergueu a cabeça ao som da minha voz e começou a bufar na minha direção, assustando-me com a reação agressiva. A rapariga fez-lhe rapidamente umas carícias calmantes entre as orelhas, mas o bicho não ficou muito mais descansado.

— O que é que tu queres agora? — perguntou-me ela num tom de voz que expressava o seu descontentamento. Não parecia muito animada por me ver, ao contrário de mim, que me sentia estranhamente aliviada. Ela parecia uma rapariga humana da minha idade e isso transmitia-me uma estranha sensação de segurança. Junto dela, quase me podia esquecer que não estava no meu mundo.

— Desculpa se estou a incomodar, mas estava a ler do outro lado da árvore e ouvi-te cantar… Tens uma voz muito bonita.

— Tenho a que me convém — disse com um encolher de ombros antes de descer o olhar para o livro na minha mão — Pareces empenhada em cair nas mentiras deste sítio.

— D-desculpa?

— O livro que tens na mão… é a “Titanomaquia”, não é?

— É, sim…

— Não devias lê-lo. Não te faz bem.

— Porquê?

— Porque tudo o que está aí escrito é mentira.

— Como é que sabes? — perguntei, franzindo ligeiramente o sobrolho.

— Investiguei.

— E o que descobriste?

A rapariga fez um pequeno sorriso mordaz.

— Descobri o suficiente para nos condenar a todos. A propósito, ouvi dizer que apareceste do nada na sala do cristal. Isso é verdade?

— Ah, sim… é verdade.

— Interessante… — murmurou, mirando-me atentamente dos pés à cabeça e detendo-se na minha mão direita — O que são essas ligaduras na tua mão?

— Queimei-me.

— Como?

Hesitei na resposta, perguntando-me se deveria esconder essa informação a par com o próprio ferimento, mas concluí que não faria diferença. Ela teria apenas de perguntar a Eweleïn ou ao chefe duma Guarda para ficar a saber.

— A poção para encontrar Maana teve uma reação um pouco… diferente do habitual — admiti.

— A sério? Porquê?

— Ninguém sabe, a Eweleïn ficou de estudar o caso — respondi, decidindo ocultar a parte do roubo. Ela não precisava de saber isso.

— Muito interessante… — murmurou a rapariga ao mesmo tempo que um grito estridente soava não muito longe:

— EDUARDA!!

Voltei-me na direção do berro, vendo uma rapariga ruiva com orelhas de coelho correr na minha direção. Ela abrandou e parou a apenas alguns passos de mim, apoiando as mãos nos joelhos enquanto tentava reaver o fôlego.

— Encontrei-te… finalmente — celebrou por entre arquejos — Não sabia… onde estavas…

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei, surpreendida com tanta pressa.

— Não, não — negou, ainda a arquejar — Queria só… transmitir-te um recado da Eweleïn — endireitou-se, inspirando profundamente para se recompor — Ela gostaria que fosses visitá-la à enfermaria com a maior brevidade possível. Pediu-me, aliás, para te levar até lá. O meu nome é Ykhar, já agora, e sou a moça de recados da Guarda Reluzente. O Kero já te explicou o que é a Guarda Reluzente, certo?

— Sim, explicou — confirmei, esboçando um sorriso enquanto pensava numa boa maneira de me escapar daquela situação — Eu irei ver a Eweleïn assim que possível, de momento estou ocupada…

— A fazer o quê? — perguntou Ykhar descaradamente.

— Estava a conversar com a… hum… Como é que te chamas mesmo? — perguntei à rapariga sentada atrás de mim.

Ela não respondeu, estando, de repente, muito concentrada em acariciar o gato no seu colo. Não ergueu sequer os olhos na minha direção, agindo como se não tivesse ouvido a pergunta de todo.

— Lithiel — disse Ykhar, num tom de voz grave e algo impessoal — Ela chama-se Lithiel… ou pelo menos é isso que ela diz!

Lithiel pareceu mirrar contra o tronco da árvore, mas não disse nada. O ambiente entre ela e Ykhar parecia francamente tenso e eu estava já a ponderar uma retirada estratégica quando a ruiva se voltou para mim, exibindo uma expressão rígida como cimento.

— O recado está dado, por isso deixo-vos continuar a vossa conversa. Só te aconselho a não passares muito tempo com ela, Eduarda. Sabe-se lá que mentiras te poderá contar!

Dito isto, foi-se embora com passadas largas e apressadas. Eu virei-me lentamente para Lithiel, querendo continuar a conversa, mas sem saber o que dizer para acabar com aquela atmosfera constrangedora.

— Ela tem razão, como sempre — disse Lithiel de súbito, poisando o gato no chão e levantando-se. O bicho começou de imediato a bufar na minha direção enquanto a dona sacudia o pó do rabo — Não devias passar muito tempo comigo.

— O quê? Porque não? — perguntei, admirada.

— Não sou de confiança.

— Acho que ninguém neste sítio é.

Lithiel fez um pequeno sorriso triste.

— És esperta — elogiou — Talvez te safes.

Deu-me uma palmadinha amigável no ombro em jeito de despedida e começou a afastar-se. O gato continuou a bufar até ela o chamar, recuando alguns passos cautelosos antes de dar meia volta e partir como um raio atrás da dona. Eu fiquei a vê-los afastar-se até soltar um pequeno suspiro desapontado e encaminhar-me para o quartel. Adeus oportunidade de conhecer mais um pouco daquele mundo… ou talvez devesse dizer “conhecer de verdade aquele mundo”.

Se o que Lithiel dissera era verdade e o que estava na “Titanomaquia” era mentira, tinha de ponderar a hipótese de a informação que encontrara nos outros livros ser mentira também. Miiko e os seus capangas continuavam a tentar guiar-me como a uma dócil ovelha na direção que mais lhes convinha e eu começava a ficar verdadeiramente cansada daquilo. Muito cansada mesmo…

A minha ideia era ir até à biblioteca e questionar Keroshane sobre a validade daqueles livros, mas entretanto ocorreu-me que também ele poderia estar a ser enganado. Lithiel não dissera que precisara de investigar para descobrir a verdade? Não dissera, aliás, que descobrira o suficiente para a condenar? Talvez eu não fosse a única a quem estivessem a ocultar a verdade…

Um cheirinho a comida quente e saborosa preenchia o átrio quando entrei no quartel, escapando-se das portas abertas do refeitório. Aparentemente, estivera mais tempo no jardim do que julgara e era já hora de almoçar. Comecei a encaminhar-me para o salão, mas descobri-me incapaz de entrar quando vi a quantidade de humanoides lá reunidos. Pareciam ser o dobro da noite anterior, maiores e mais assustadores do que nunca! Eu não queria entrar ali sozinha! O meu estômago, no entanto, doía-me como se estivesse a tentar sair do meu tronco, esticando-se na direção em que sabia haver comida.

“Vou levar os livros ao quarto e já voltamos”, garanti ao órgão faminto, dirigindo-me para os dormitórios. A minha decisão, porém, não pareceu agradá-lo porque foi doendo mais e mais a cada passo que dava para longe da comida.

Larguei os livros em cima do colchão e voltei rapidamente para trás, esperando que agora o refeitório estivesse menos lotado. Só tinham passado dez minutos, mas… podia ser que tivesse sorte.

Não tive. O número de humanoides não só era o mesmo como a fila para os tabuleiros se estendera até à porta. A minha vontade de entrar naquela confusão era mínima, mas estava com demasiada fome para aguentar esperar. Aceitando o meu triste destino, coloquei-me atrás de um casal de elfos e esperei a minha vez de ser servida. A fila, todavia, avançava tão lentamente que não demorei a ficar impaciente e de mau humor. Como se isso não bastasse, um grupo de rapazinhos barulhentos colocou-se atrás de mim, torturando os meus ouvidos com as vozes altas, os gritos e os risos agudos. Estava prestes a virar-me para trás e pedir-lhes que se calassem quando as palavras de um deles me chamaram a atenção:

— …a manhã toda a cheirar os armários da Eweleïn. Parece que roubaram alguma coisa da enfermaria durante a noite.

Senti um arrepio gelado enrolar-se na boca do estômago e virei discretamente a cabeça para descobrir qual deles estava a falar.

— A sério? O que há para roubar numa enfermaria? — perguntou um rapazinho alto e magricela com um pequeno chifre na testa.

— Não sei, não me disseram — respondeu o rapaz com orelhas de lobo a espreitar por entre o cabelo negro e vermelho — O Nevra só me pediu para identificar o cheiro de pessoas que lá tivessem mexido. Vampiro idiota, deve achar que sou algum cão de caça agora…

— Se ele te chamou para ajudar é porque o teu olfato é melhor que o dele, não?

— Bem… sim…

— E o ladrão? Descobriste quem foi? — perguntou outro rapaz com orelhas de lobo.

— Não, mas agora conheço o cheiro. Vou saber quem é o desgraçado assim que o vir.

Os rapazes soltaram uma data de exclamações alegres, felicitando o amigo pelo seu trabalho como investigador, e eu voltei a olhar em frente, mordendo nervosamente o lábio inferior.

Leiftan estava metido em grandes sarilhos…

— Devem ter roubado uma coisa muito importante para o próprio Nevra liderar a investigação, não acham? — comentou outra voz atrás de mim quando as felicitações terminaram.

— Talvez tenha sido uma das poções super poderosas do Ezarel?

— O Ezarel não ia guardar uma poção super poderosa na enfermaria…

— Isso é o que ele quer que a gente pense!

Os rapazes continuaram a discutir teorias sobre o objeto roubado, mas eu não lhes prestei mais atenção. Preferi focar-me no que eles disseram sobre “o próprio Nevra liderar a investigação”. Eu já estava habituada a fazer disparar o alerta de segurança máxima daquele sítio, mas tinha de admitir que era um pouco estranho colocar o chefe de uma Guarda a investigar o roubo de meras amostras de pele. Eles poderiam facilmente repô-las tirando-as da minha mão (embora eu estivesse a tentar evitar isso…) e não me parecia que o conhecimento que o ladrão poderia retirar das amostras fosse colocar alguém em perigo, inclusive a mim. Não havia razão nenhuma para Nevra estar a investigar aquele crime. Sendo assim… porque o fazia? Porque Miiko mandara? Talvez, mas isso ainda não respondia à questão. Estaria Nevra a tentar “impressionar-me” para me convencer a entrar na sua Guarda? Não, não creio que o seu orgulho de galã o permitisse descer tão baixo. Então porquê…?

— Cuspideira, que coincidência encontrar-te aqui!

Eu senti um arrepio gelado subir-me pela espinha, eriçando-me os pelos do corpo todo ao mesmo tempo que me pregava ao chão.

Ah, não… Ele, agora, não!


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 5/12/17]



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