Do Outro Lado do Véu escrita por Miahwe


Capítulo 4
Always with me




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/733401/chapter/4

— Seja bem-vindo! – falou na entrada da ponte onde os deuses e youkais atravessavam para irem à Casa de Banho de Yubaba. Tinha sido posta naquele serviço porque Rin ficou doente e, consequentemente, jogou o trabalho para si. – Seja bem-vindo, espero que se divirta! Sejam bem-vindos – Era apenas isto que repetia e repetia abanando o leque de cores vibrantes junto aos sapos que estavam ao seu lado.

            Deuses de todos os tipos passavam por si, alguns eram apenas máscaras, outros trajavam roupas exageradas, possuíam formas e tamanhos tão diferentes que Chihiro sempre se impressionava aos vê-los.                 — Sejam bem-vindos, que tenham uma boa noite! – repetiu e repetiu.

            Um deus de roupas chamativas e rosto sombreado se aproximou de si e Chihiro sentiu um arrepio subir a espinha. – Po-posso ajudar em algo?

            —Humana... – O deus falou simplesmente e abriu a boca, uma grande e cheia de dentes estranhos.

            Gritou o mais alto que pôde e, então acordou chorando e gritando.

            ­— Chihiro, nada disso é real – fora o que sua falara mãe quando contava-lhe sobre os sonhos.

                                               ***

O que é aquilo? Pensou enquanto corria e olhava para trás para ver se a Coisa tinha desaparecido. Todavia não, estava lá, correndo atrás dela com quatro pernas azuis que ela nem sabia de onde haviam surgido.

Sentia vontade de gritar, mas não havia nela fôlego algum. A base da ladeira estava perto, Chihiro não pensou duas vezes e virou à esquerda.

As pessoas que passavam de carro ou a pé não pareciam nota-la ou sequer notavam o monstro que corria atrás de si, no entanto, naquele momento a única coisa que importava era ela conseguir fugir, se salvar.

Cada vez que olhava para trás parecia que o monstro se aproximava cada vez mais.

Precisava distrair aquela Coisa, não queria morrer, não quereria ser pega. Quando assistia filmes de aventura, terror ou ação com Misaki, muitas vezes vira a personagem principal fugir de algum monstro ou inimigo, sabia apenas visualmente que a personagem estava em desespero na fuga, mas nunca – até agora – tinha sentido ou imaginado como era ser perseguido. O coração pulsando por todo o corpo, o ar que mal sentia entrar e sair dos pulmões, a adrenalina apressadíssima que corria pelo corpo a fazendo correr o mais rápido possível, tudo a ajudava a fugir, principalmente o medo de ser pega.

Olhou ao redor em busca de algum caminho que pudesse tomar. Virou à direita, sem ter raciocinado direito, apenas por instinto, entrando no bosque que estava em reserva na região. Por ali, se conseguisse acharia um caminho que a levaria ao Grande Parque. Correu por entre as árvores que na aquele breu eram apenas sombras que emitiam leves ruídos por conta da leve brisa que roçava nas folhas, sombras que se estendiam por todo lado, com galhos pendurados e em diversos formatos e ângulos, Chihiro teria medo, se assustaria com eles, isso se seu medo pela criatura que estava atrás de si não fosse muito, muito maior. Saltou e tropeçou em raízes. Os sons de galhos e folhas secas explodiam sob seus pés apressados, os braços estendiam-se na frente para tentar evitar esbarrar nas árvores ou nos galhos que se espalhavam naquela escuridão. 

O barulho do monstro atrás de si não cessava e Chihiro estava começando a ficar sem ar e forças para continuar correndo. Fugia as presas sem noção de direção quando avistou uma luz, não muito longe e correu até a ela. Era uma das trilhas do parque. Agradeceu mentalmente, a ninguém em especial. Caso desfalecesse ali, alguém ao menos a iria encontrar.

— Chihiro, cuidado! – escutou soar de algum lugar, mas não via ninguém, na verdade, com aquele escuro, não via quase nada. Mal tinha percebido que havia diminuído o passo para procurar o dono da voz e quando olhou para trás, que avistou o monstro ultrapassar as árvores, quebrando os galhos e gritando quando os galhos se embrenharam no manto colorido que vestia, não conseguiu mais correr; as pernas pararam de lhe obedecer e os pulmões clamarem por oxigênio.

            Chihiro não conseguiu se equilibrar ao tropeçar em um pequeno buraco e caiu de quatro no chão onde pedras pequenas e galhos machucaram levemente as suas mãos com o impacto. O coração acelerado e o sangue a correr com desespero pelas veias, tentou levantar novamente, o medo a mantendo ativa, tropeçou antes mesmo de começar a correr por conta da pressa e nervosismo, caiu no chão, lágrimas começaram a acumular na garganta, mas chorar não a manteria livre daquela Coisa. Sentiu uma dor no estômago, que a deixou momentaneamente tonta, tinha esquecido que estava sem comer a horas, o órgão doía e comprimia-se deixando a garota nauseada. Respirou fundo, sem saber o que fazer, não iria conseguir se pôr de pé novamente e muito menos correr. 

Virou para encarar a Coisa que a perseguia e quando sentou-se desajeitada, lutando para controlar o enjoou e o medo, viu um outro corpo sair de um dos lados da trilha e ficar em pé na sua frente. A luz que iluminava a trilha era falha e não conseguia dominar o escuro, e Chihiro apenas notou que era um ser humano pelo contorno do corpo, talvez um dos guardas que patrulhavam por ali. Estava a salvo, era o que esperava.

Seus olhos ficaram turvos e quando escutou o monstro urrar, não conseguiu evitar o enjoou. Virou para o lado e vomitou a própria bile a contragosto, os braços que a apoiavam no chão tremeram e Chihiro deixou-se cair no chão, cansada e rendida.

Escutou passos leves estalando nas folhas secas que se espalhavam pelo chão e sabia que de alguma forma o monstro tinha ido embora e que a pessoa que a pouco tinha entrado em sua frente estava se aproximando, limpou a boca com as costas das mãos, ainda tonta.

—Ei! – escutou em um tom desesperado. - Chihiro, está tudo bem?! - Aquela voz, ela conhecia.

— Me ajude — falou segurando-se nos braços do garoto, que foi momentaneamente iluminado pela luz do poste antes da mesma queimar com um chiado, então Chihiro perder a consciência.

                                               ***

            Puxou o ar para dentro dos pulmões preguiçosamente enquanto acordava. Apertou os olhos e os abriu lentamente. Sua mente ainda envolta pela nuvem do sono foi inundada por uma luz alaranjada que a fez piscar várias vezes. Sentia o estômago doer e precisou os lábios tentando evitar a náusea que começava a crescer em sua garganta.

            Como vim para aqui?

            Quando as pupilas se acostumaram com a luz e o escuro ao redor, Chihiro encarou um rosto conhecido e notou que a cabeça estava deitada no colo do mesmo pelo modo como estava deitada. Kohakunushi ressonava como uma criança, a cabeça apoiada na mão, está que tinha o cotovelo em cima do encosto do banco.

           Franziu a testa e de forma automática bocejou acordando o rapaz que a encarou grogue. Chihiro levantou-se, sentando no baco de pernas cruzadas, envergonhada por ter acordado no colo do rapaz.

— Como... eu vim parar aqui? – perguntou lacônica sem o encarar.

            — Eu a trouxe aqui depois de despistar aquele youkai – ele respondeu com a voz sonolenta e a garota enrubesceu ao imaginar-se sendo carregada por ele.

            — Obrigada, Kohakunushi – foi o que disse e então a mente processou o que lhe foi dito por completo: - Um youkai? Um espírito?

            — Sim – ele respondeu e se inclinou ao lado do banco onde estavam a pouco dormindo e levantou uma pequena sacola de papel marrom. – Aqui, pode comer.

            A barriga de Chihiro uivou a delatando e a mesma aceitou a sacola agradecida. – Dangos?

            — Você não gosta?

            —Hum, sim gosto, obrigada – falou e colocou um na boca sentindo o gosto doce do bolinho que pousou em seu estômago como se pertencesse aquele lugar, inibindo aos poucos a vontade de vomitar e dor na barriga. —Você quer?

            Ele negou com a cabeça. – Eu avisei para que não saísse à noite – Kohakunushi falou.

            Chihiro parou de comer e pensou em tudo que havia acontecido até então. Se o que a perseguiu era um youkai... Se Kohakunushi estava falando a verdade, o que ela deveria fazer? Por que logo ela?

            — Como você me mandava aqueles bilhetes? – perguntou decidida a achar uma explicação razoável para tudo.

            — São bonecos mágicos, quem os enviava na verdade era Zeniba.

            — Zeniba?

            — Sim, é uma bruxa que vive na última estação do Fim do Pântano.

            —Ah... – falou e então o encarou sem muito a entender.

A luz alaranjada do poste ao lado do banco iluminava o rapaz de forma tão destacada que a lembrou o estilo das pinturas barrocas que estudará em artes. Os cabelos curtos e lisos caiam até próximo ao ombros quase se contrastavam com o escuro da noite que os cercavam, a franja emoldurava o rosto branco e sem marcas ao qual os olhos verdes a observavam —preocupados, curiosos e sonolentos —, a blusa escura era bastante folgada e, os lábios avermelhados pelo frio lhe sorriam de forma gentil. Aquela cena, aquele rosto, o sorriso, os olhos grandes e sinceros, tudo isso a trazia um sentimento de que já vira aquela cena antes, fechou os olhos por poucos segundos e uma imagem apareceu em sua mente: ele a encarava e ria, estava sentado em cima de um galho e cercado por flores pequenas da grande árvore, e ela... Ela o encara sentada no chão e por algum motivo estava emburrada, mas se sentia feliz... Abriu os olhos novamente assustada e engoliu o dango que estava mastigando. — O que foi? – ele perguntou.

— Nada – falou sentindo o sangue subir o rosto e a confusão da imagem rodar em sua mente. – É tudo real mesmo? Tudo o que me contou?

Ele assentiu.

Chihiro se sentia tão confusa, tão inebriada. Terminou de comer os dangos, amassou o papel e o guardou no bolso. O estômago ainda sentia necessidade de alimento, mas se sentia muito melhor que antes. Olhou para a escuridão em frente ao banco concentrando-se nos próprios pensamentos tentando lidar com tudo que tinha caído em cima de si em menos de duas semanas.

            — Eu não lembro, Kohakunushi, não consigo lembrar de nada do que tenha me falado – murmurou sem olhar para ele.

            — Haku – ele falou e Chihiro o olhou com um olhar interrogativo. – Você me chamava assim.

            —Haku?

            Ele assentiu.

            — Eu queria tanto me lembrar – Chihiro falou.

            — Comece tentando lembrar o que a fez esquecer – ele falou.

            Antes que a garota abrisse a boca para dizer algo escutou o toque familiar do telefone: Always with me*. — Minha bolsa... – murmurou procurando a bolsa e suspirou ao ver a mesma no chão encostada no banco a abriu e pegou o telefone. 

A tela inicial mostrava em grandes números: 20:36. Sete ligações perdidas. – Ah, não, não – falou desesperada e discou em retorno. Virou-se para Kohakunushi: — Com licença, é rápido – Quando a mãe atendeu, Chihiro se encolheu ao ouvir o sermão desesperado. —Estou bem, mamãe. Sim, eu já estou indo para casa... Sim, desculpe deixá-los preocupados... Não vai se repetir. O papai? — perguntou ao escutar a mãe dizer que o pai tinha saído a sua procura. Vou pedir para que ele venha me buscar aqui no parque. Foi o que pensou antes de olhar novamente para Kohakunushi. – Não precisa... eu já estou indo, não precisa se preocupar estou na casa de um amigo. É, só amigo, mamãe. Já estou indo. Certo, ok, beijos também te amo.

— Vamos, eu te acompanho até em casa— o rapaz falou levantando-se do banco. — Se eu for com você provavelmente não será atacada novamente.

— Por que?

Ele deu de ombros. — Raramente youkais fracos tem chance com um mais forte.

— Ah! – exclamou sem saber o que dizer. — e do que eu estou sendo protegida exatamente? – indagou enquanto andavam para fora do Parque.

Ele colocou as mãos nos bolsos enquanto andava. — Existe uma parede chamada de Véu que divide o Mundo Espiritual e o Mundano, o Véu é sustentado por quatro joias e uma delas foi roubada. Se eu não recuperá-la logo os Mundos irão se cruzar e não resultará em algo muito bom, entende?

Chihiro assentiu e o deixou continuar. —Quando eu encontrar as joias, vai ser preciso de dois seres, um em cada mundo para selar as runas novamente e, Chihiro você é a única humana que foi ao Mundo Espiritual que voltou com essência mágica. Eu não queria te envolver nisto, afinal, você mal se lembra do que aconteceu no passado.

— Essência mágica?

— Sim, talvez você possa aprender magia e isso quer dizer que você é a única que pode me ajudar a selar as runas — ele suspirou. —Quem roubou a joia precisa te tirar do caminho para não ter interrupções com, seja o que, que esteja planejando.

— Parece filme.

— Filme? – ele perguntou maneando a cabeça para o lado.

— Sim.

— O que é?

— Como assim você não sabe?

Ele não respondeu.

— Não sei explicar, mas é basicamente uma história contada a partir de imagens que se mexem. Entendeu?

— Não.

— Tudo bem, não tem lá muita importância.

Chegaram no topo da ladeira tão rápido que Chihiro mal percebeu. As ruas naquela parte da cidade estavam bem iluminadas e alguns carros ainda trafegavam por ali. Andaram o restante do caminho sem muito a falar. Kohakunushi andava ao lado de Chihiro com as mãos nos bolsos e o olhar para o céu. Um Youkai. Ainda não tinha conseguido digerir tudo que ele tinha lhe contado, mas agora, depois de ter sido perseguida por outro, suposto, Youkai duvidava bem menos. Tudo seria tão mais fácil se ela lembra-se.

Quando chegaram na esquina da casa de Chihiro pararam por alguns instantes. —Pode me deixar aqui — ela falou agradecida.

— Hum... Certo – ele respondeu e deu um passo na direção de Chihiro, levantando a mão direita e a pousando na testa de garota que ficou imóvel no lugar. – Feche os olhos – pediu e Chihiro o fez com incerteza. Quando abriu os olhos notou o quanto o rapaz estava próximo e enrubesceu. – Você está tão longe... – ele murmurou escorregando a mão gélida pela face de Chihiro e se afastando, voltando a postura relaxada com as mãos nos bolsos. – Boa noite, Chihiro. Talvez a gente se veja amanhã...

Ela apenas assentiu com a voz presa na garganta e virou-se para caminhar até a casa. A primeira coisa que fez ao entrar no quarto foi caminhar até a janela e afastar as cortinas esverdeadas apenas para acompanhar o rapaz até que este sumisse de sua vista.

            — Chihiro Ogino! É bom ter uma boa explicação – escutou a mãe falar enquanto invadia o quarto.

            Chihiro afastou-se da janela em um pulo e olhou para os próprios pés. O que diria?

            Fui perseguida por um espirito até uma trilha escura da reserva do Grande Parque onde um outro espirito me salvou. Eu desmaiei de fome e quando acordei o espirito me deu Dangos e... ­— Eu precisei de ajuda em química, e um garoto da escola é muito bom, então pedi ajuda a ele. Peço perdão por ter ficado lá até tão tarde – foi o que disse.

            - Quero a casa impecável amanhã – a mãe proclamou o castigo antes de sair do quarto com um ar desconfiado. Chihiro suspirou, normalmente era péssima em contar mentiras.

            Encarou o espelho preso na porta e bateu a mão na testa, para então rir. Os joelhos estavam ralados da queda, os cabelos assanhados e a blusa branca suja de terra. Correu até o varal para pegar a toalha de banho e seguiu para o banheiro, se o pai a visse naquele estado não acreditaria nem um pouco na, fantasiosa, aula de química. Só Deus para saber o que sua pensou quando havia naquela estado e logo depois escutar sobre uma suposta aula de química. Mordeu a bochecha sentindo-se envergonhada pela péssima história que contara.

            Quando terminou o banho, sentou-se defronte o notebook e se pôs a pesquisar sobre o Mundo Espiritual e os mitos e histórias folclóricas do Japão.

            Vai ser uma longa semana, pensou quando clicou na primeira guia que apareceu na pesquisa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

*Always with me - é uma das músicas da trilha sonora do filme :3
E então? Gostaram?



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Do Outro Lado do Véu" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.