Instantes de calefação. escrita por meudescontraste


Capítulo 4
Apenas amor (ou a falta deste).


Notas iniciais do capítulo

Uma vez eu estava voltando da faculdade e recitei uma história aos sussurros enquanto andava na rua. Foi uma história que veio do nada e lembro que algumas pessoas me olharam. Eu cheguei a tropeçar, inclusive, destruindo toda a minha dramatização.
Nunca neguei ser louca, e ser maluca às vezes é um privilégio para fazer essas coisas.
Eu sabia, inclusive, da possibilidade dessa história voltar porque Àgape foi uma personagem que já existia e significou muito para mim, porém estava esperando mais alguma inspiração da vida.
(P.S: Não sei de quem é o quadro, quem souber por favor me avise para eu creditar.)
Bem, aqui está:



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Uma vez eu conheci uma garota chamada Àgape.

Conhecer alguém cujo o nome denomina o maior grau de amor, em um  fase que havia completa falta deste, pareceu um paradoxo encaixável.

Eu estava sentada naquela festa, ouvindo a música ecoar nos meus ouvidos. Sentia frio, sentia uma tonteira também devido ao álcool. Mais acima de tudo eu sentia uma necessidade enorme de preencher um vazio na alma.

Quanto tinha sido a última vez em que eu estive bem? Talvez há dois anos quando eu namorei um rapaz com a pele bronzeada e os dentes caninos afiados que me dizia o quanto eu era linda e como queria estar comigo para sempre. Naquela época eu ainda morava com meus pais e tinha o acolhimento da minha casa, da minha família, dos meus amigos para qualquer obstáculo que a vida me oferecesse.

Se eu não tinha um emprego? Tudo bem. Se eu não estava animada para curtir meu aniversário? Alguém me arrastava para pular em bar em bar e repor meu ânimo para a vida. Tudo sempre ficava bem.

Eu tinha apoio em todos os cantos, em todos os âmbitos. Até mesmo para ir ao Sul cursar a faculdade.

Eu não me arrependo, eu precisava crescer. Só não contava que seria tão absurdamente doloroso. Meu namorado não aguentou nem seis meses da minha ausência e já encontrou outra pessoa me fazendo questionar sobre o amor. Meus amigos aos poucos foram parando de me ligar, até que eu recebia apenas algumas mensagens nas redes sociais em dias aleatórios - só de alguns dos vários amigos que eu acreditava ter. E meus pais tinham um orgulho absurdo de mim o qual me impedia de voltar.

Na verdade, eu não queria voltar. Eu estava no curso certo, tirando notas boas e apaixonada pelo que escolhi graduar. O grande problema era o resto. Era o quase nada que havia sobrado da minha antiga vida e agora eu precisava me firmar no meu presente buscando novas maneiras de me preencher.

Então eu saí no meu aniversário, sozinha. Coloquei um vestido branco justo e saltos vermelhos. Soltei os cabelos e os enrolei deixando cachos definidos nas pontas e fui. Fui viver a vida e buscar novos significados.

Era meu aniversário. Era um novo começo.

Mas mesmo com toda a força interna que havia me levado até ali, de alguma forma eu me senti cansada e sentei nas poltronas. Para viver uma vida melhor da que eu tinha como parâmetro, eu precisava me superar. Então eu permiti aos poucos que uma força transcendental me preenchesse e eu sorri.

Levantei-me das cadeiras agindo por essa força e dancei. A dança como um renascimento. Não me importava se eu estava um pouco exagerada balançando os cabelos, com as mãos nos altos, os olhos fechados e o sorriso aberto.

Eu estava ficando bem. Eu ficaria bem.

Precisava daquilo, daquela música, daquela festa, sair sozinha. Eu precisava de mim mesma.

Não tinha ido para beijar outras bocas, nem apenas curtir, eu tinha ido por uma simbologia muito maior do que aquilo.

E nada poderia estragar isso. 

— Desculpe. – Uma jovem disse ao tombar comigo. Balancei a cabeça levemente como um “tudo bem” e virei as costas continuando a minha dança louca e ascendida.

Sentia até as pontas dos meus dedos vibrarem junto ao meu coração acelerado. E senti também a minha cintura sendo tocada levemente.

Virei-me. Era a mesma garota.

Ela não falou nada, apenas começou a dançar comigo e inicialmente eu estranhei, mas por que não? Ergui a minha mão e toquei em seu pescoço puxando-a para perto de mim. Nossos corpos se uniram e uma dança que pendia do desequilíbrio ao sensual, uma dança metáfora de mim mesma, nos unificou.  

Eu reparei nela só depois, quando já não focava em meus dramas existenciais. Quando senti as pontas macias do seu cabelo em meus dedos, quando seu cheiro de canela e cigarro inundaram minhas narinas. Quando seu olhar penetrou de uma maneira que eu quis beijá-la ali mesmo.

 Eu a reparei porque ela me reparou. Porque ela quis ficar comigo mesmo depois deu ter recusado seu beijo quando ela tentou, ela não desistiu de mim de uma maneira fácil, descartável.

Fomos ao bar, bebemos, rimos e ela tocou em minha mecha falando o quanto gostava das minhas pontas cacheadas e do meu cheiro floral. Do quanto eu tinha um sorriso que lembrava infância, mas um olhar que remetia os desejos do corpo.

Além disso, quando ela seu ausentou para ir à toalete, uma música de fundo ganhou um tom triste e eu olhei para o relógio vendo que já era meia noite e que naquele momento eu já não era mais a aniversariante. Um medo tomou conta de mim, porque aquela data foi o meu impulso para seguir e buscar algo novo e melhor para minha vida. Questionei-me internamente se eu seria capaz de sentir aquela sensação de plenitude ainda como eu tanto havia almejado.

Seria muito ruim voltar a sensação de vazio, afinal, existia a possibilidade de me perder de novo nele. Só que dessa vez para sempre. Então, era muito importante para mim aquele dia. A minha afirmação pessoal. Olhei para trás e pensei em dançar mais uma música, ou sumir, eu havia adorado a garota, mas...seria justo comigo me entregar tão fácil assim?

Antes que eu respondesse ela apareceu com os cabelos bagunçados, com a mão na nuca e um sorriso tímido que não combinava com o olhar decidido.

Quando chegou, ela não me perguntou se eu queria dança, ou beber mais alguma coisa, ela disse:

— O que aconteceu para você estar com esses olhos tristes?

E eu fui pega desprevenida por uma estranha que reparou mais em mim do que qualquer colega da faculdade, que quis saber mais de mim do que qualquer amigo que consegui manter. Do que até mesmo meus pais que sempre estavam felizes e não pensavam na possibilidade d’eu não estar.

Resisti dizendo que estava bem, mas ela sorriu em descrença colocando uma das mechas soltas do meu cabelo atrás da orelha:

— Está nítido que você precisa de alguém para te ouvir. Estou aqui, abra seu coração.

Abri a boca para tentar recusar, mas meus olhos já estavam úmidos. Eu queria de verdade muito alguém para falar sobre todo meu drama. E lá estava ela, parada em minha frente me dando toda a atenção que eu nem merecia receber.

Comecei com um simples resumo de como tudo havia mudado, mas depois eu dei espaço para uma versão mais sincera do meu caos. Então falei da minha vida, do que eu havia perdido, do quanto estava sendo difícil seguir em frente e me afirmar como mulher. Falei do meu ex companheiro, de quem sentia falta e não entendia como aquele amor todo havia dissipado em apenas seis meses. Falei dos meus amigos e chorei muito nessa hora. Só não mais sobre o quanto eu me sentia assustada com a vida adulta e a falta de colo.

Ela me ouviu, colocou um dedo sobre uma lágrima e depois beijou as outras, parando antes de beijar uma que escorreu até a minha boca. Ela me respeitou, não se aproveitando do meu momento de fragilidade e disse que tudo ficaria bem no final. Que eu encontraria a minha felicidade novamente e por mais que houvéssemos acabado de nos conhecer, ela torceria veemente para eu ser feliz e entender sobre a vida. Sobre essas coisas tristes que acontecem, mas que fazem parte.

— Vai ficar tudo bem. – Repetiu e me abraçou com força, afastando-se depois para pedir mais uma bebida.

— Qual é o seu nome mesmo? – Eu perguntei entre uma música e outra, e a garota sorriu falando duas vezes sem que eu entendesse até ela se pender para a minha direção, afastando o cabelo da minha orelha e repetir em um sussurro: - Àgape.

Nunca odiei tanto o traço dramático da minha personalidade, porque mesmo ela sendo incrivelmente linda com aqueles cabelos curtos e repicados, aquelas roupas masculinas, aquele cheiro... foi o nome dela que fez com que eu avançasse para seu pescoço.

Ali, era eu sendo patética e desesperada por amor.

Àgape apertou minha cintura enquanto eu sentia o gosto da sua pele com a língua. Ela me puxou para mais perto de si e eu me entreguei.

Eu me entreguei ao seu beijo lento e intenso e senti o gosto de cigarro na ponta da sua língua. Sentia sua pele junto a minha e eu quis mergulhar nela. Quase como se eu precisasse ser salva.

Àgape sabia tocar em uma mulher. Sabia fazer com que qualquer uma não se satisfizesse apenas com sua boca limitada a uma área publicamente permitida.

Ela sabia te deixar louca para se sentir cada vez mais amada.

E então eu não só me entreguei ao seu beijo.

Não sei exatamente como paramos no meu quarto, como aguentei andar pelas ruas pulsando em desejo por ela. Eu só sei que quando eu deitei na minha cama e ela tirou cada peça da minha roupa, eu nunca em toda a minha vida senti como se alguém quisesse meu corpo como ela queria. Eu explodi em êxtase mais de uma vez e ela deixou que eu retribuísse o seu toque.

Não bastava ela fazer eu me sentir gostosa, Àgape foi a mulher mais maravilhosa que já deitei na cama. Seu corpo curvilíneo, seu gosto, sua maciez. Eu avancei nela com sede e bebi a melhor sensação ao ouvi-la gritar meu nome mais de uma vez.

Quando já estávamos exaustas demais, eu abracei o seu corpo e afundei na escuridão por trás das minhas pálpebras.  

Eu havia me apaixonada por uma mulher de uma forma tão rápida e intensa que na minha cabeça dramática o seu nome nunca fez tanto sentido. Aquela noite foi a melhor noite da minha vida, e dizer isso é afirmar que eu superei todas as noites da melhor fase desta.

Dormi pela primeira vez depois de muito tempo, plena.

Assim que acordei eu a procurei entre os lençóis vermelhos e não a encontrei. Meu coração deu um pulo, pateticamente, em desespero pela ausência de Àgape.

Desci as escadas lentamente e encontrei um jarro coberto por lírios azuis no centro da mesa. O jarro era meu, porém os lírios eram dela.

Meu sorriso foi ainda maior do que na noite anterior, porque era exatamente assim que eu me sentia ontem: um jarro vazio. E Àgape havia preenchido esse jarro com a essência dela.

“Voltarei quando todos os lírios murcharem, amor”

E eu esperei flor por flor murchar. Eu esperei com uma sensação de triunfo e esperança me dominar.

Eu estava tão vazia antes que cada dia quando uma flor murchava eu me sentia pulsar em felicidade. Quando ela voltaria?

Até que sobrou curiosamente uma única flor. Que parecia tão viva, mais tão viva, que eu cogitei esvaziar a água do jarro várias vezes para matá-la e ter de volta a minha fé de futuro.

Dias se passaram, as aulas voltaram, os amigos permaneceram ausentes, meus pais queriam boas notícias, e só boas, da faculdade. O dinheiro estava escasso, a casa bagunçada igual a minha mente. A ausência dela foi dando espaço para a ausência em minha alma novamente. Estava voltando a me sentir vazia, triste e melancólica.

Eu tinha ido para aquela festa por mim mesma e acabei a noite na cama com outra mulher.

É muito fácil você buscar sua alegria nos braços de alguém. Arranjar coragem para seguir em frente sozinha é muito, muito complexo e requer uma força que eu reuni durante meses para dançar naquela pista.

Joguei toda essa força fora quando encostei minha boca vermelha nos lábios dela.

O quão patética eu fui?

Contei a uma estranha a minha vida e entreguei minha autonomia de uma maneira tão fácil... me expus, fui transparente quanto ao que eu sentia. Quanto aos meus medos, meus anseios. E eu pensei que a forma que ela me tratou foi como uma resposta dessa exposição, como se cada beijo em meu corpo fosse ela tentando dizer que eu seria amada novamente. Que eu merecia ser amada novamente.

E eu acreditei. De verdade.

Como uma pessoa depois de ouvir tudo aquilo, permaneceu presente mesmo não querendo nada além de uma noite com uma garota que lutava contra a si mesma?

Seria muito cruel da parte de Àgape se deitar comigo, já que não pretendia ficar.

Ela não faria isso, eu deixei bem claro desde o princípio as minhas próprias vulnerabilidades, mas ela... ela pareceu tão perfeita que eu não notei que ela poderia sim ser um tanto desumana. Afinal, todos nós temos as nossas predisposições a crueldade às vezes, eu não a julgo por isso, mas será que já não bastava tudo que estava me acontecendo? Por que veio e deixou tudo pior?

Eu reuni o resto da minha dignidade e ignorei a possibilidade daquela única flor murchar. Peguei a flor e fui até a lixeira e meu corpo ardeu em raiva, tristeza profunda e descrença na humanidade:

O lírio azul era de plástico.


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