A Aurora de Castelobruxo - A Harry Potter Story escrita por ThaylonP


Capítulo 23
O Encontro




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A garota atravessou o gramado, subiu as escadas pelo outro lado, sempre olhando por cima à procura de pessoas que podiam flagrá-la. Ela se esgueirou por entre as brechas da pedra, esperando um casal de fantasmas atravessar a passagem. Mesmo a tendo visto, não falaram nada. Estava beirando uma estátua agora, e utilizou-a para cobrir-se no corredor. Do lado oposto, a professora Negrini pedia que os alunos se retirassem do refeitório para juntarem-se a contagem dos estudantes. Quando a mulher não viu mais ninguém, desceu as escadas principais em direção a clareira. Aurora optou pelo inverso, se apertando entre a pedra que compunha a escola para adentrar o salão. 

Por pouco, antes que Rodinhas a visse, cruzou a entrada, alojando-se atrás da porta. O pequenino passou marchando, consultando um fantasma sobre o avistamento de alunos lá dentro. 

O lugar estava lotado. À sua frente, enxergou um mar prateado, a um ponto tão grande que além das fileiras que comportavam os espectros fingindo sentarem-se para aproveitar um almoço, havia alguns mais acima, e sentados no ar, formavam três camadas de acomodação, uma em cima da outra, sem se importar com as vigas e os archotes que os atravessavam. Além da vista quase cegante, havia o cheiro nauseabundo que vinha das mesas e dos pratos flutuantes, como se servidos de carniça. Observando com mais atenção, percebeu que era isso mesmo. Os pratos estavam cheios de pernis esverdeados, espigas de milho pretas, sucos passados, pães mofados e massas encardidas. Tentou prender uma ânsia, e por pouco não conseguiu.

A bruxa não precisava ficar tão quieta, pois os espectros conversavam num tom altíssimo, gargalhavam, discutiam, todos muito empolgados, assim como as reuniões das casas todos os dias. Até acreditou, que se gritasse, ninguém a ouviria fazê-lo. Ainda assim, mesmo que pudesse seguir sem alardar com seu barulho, ainda corria o risco de ser vista. E sem saber onde procurar, podia se deparar com um professor alerta nos corredores.

— Psiu – sussurrou uma voz bem rente a sua orelha.

O corpo de Aurora ficou perto de solidificar-se numa pedra de gelo. Havia algo em seu estômago, como se tivesse engolido um sorvete sem se preocupar em dissolvê-lo na boca. Olhou para baixo, tremendo, e viu que uma cabeça a atravessava, na altura do umbigo. O rosto tinha traços infantis, incluindo um nariz gotejando e uma boca com dentes faltando.

— O que tá fazendo aqui escondida? É brincadeira de quê? – perguntou o fantasma.

Com a cabeça passando através dela, falando naquela voz ecoada, ficava difícil não gritar. Ao menos, ele falava baixo, quase num sussurro, como se quisesse fazer parte do jogo de Aurora.

— N-não é brincadeira – conseguiu dizer quando a respiração voltou ao lugar. – Tô procurando uma coisa.

— Ah – abriu uma boca exagerada de espanto. – Que coisa?

Aurora olhou-o de cima abaixo, já que agora ele flutuava na sua frente, balançando as pernas no ar.

— Coisa minha – respondeu ela, cortando o garoto, voltando a pensar em seu plano.

O menino baixou a altitude, entrando no solo, deixando só os olhinhos ficarem para o lado de fora.

— Me conta – disse com a voz ainda mais abafada, agora pelo piso. Parecia emburrado, sobrancelhas levantadas. – Prometo que não conto pra ninguém.

Aurora estalou uma ideia.

— Tá bom, tá bom... é... você – pensava na maneira correta de chegar no que precisava, talvez fosse melhor se fizesse ele pensar que era uma brincadeira. – Tá bom, vou te dizer, mas vai ter que ser um jogo, tá bom? – sussurrou para ele.

A porta que lhe servia de esconderijo rangeu, o coração de Aurora pulou para a boca. Sorte que era o vento.

— Tá! Eu gosto! – rebateu o rapazinho.

— Tá certo, que ótimo. O nome do jogo é... Você Viu Alguém Assim – disse, fazendo um alarde para dizer o nome. O menino não compartilhou, estava confuso. – Já jogou esse?

— Não – respondeu, insatisfeito com o título do jogo.

— É muito divertido – tentou ela, fingindo mais animação. – É assim, cada um diz uma coisa que viu, e o outro responde se viu uma coisa igual. Quem tiver visto mais coisa, ganha! Eu começo. Você v...

— Não, eu quero começar! – rebateu, cruzando os bracinhos.

Aurora revirou os olhos.

— Tá bom, pode começar – retrucou, impaciente.

— Eu vi... hã... – o menino pensou um pouco, olhou para trás e Aurora viu que a criança escolhera o óbvio. – Vi um senhor sem barriga!

A figura que apontava era um fantasma largo, com uma elevação que indicava uma barriga alta, porém que estava carcomida, formando um buraco. Aquilo lhe deu arrepios.

— É aquele ali – apontou, sem dificuldade.

— Ah – o menino ficou triste dela ter adivinhado. – Não gosto desse jogo.

— Calma – respondeu. – Agora é a minha vez, deixa eu...

— Não quero mais jogar.

— Não! – percebeu que estava perdendo a paciência, então retornou-a com um aperto com o corpo todo. – Cada um tem direito de jogar uma vez. Não acha?

— Hm...

— Eu acho! – respondeu, antes dele. – Tá bom, eu vi uma menina toda coberta de roupa – explicou, fazendo um gestual da touca e da echarpe. Esperou que tivesse sido clara.

A criança pensou um bocado, apertando a testa com muitas pequenas rugas prateadas.

— Já sei, essa é fácil – começou, e Aurora sentiu o peito arfar de alívio. – É aquela menina do banheiro... a estranha...

A arritmia voltou, agora estava perto de alguma pista. Sentiu como se tivesse ganhado na loteria.

— Isso, onde ela tava? Em qual banheiro!? – perguntou, apressada, porém o menino mantinha a maior calma do mundo, com o indicador sobre os lábios.

— No banheiro lá d...

— Miguel! – chamou uma voz atrás dele.

Vinha de uma outra mulher translúcida próximo a uma das mesas. O cabelo estava preso num coque, carregava uma vassoura numa das mãos e tinha um enorme apreço ao olhar para o filho.

— Tava te procurando. Nossos pratos chegaram – falou, bem mais gentil do que o primeiro grito. Virou-se para Aurora em seguida e disse: – Desculpe se está te incomodando, é um menino curioso. Pare de incomodar a bruxa escondida, Miguel!

— Ah, mãe, a gente tava jogando – reclamou o garoto, no começo de uma meia-volta para partir. – Tchau, moça escondida – falou, flutuando para chegar próximo da mãe.

Aurora abriu a boca para pedir que o deixasse ficar, para que contasse mais coisas, mas não conseguiu; as costas do garoto virados para ela não permitiram. Junto com a mãe, carregavam uma marca de um negrume, como a de um chão próximo a uma explosão. Provavelmente, indicava a forma como tinham morrido: atingidos por um raio.

Banheiro, voltou a focar, pensando em quantos haviam para procurar. Só nas torres haviam dois em cada andar. Isso se fosse numa torre. Podia ser qualquer latrina nas masmorras, ou algo assim. Era a primeira pista que tinha, e era vaga demais para seguir qualquer coisa. Então, resolveu dar um salto de fé, seguindo a passagem mais próxima, ligada a torre noroeste.

Atravessou a passagem, inferiu na escada espiral, alcançou o primeiro andar. Não havia outra alma ali, os passos ecoavam. Conferiu as salas só como checagem e partiu para os banheiros. Nada, nem no banheiro masculino. Resolveu subir mais um andar, e por fim, depois de uma caçada curta, não viu ninguém. É claro que não seria fácil assim. Foi para o terceiro, e avançou pelo corredor mais rápido do que as outras vezes, descrente que haveria algo. Estava certa, pois nem as classes nem os banheiros abrigavam o que procurava. Entretanto, ouvindo algo dentro da última sala, resolveu conferir uma segunda vez. Viu a classe de Transfiguração, os poleiros em cima das carteiras, as gaiolas e viveiros expostos nas laterais abrigando ratazanas e camundongos. Nada por ali. Avaliou a mesa do professor, cuja cadeira tinha um mecanismo para erguê-lo sobre a mesa. Até que viu, próximo do quadro-negro, além dos gizes mortos, algo pingando do teto. Uma gota que vagarosamente escorria do andar de cima, formando um rastro. Alguma coisa vazava no quarto andar.

Aurora apressou-se a subir as escadas em espiral, e pouco depois da passagem estreita, tomou um susto. Uma senhora fantasma atravessou-a, resmungando o incômodo sobre o estado dos banheiros. A garota sentiu a espinha gelar, mas seguiu em frente, agora também querendo conferir do que se tratava. Já no corredor, a porta do banheiro com uma poça de frente a ela. A menina acelerou os passos, mas assim que começou a ouvir os sons do que estava lá dentro, foi mais devagar. O ruído era como engasgo, uma garganta arranhando, semelhante a alguém forçando vômito. Aproximou-se, pisando na água, querendo discernir melhor o que ouvia, porém, assim que tocou na maçaneta para virá-la, ouviu uma voz. Estava rouca, como alguém falando algo depois de ter sido sufocado, porém o timbre lhe lembrava de alguém. O nome que chamou, também.

— Matheus? – perguntou Letícia.

A resposta de Aurora foi franzir o cenho com muito mais força do que achou que era capaz. Ela estava do outro lado daquela porta, atrás de uma tranca que não conseguira virar. Mas estava ali, e isso que importava. Poderia confrontá-la, sozinha, de uma vez por todas.

A garota de dentro chamou pelo rapaz outra vez, e Aurora conteve a resposta. Precisava abrir a porta, surpreendê-la enquanto ainda achava que estava falando com o amigo. Pensou em algo, mirou na fechadura e cochichou:

— Alohomora.

A tranca sacudiu, o mecanismo pareceu se alimentar de si próprio, ficando ainda mais robusto. Do lado de dentro, a voz ficou ainda mais rouca, agora recheada de um tom de alerta:

— Quem está aí!? – questionou, sem resposta. – Quem quer que seja, vai embora!

Aurora quase a respondeu, mas preferiu ser mais direta. Se não destrancava, teria que arrombar. Tomou distância, mirou na trinca outra vez e dessa vez conjurou alto.

— Reducto!

Diferente de quando estava demonstrando o feitiço a Inara, a magia funcionou, estourando a fechadura, empurrando madeira para trás, lançando a maçaneta para longe. A porta abriu numa fresta e Aurora não perdeu tempo, entrando com sua arma em punho. Segurou com as duas mãos mesmo com o punho esquerdo dolorido, apontando à frente, esperando deparar-se com Letícia encarcerando o amigo.

Porém, viu outra coisa.

Uma criatura estava jogada ao chão, abaixo de uma pia que transbordava. O rosto comportava características anfíbias, com olhos saltando do rosto, e diversas manchas roxas marcando uma pele ensebada. Os cabelos assemelhavam-se a algas, se destacando da cabeça cinzenta com um verde pastoso; no pescoço, buracos transversais parecendo guelras, e no tronco, a estrutura de seios femininos, mas coberta de uma membrana que apagava algumas curvas. As mãos eram longas, os dedos delgados, unidos por uma formação de cartilagem. As pernas, contudo, destacavam-se mais do que qualquer coisa, pois além de não existirem, davam lugar a uma cauda púrpura traçada por uma espinha dorsal de peixe, polvilhada de escamas. Próximo ao ser, algumas roupas molhadas espalhadas, como se retiradas as pressas.

Fosse o que fosse, a criatura deveria ter feito algo com Letícia, pois cada uma daquelas peças lembrava ela. A echarpe, a touca, as mangas longas e até as luvas. E se tivesse feito algo com ela, teria feito com Matheus também.

Embora o ser estendesse uma mão vazia protegendo-se da investida de Aurora, a outra tateava, a procura de algo no chão. Estava acuada, apesar de tudo, porém não tanto quanto a menina que invadira. Tremia o Orabutã na mão, as pernas não mantinham estabilidade, a cabeça não parava de ferver perguntas. Ainda assim, estava atenta, e quando a viu tocar um cajado esbranquiçado logo abaixo da pia, gritou:

— Não se mexe! – gritou com o quanto conseguiu arranjar de força. – E-e-eu vou atirar.

O ser a ignorou, empunhando-o com dificuldade. Ergueu na direção de Aurora, e mesmo isso não a fez cumprir sua ameaça. Estava apavorada, impressionada, paralisada. De braço estendido à frente, com a mesma voz apertada dentro da garganta, percebeu que o ser conjuraria um feitiço. A menina fechou os olhos, esperando o pior.

— Re... reparo – e seguido da palavra, um som de madeira junto de metal se embolou.

A bruxa abriu os olhos, vendo que a mágica não estava direcionada a ela e sim a porta ao fundo, que agora recompunha-se para sua forma original. Fechou-se numa batida suave, porém a criatura manteve o cajado a postos.

— Musrus – anunciou chiando, e a porta ruidou uma tranca de cadeado.

Aurora não entendeu. Por que aquele ser trancara-a junto consigo? Se tinha a capacidade de atacar, por que não o fez? Assim como essas, não sabia a resposta de uma outra centena de perguntas que tinha em mente. Como aquilo entrara no colégio? O que era? O que tinha feito com seu amigo?

Contudo, ao dar mais uma olhada no cajado, reconhecendo-o, lembrou-se do que o lojista dissera sobre as ferramentas escolhendo os bruxos. A hipótese pareceu insana.

— Letícia? – a boca abriu devagar.

A criatura gemeu a rouquidão da glote mais uma vez, arrastou-se na poça que formara perto da pia. Deixou a água cair no rosto, sentindo um alívio momentâneo.

— É você mesmo? – tentou outra vez, se aproximando com cautela.

— Sou – rebateu, com um tom de dor na voz. – Isso sou eu.

— E – Aurora não conseguia manter a boca fechada. – o que é... você?

A criatura que afirmava ser Letícia guinchou algo semelhante a um deboche. 

— Achei que ficaria óbvio por causa da cauda – respondeu.

Não era como se a bruxa não houvesse pensado nisso. Ela simplesmente não achava ser possível, enganada ao se basear no que conhecia de um mundo que há muito deixara de ser real para ela.

— Você é uma sereia – a garota tentou confirmar.

— Sereiana – corrigiu Letícia –quer dizer, minha mãe é. Meu pai é bruxo, como eu e você.

A menina sentiu-se desnorteada. A cabeça tonteou, levou-a de um lado para o outro e por pura sorte, ela conseguiu manter-se de pé. Nunca tinha achado tão difícil acreditar em uma coisa, mesmo que essa coisa estivesse em sua frente, falando com ela, reafirmando que era real. 

— Mas... – balbuciou. 

A criatura não respondeu. Tentou se mover no espaço confinado demais para seu tamanho. Olhando de pé, via que só sua cauda ocupava o espaço de mais uma pessoa estirada no chão. Arrastou-se com dificuldade, banhou-se mais da água, e em seguida, tossiu outra vez.

— Não acredito que estourou minha tranca daquele jeito. Eu devo estar muito mais fraca do que pensei que estava – concluiu para si própria, os grandes olhos escuros piscando devagar. Aurora ainda não recuperara o controle do queixo, então a garota continuou: – Eu sei que parece loucura. E é mesmo.

— Mas... como você... por que... – engasgou, como se tivesse desaprendido a falar.

— Não queria que ninguém soubesse – Letícia respondeu, assumindo que era essa a pergunta que Aurora queria fazer. – Ninguém tem que me ver assim. Pode baixar o cajado, por favor?

A bruxa mal percebera que ainda estava com o braço estendido. Ainda não havia tirado os olhos daquela formação de escamas que escalava o abdômen da garota. Deixou o cajado mais baixo, tentando se acalmar, devolver-se ao lugar de antes. Estava ali para encontrá-la. 

Então por que parecia que tudo havia mudado? 

— É sua verdadeira forma? – conseguiu perguntar, recuperando a coerência. 

— De certo modo – rebateu ela. – O rosto que você conhece é meu rosto também.

A pia não parava de derramar água, e Aurora finalmente notou que os sapatos estavam encharcados. Entre o som constante daquele fluir, isso era o que menos importava.

— Isso é muito confuso – admitiu. 

— É – reconheceu Letícia. 

Aurora estava tentando reformular uma perspectiva. Todo aquele tempo... 

— Então, o que Miranda disse... – lembrou-se da conversa na antessala, algumas coisas encaixaram. – que você tinha algo particular, algo que ela precisava esquecer mais tarde. Era disso que tava falando?

— Eu não sei dizer – respondeu, baixando o fronte. Aurora percebeu que em sua testa havia uma formação cascuda, e que esta estendia-se para as bochechas, dando um formato bem mais anguloso para o rosto. – Miranda sabe de muita coisa, e essa é uma delas. Pensando bem... se ela disse que precisava esquecer, talvez seja isso mesmo.

Agora que entendia melhor, Aurora recobrava partes da sua intenção anterior, porém, ainda cheia de brechas, ficava difícil ter a mesma determinação. O cajado baixou por completo, mirando o chão, acompanhando o braço junto do corpo.

— E o que são essas outras, então? – Aurora quis saber.

— Olha – começou, em meio a um suspiro que fez o ruído como o de um sopro na superfície de um rio. – Não sei se devo te dizer essas coisas. É algo p... 

— Por favor – pediu –, eu preciso entender. Entender de verdade.

Um outro suspiro veio.

— Acho que ela tava falando do Luka, quero dizer, do meu namoro com ele – admitiu, e passando para o próximo tópico, tudo pareceu mais complicado de dizer. – Não foi nada agradável. De nenhuma forma. Talvez no começo... mas acho que nem lá. Tudo já começou meio ruim, eu só não prestei atenção nos detalhes que me diziam isso. Acho que a Miranda estava falando disso – a voz embargou outra vez, adquiriu ainda mais rouquidão, soando quase sobrenatural. Aquela lembrança lançou-a em outro assunto, um que precisava abordar, e que só poderia naquele momento. – Olha, Aurora, eu sei que me odeia – começou, e Aurora lembrou-se de sentir isso outra vez, mas não conseguiu. – e eu... não te culpo. Eu fiz algo horrível com seu amigo, e... eu sinto muito, muito mesmo – falava a verdade, os olhos negros lubrificavam. – mas tudo estava em jogo. Tudo isso estava em jogo.

— O quê quer dizer? – perguntou.

— Luka me disse que precisava fazer Matheus aprender, depois do que aconteceu na Avenida 25. E quis me convencer a fazer...

— O que você faz de melhor – lembrou da frase de Luka, e como não entendera-a na época. – Eu ouvi vocês conversando. Do quê ele tava falando?  

— Vocês chamam de "canto da sereia", mas é um encanto natural nosso – explicou, sem muito orgulho. – Posso usar em qualquer forma, mas isso força um pouco a aparência humana, e alguns dos meus traços aparecem quando uso isso demais ou quando não tô muito bem.

Aurora começava a sentir uma queimação na estômago. Aquela era a parte complicada. 

— E você usou isso no Matheus? – questionou, ríspida.

— Usei, mas só no começo – justificou, sabendo que não era uma desculpa válida. – Depois... não consegui mais.

— Por quê?

— Eu... achei injusto. Ele é tão ingênuo, mas de um jeito bonito – a menina fitou um ponto à frente. – Não dava pra continuar fazendo isso com ele, a gente tava mesmo virando amigo.

Aurora se inflamou.

— E por que você continuou? Não sabia o que ia acontecer? Não sabia que ele ia apanhar, que ia ser espancado? É isso que você faz com seus amigos? – cuspiu tudo de uma vez, segurando o cajado com firmeza novamente.

Letícia deixou que o estouro da garota passasse, respirou pesado antes de responder.

— Ele, o Luka, tinha me ameaçado – começou, e Aurora não percebeu, mas largou o aperto. – Disse que ia mostrar pra todo mundo quem eu era de verdade... disse que... – engasgou outra vez, seguida de uma tosse. – mostraria pra todo mundo que eu era uma aberração. Então, eu tive que fazer, mas nem precisei continuar usando. Matheus gostava de mim, por isso ficou perto. E mesmo gostando de volta, acabei machucando ele – Letícia disse com tanto arrependimento, que aqueles globos cheios de reflexo que tinha no rosto pareceram derreter. Ela fungou pelas guelras, já que o calombo onde o nariz deveria estar ficava vazio. – Às vezes, a gente acaba machucando nossos amigos.

Aurora sentiu a frase cortar, e por pouco não deixou Orabutã cair no chão molhado. Baixou a cabeça, caminhou pelo banheiro, inquieta. Depois, percebeu que precisava sentar-se para continuar ouvindo tudo aquilo. Ela o fez, sentando-se ao lado da menina, encarando as cabines de banheiro em vez da garota. A touca, que agora boiava com o fluxo d'água, tocou sua perna.

— Era pra isso que serviam as roupas? Você queria prevenir que as pessoas te vissem enquanto você encantava ele?

— Não, não precisaria, é só que... pra eu adotar a aparência que você está acostumada, preciso de energia. E eu não tava tendo nenhuma nos últimos meses porque...

— Você não tava comendo – completou Aurora, se lembrando dos pratos cheios à frente da garota depois da conversa com Luka.

— É – confirmou a menina, como se tivesse mais além disso.

As duas ficaram em silêncio por um momento, e Aurora deparou-se com seu reflexo na água que formava a poça.

— Por que fez isso? – começou a falar, e Letícia deu espaço à fala. – Você deixou que ele controlasse o que você podia ou não comer... e isso te deixou doente. Todo esse tempo achei que você tava se fazendo de vítima, usando essas coisas para parecer mais triste do que estava, por ter terminado. Queria mostrar o quanto ele tava te afetando – agora, com a verdade, toda a realidade para trás parecia distorcida. – Mas não. Você tava mal. E por quê? Por quê você continuava com ele quando tudo tava ruim? Era amor? 

— Não – a resposta veio de imediato. – Não era. Pelo menos... não da parte dele.

— Então, você acha que estava apaixonada?

— Acho – a voz tinha dúvidas.

— Como? Como você podia tá apaixonada por ele?

Aurora era nova demais para entender qualquer coisa sobre amor. Mas sabia como ele deveria parecer, ao menos pelo que via nos filmes de romance, nas séries que tinham casais. Como as duas coisas podiam parecer tão distantes estando tão próximas? 

 – Eu me pergunto isso todos os dias – ela respondeu, dessa vez fitando a garota. – Todos os dias. Acho que no começo, me interessei porque ele era diferente dos outros, sabe? O único que não cedia ao meu encanto, por causa da Oclumência. Ele sabe reconhecer quando querem mexer com a mente dele – a fala se apertou, ficou pequena de novo. – E sabe reconhecer quando pode mexer com sua. Depois que eu percebi... não sei. Eu só não conseguia me livrar. Achava que precisava dele pra tudo. Achava que, sem ele, eu não era nada.

— Tá brincando!? – Aurora retrucou, indignada. – Sem ele, você era literalmente uma sereia!

— Não é a sereia que todos esperam ver, Aurora – explicou a garota. – A sereia de verdade é a Letícia que anda nos corredores, que exibe o topete, que é monitora da casa de Jaci... que namora com Luka Braz – Aurora percebeu que ela estava na beirada do choro, mas que o segurou por senti-lo chegar. – Miranda conseguiu me ajudar um bocado, mas ainda é muito difícil entender que já posso fazer algumas coisas.

— Tipo comer – a menina ainda estava inconformada. Não só com aquela informação, mas com todo o resto. – É por isso que você veio pra cá?

— É, e o Matheus veio junto para me ajudar, mas eu sabia que ia me transformar, então pedi para ele ficar do lado de fora.

Aurora sentiu o coração apertar ao lembrar do amigo. 

— Então ele não sabe? – quis saber.

— Não, não sabe – revelou, e depois completou: – Mas sabe que não estou comendo o bastante. Às vezes, ele me segurava nos corredores antes que eu desmaiasse. Eu disse a ele o porquê, que tinha a ver com Luka, e ele me disse o mesmo que todo mundo, mas eu não ouvi, é claro – lamentou. – Depois, começou a me enviar comida à noite, pelo Chico. 

Aurora soube do que se tratava, e que Matheus aprendera a lidar com o mico apenas para conseguir fazer essas missões. Isso a deixava ainda mais deprimida. 

— Você não enviou as ameaças, não é? –  quis confirmar, já sabendo a resposta. – Depois da Caça às Bruxas?

— Não! – disse, depois tossiu, ainda sem forças pra tamanha intensidade. – Ainda tentei contatar o Matheus pra que ele te avisasse sobre o que eu sabia. Podia te dizer, mas eu não sabia o que você faria se eu fosse falar contigo – a ouvinte apertou ainda mais o corpo, oprimida. – O Matheus estava me evitando, com razão, mas... – Letícia fitou o chão, tentando se lembrar. – quando conseguia dizer qualquer coisa, ele me lembrava da promessa que tinha feito contigo. Então, eu enviei a carta. Acho que ele sabia que era minha.

— É, eu também soube – admitiu Aurora.

Ele não quebrou a promessa. Só tava tentando me avisar...

— Aonde ele está agora? – a sereiana perguntou. 

Aurora quis chorar. As lágrimas se fizeram nas pálpebras, o rosto esquentou para comportá-las. Entretanto, ela as segurou. Não podia agora. 

— Eu não sei – respondeu, e pensou em notificá-la da situação da escola. – Alguns alunos sumiram. Acho que o Matheus está entre eles.

Se eu não tivesse tão certa de que estava com você... talvez...

Letícia se compadeceu da notícia, aflita. Aurora levantou-se de onde estava, as pernas lavadas da água que escorria. 

— Não se preocupa, estão fazendo a contagem, vão encontrar eles – disse à outra, oferecendo um acalento que a própria não tinha. 

De todas as coisas que podia ter no momento, conforto não entrava na lista.

— E o que você vai fazer agora? Quero dizer, sobre mim? – Letícia perguntou, com um olhar desconfiado e assustado. – Você vai contar pra alguém?

De pé, Aurora olhou-a mais uma vez. Ainda era difícil relacionar que a menina que a garota fizera de inimiga todos aqueles meses e a sereia encolhida no chão do banheiro eram a mesma pessoa. 

Sentiu-se estúpida. O choro veio outra vez. 

— Não, não vou – respondeu, como se para acalmar-se. Mais uma vez, foi solícita. – Mas preciso avisar Miranda que você está aqui. Ela vai saber o que fazer pra te ajudar. Você precisa estar na contagem. 

Letícia sorriu, fraca, mas aliviada. Aurora entendeu quantos passos havia dado além da conta. Antes que pudesse sair para cumprir o que disse que faria, a outra ainda pediu:

— Pede... se puder, pede ela trazer alguma comida.

Aurora confirmou com a cabeça. 

— Eu vou, e é bom que você coma tudo.

— Eu vou – rebateu, mais uma vez, sorridente.

Letícia ergueu o cajado outra vez, apontou para a porta. A tranca soltou, a passagem se abriu e Aurora atravessou, com uma despedida desajeitada para a menina. Atrás dela, o feitiço foi disparado outra vez, impedindo que o próximo entrasse.

Finalmente, pôde chorar. 

O rosto ficou tomado, invadido pela torrente que pingava de seus olhos. Escorria pelo nariz, pela lateral dos olhos, pendia do lábio superior e despencava até juntar-se à poça que manchava o chão abaixo de si. Ela tinha entendido tudo, e olhando para trás, via como não entendera nada. 

Aurora deixou o andar, cabisbaixa. Embarcou nas espirais direto para o primeiro piso, atravessou a refeição dos fantasmas e alcançou as portas duplas. Da clareira, alguns professores a notaram, incluindo Ruína e Miranda. A mulher de vermelho alcançou-a primeiro, observando seu estado, questionando onde havia se metido. A outra, mostrava mais preocupação, perguntando porque havia se distanciado num momento tão complicado. A garota, sem saber o que responder, apenas disse o que precisava, abaixando para cochichar no ouvido de Miranda. A mulher a encarou, estranhando, mas assim que vasculhou a superfície da mente da menina, entendeu do que se tratava, pedindo uma licença para Ruína ao retornar o castelo.

A mulher o levou até o restante dos alunos trajados de vermelho, e assim continuou a contagem. Deu falta de outros quatro membros de Anhangá, até ver Nino sendo arrastado para o grupo pelo professor Aquino, contabilizando apenas outras três perdas. O menino colocou-se entre os estudantes até alcançar Aurora, e quando perguntou se havia encontrado Matheus, ela respondeu que não. Os dois se abraçaram, compartilhando suas frustrações.

— Encontrei Luka, mas... 

Aquilo foi o bastante para mais um disparo de preocupação. O corpo ficou febril de imediato, e não parou de tremer até Ruína gritar que todos deveriam ficar em seus dormitórios, até que as crianças fossem encontradas. Anhangá se moveu pela grama num tom mórbido, cada um carregado de seus temores em relação àquilo. Aurora passou pela Rocha Convocatória outra vez, pensando se teria de usá-la caso os amigos não fossem achados.

Tudo piorou quando chegou ao quarto. As meninas foram se acomodando uma a uma em suas devidas camas, enquanto Aurora mal sabia onde deitar. Encarou o beliche ao fundo, porém preferiu voltar à sua, mais uma vez adotando uma porção de lágrimas. 

Idiota, disse a si mesma quando percebeu que as colchas estavam arrumadas e sua amiga não estava lá. Aquele era o resultado de uma porção de escolhas erradas que acompanharam uma outra penca de pensamentos enganosos. Pareceu ainda, que havia sido avisada de todos eles, e que mesmo assim ignorara cada recado, cada alerta, cada discurso, cada história. 

Deitou-se na cama da antiga companheira, pensando se em algum momento pararia de chorar. Debateu-se nela, vendo que não havia perspectiva para isso. Teria de esperar, teria que torcer para que encontrassem os amigos. Não tinha poder para nada. Não tinha nada. 

A noite caiu, e Aurora ouviu as movimentações do lado de fora. Os professores voavam em suas vassouras, acendiam seus cajados, vasculhavam na mata. E até agora, não havia sinal de nenhum deles. 

Estava deitada de lado, encarando o nada, esperando que o travesseiro a permitisse dormir, prometendo que se sonhasse com os dois, poderia mudar tudo que fizera até ali. Torcia para que o mundo dos sonhos lhe desse a capacidade de viajar no tempo. Contudo, continuou de olhos abertos, vendo a escrivaninha encará-la de volta no escuro. 

Algo nela lhe irritava; um globo com uma fumaça vermelha dentro. Um presente para uma escolhida. Agora, um monte de vidro que não servia para nada além de alvo de seus palavrões. A menos que funcionasse. 

Houve um pequeno lapso de esperança quando levantou-se da cama e agarrou o objeto. Mostrava o que ela mais gostaria de ver, e não havia mais nada no caminho de seus pensamentos. Queria ver apenas uma coisa, e só precisava que o Projector mostrasse isso.

Levou-o até a cama, cobriu-se com o cobertor vermelho, apertou-o entre os dedos. Fez uma curta prece, esfregando com as duas mãos sem ver o que estava embaixo. Sabia que a fumaça de dentro tremia, dançava, caminhava. Mas não queria a fumaça. Queria vê-los. Caso conseguisse os ver, talvez pudesse ir atrás deles, resgatá-los. A menina apertou os olhos, como alguém que tenta uma lâmpada mágica, e mais uma vez, esperou ver alguma coisa por trás do vidro.

Mas não havia nada. Apenas o mesmo de sempre. 

— São a coisa que eu mais quero ver! – exclamou para o objeto, esfregando com mais força. O vidro pareceu que ia se partir. – Me mostra isso! Me mostra onde eles estão! Onde eles estão? – questionou, a palma ficando quente ao roçar a superfície do vidro. – Onde eles estão!? Me mostra! Me mostra!

Aurora não percebeu que gritava. Ouviu passos ao redor, as meninas do quarto queriam entender o que estava acontecendo, se aproximando da cama. 

— Onde estão? Me mostra agora! – urrou mais uma vez. 

 Uma das meninas alcançou a cama, preparava uma fala preocupada. 

— Aurora, você está b... 

— ME MOSTRA! 

De repente, sentiu que estava sendo puxada, de uma vez só para dentro do vidro. O corpo ricocheteou, rodopiou, espichou, encolheu e se refez, causando-lhe um desconforto em cada vértebra, e em seguida fazendo-a vomitar. A pasta foi regurgitada de sua boca, e caiu no meio de uma terra úmida, repleta de lascas de galhos e cogumelos. 

Ela não estava mais no dormitório. 

A respiração instável, entrecortada, acelerada. Encarou ao redor, preocupada. Viu troncos, ramos, folhas, todas enegrecidas devido ao breu. Era uma floresta. Olhando o padrão de como se apresentavam, sentiu que conhecia aquele lugar. Passara por ali, antes de alcançar os botes que a levaram até Castelobruxo. Antes que pudesse concluir um pensamento sobre onde era o lugar que mal conseguia ver, viu luzes acenderem. 

Ao redor dela, focos de incêndio começaram a aparecer, em meio a troncos cujas copas ficavam muito acima de sua cabeça. À princípio, pareciam chamas desacompanhadas, surgindo do nada, porém, com mais atenção no olhar, percebeu que um corpo aparecia logo embaixo, esguio. O tronco era curto, junto de membros finíssimos, mas que abrigavam enormes pés tortos. Aurora percebeu num espanto: os pés estavam virados, com os calcanhares para a frente. 

Percebeu-se dentro de um círculo das criaturas, que agora iluminavam o bastante para que Aurora reconhecesse uma outra figura, de pé à sua frente. Sapatos lustrosos, calças marrons, colete amarrotado cobrindo uma camisa amassada. Segurava um cajado retorcido cujo núcleo pingava da ponta como uma lamparina abrigando uma pepita ouro-âmbar. Nunca vira aquela forma antes, não reconhecia a postura. Contudo, lembrava-se daquele rosto. Os mesmos traços cansados, as enormes olheiras, a barba desgrenhada. 

Era Javier. 

 


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