Instantes de calefação. escrita por meudescontraste


Capítulo 5
O que gritava seu silêncio?




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/737753/chapter/5

Se eu me concentrasse bastante, ainda podia sentir de uma forma palpável a sua pele contra os meus dedos. Ainda podia sentir seu hálito fresco na ponta da minha orelha, a sua risada rouca presa na garganta vibrando em seu tórax.

Se eu soubesse que teria sido a última vez, não me deixaria ser inundada pelo sono, não me contentaria apenas com um beijo seco na mandíbula, enquanto ele resmungava sobre o tempo.

Se eu soubesse que era a última vez viraria sua pele, sua voz arranhada, seu cheiro, seu suor. Eu iria querer que suas moléculas se espalhassem por cada parte sob minhas roupas. Agarraria seu rosto até que meus dedos se afundassem, esmagaria meu corpo contra o dele até que virássemos apenas um.

Mas eu não sabia.

Virei para o lado da cama, a mão dele em minha cintura, meu pé fora do cobertor. As luzes da varanda amenizadas pelas cortinas empalidecidas. Adormeci como em todas as outras noites, sentindo a respiração dele em minha nuca.

Jamais imaginaria que seria a última vez.

Acordei no dia seguinte, a minha última manhã com gosto de normalidade. Saboreei a cama, o sol, o barulho da existência humana nas ruas. Saboreei o meu esticar na cama, sentindo os músculos se estenderem e a sensação de falta ao olhar para o lado e não o ver.

Estranhei sua ausência, mas respeitei seu espaço. Preparei um café, torradas, fritei quatro ovos: dois para mim, dois para ele.

Arrumei a mesa, peguei uma das torradas e a mordisquei. Meu dejejum era o gosto de massa e manteiga. Familiar.

— Victor?

Andei pelo corredor até o escritório. Em três segundos tudo na minha vida mudaria. Em dois segundos eu perderia uma parte de mim para sempre.

— Vi...— Minha última palavra foi seu nome interrompido.

Lá estava o homem que murmurou frases irreconhecíveis enquanto dormia comigo horas atrás. Lá estava o homem que colocava a mecha do meu cabelo entre meus olhos e esticava meu cacho até o final do meu queixo. O homem que disse que me amava há duas noites com uma corda em volta do pescoço.

Até hoje eu não consigo abrir a boca para expressar em palavras o colapso de sentimentos dentro de mim. Eu só nunca vou entender quais foram as palavras assassinas que saíram da minha boca e quais as palavras que poderiam salvá-lo e que jamais saíram.

Eu queria entender como ele conseguiu dormir ao meu lado sabendo que era a última noite, contentando-se com o encostar de sua boca levemente em minha pele, se podia me ter toda. Se podia sentir o meu corpo uma última vez e talvez assim, com meus dedos insistindo que imergisse em mim, ele pudesse se convencer que não precisava se sentir desabrigado na casa da sua alma, se meu próprio ser serviria de abrigo seu.

Quando foi que gestos, berros, desconexões entre nós, algumas taças quebradas contra a parede, palavras que nunca deveriam sentir o gosto da língua e ser cuspida pra fora, eram linhas se acumulando e se modelando em uma corda?

Eu não sei qual foi o olhar, a desaprovação, a falta de atenção e ouvidos que o levou a ter certeza que a única solução seria um nó. Nós tínhamos tudo: uma mesa, cadeiras. Se ele preferisse, poderíamos conversar dentro do chuveiro, enquanto eu ensaboava seu corpo.

Eu deveria ter quebrado o muro que sentia erguido sobre nós. O que eu esperava? O que eu esperava exatamente para encarar que a falta de ponte ligando nossos corações era um grito? Era urgência?

Talvez eu esperasse que ele fizesse alguma coisa e só. Ou na pior das hipóteses, me acostumei a ignorar os detalhes: o gosto de álcool constante na sua boca. Seu olhar de dor ao me encarar, como se me pedisse desculpas. Sua voz extinta pelos corredores da casa.

Eu deveria ter reparado sobre o quão insignificante foi seu aniversário e sua falta de força constante para se arrastar até a cozinha e me abraçar pelas costas como sempre fazia.

Eu notei sua exaustão até em respirar. Eu notei seu tórax subindo e descendo quase como se fosse um sacrifício, mas eu não sabia ao certo o que fazer.

Não tínhamos uma mesa e cadeiras? Não deitávamos na mesma cama?

Havia tantos cômodos, tantos espaços que ele poderia me dizer o quão vazio estava dentro de si.

Ou será que ele disse?

Eu nunca vou saber ao certo seus motivos. Na verdade, eu nunca vou saber com quem eu me casei e quem eu sou!

Quem eu sou senão uma egocêntrica incapaz de reparar quando seu marido te olha com sede de morte e você não nota?

Quem eu sou quando não digo nada sobre seu cheiro de cachaça e sua pele enrugada?

Quem eu sou quando durmo ao seu lado e sinto seu calor e não digo o quão me sinto abrigada com seu corpo? O quanto a sensação do meu amor é sufocante, mas ainda assim eu nada falava? 

Quem eu sou senão apenas a superficialidade de um café da manhã com torradas e ovos?

Quem eu sou senão o acenar de cabeça para o seu silêncio?

Quem eu sou senão a corda?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Instantes de calefação." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.