Superstition escrita por PW, VinnieCamargo, Jamie PineTree


Capítulo 7
Capítulo 06: Faith


Notas iniciais do capítulo

Escrito por PW



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Laura entrou sozinha na cabine do avião e uma rajada de vento frio envolveu-a, fazendo-a atritar os braços. Estava escuro do lado de fora, assim como no interior da aeronave, ela não conseguia ver muita coisa. Muitas das luzes estavam apagadas e vez ou outra, alguma lâmpada piscava. Curiosa, a garota começou a dar passos pequenos e cautelosos, erguendo o pescoço e tentando visualizar algo além da imensidão de assentos azuis.

Ela estranhou a diferença de tamanho entre ela e os assentos. Laura estava relativamente menor, suas mãos e pernas pareciam menores e mais franzinas. Confusa, a garota aproximou-se de uma das janelas e encarou o reflexo de uma menina de olhar fragilmente infantil e cabelos loiros na altura dos ombros. O reflexo encarou-a de volta e Laura recuou, olhando em volta, desta vez desorientada.

Daquela mesma janelinha, ela pode ver uma labareda se erguer engolir a turbina do avião, e em seguida, a asa.

Laura gritou em plenos pulmões e seu grito misturou-se aos demais gritos da cabine, que desta vez rasgaram o ar. Gritos de diversas pessoas, em inúmeras línguas diferentes. Preces em hebraico se sobressaíram às demais e em alguma parte, seu cérebro estalou. Laura parou no meio do corredor e sentiu a sacudida abaixo dos pés, segurando em dois assentos. Uma comissária de bordo passou aflita por ela, pedindo que todos se acalmassem, mas a loira não viu ninguém sentado, o avião estava vazio.

Além dela e da comissária, não havia ninguém para ajudar, mas Laura continuava ouvindo os gritos desesperados e eles pareciam estar vindo de dentro de sua cabeça.

— O que está acontecendo? — Laura berrou para a funcionária, que sequer virou para trás ou disse alguma coisa. Ela sumiu no final da cabine, como uma lembrança sumindo da sua memória.

Laura gemeu quando foi empurrada por uma mulher desesperada que passou por ela correndo. Ela chamava pelo nome de um homem. Os cabelos loiros agitados sobre o rosto, a menina mal pode ver sua face, mas sua voz era inconfundível. Inevitavelmente Laura caiu no choro. No seu campo de visão, seu pai se ergueu de uma das poltronas e abraçou a mulher, sua mãe, agradecendo por ela estar bem. Outra sacudida e Laura foi direto para o chão.

Levantando com dificuldade, a garota viu os pais colocarem as máscaras de oxigênio e darem as mãos.

O cheiro de queimado cobriu a cabine e Laura olhou para trás, assustada. Os olhos tomados pelas lágrimas e o calor embaixo da pele aumentando, ela abriu a boca para gritar, mas a explosão que veio do lado direito da cabine, abriu um buraco na fuselagem do pássaro de ferro e tragou Laura para fora sem chance de clamar por salvação. Seu corpo voou estirado pelo ar.

XXXXX

A artista plástica deu um espasmo e abriu os olhos, sem fôlego.

O peito doía e Laura puxou o oxigênio. Sentou, passando a mão na testa molhada pelo suor frio e observou todos dormindo ao redor, ao longo da farmácia. Depois do que aconteceu com Randy no hospital abandonado, houve um mutirão para encontrar os remédios que pudessem controlar suas crises de epilepsia. Randy já tinha o feito, mas pensou que talvez com mais pessoas em busca dos medicamentos, fosse mais fácil. Mas sem êxito e frustrados, resolveram ficar ali mesmo pelo resto da tarde, até adormecerem.

Tami, que estava deitada ao seu lado, acordou com o movimento da garota e, arrumando a peruca discretamente, perguntou:

— Aconteceu alguma coisa, Laura?

Ela acenou negativamente, se recompondo ao colocar uma mecha do cabelo loiro para trás da orelha. Respirou fundo e mostrou um sorriso desconcertado e cansado.

— Foi só um pesadelo.

— Nas circunstâncias atuais, diria que é a coisa mais comum que pode nos acontecer. — Tami comentou, deitando a cabeça de volta sobre o próprio braço, espalhando os cabelos. — Vamos ter uma noite longa pela frente, tenta tirar um cochilo de novo. — Aconselhou. — Estou aqui, caso precise.

As duas estavam juntas, deitadas em um dos colchonetes espalhados pela farmácia. Os outros também dividiam espaços sobre outros colchonetes entre as prateleiras.

Laura estava acostumada com os pesadelos. Nos meses seguintes ao trágico acidente aéreo de seus pais, ela começou a imaginar como eles poderiam ter morrido, se tinha doído, o que disseram um ao outro nos últimos momentos. Se pensaram em como seria a vida dos filhos sem eles, principalmente. E Laura passou a ter ajuda psicológica profissional, depois que passou a ordenar os acontecimentos. Desenhar a queda do voo na sua imaginação já era uma mecânica inevitável àquela altura. Começava com a porta da cabine e ia até seu corpo sendo jogado com fúria para fora, mesmo que ela nunca tenha pisado naquele voo ou nunca tenha vivenciado de perto o ocorrido. O que, vez ou outra, assombrava seus pensamentos. Ela tinha a certeza de que teria um ataque de pânico se estivesse prestes a decolar três noites atrás.

Ao perceber que Tami voltara a dormir de maneira solene, levantou do colchonete e passou a caminhar pela farmácia em silêncio, apenas encarando seus colegas descansando. Ao ver Cisco de olhos fechados, lembrou-se do momento que o grupo tivera no Redneck America e queria que aqueles minutos de descontração voltassem. Ao seu lado, Randy dormia com alguns curativos nos braços, que ela mesma fizera, após retirarem-no da sala do tubo.

E para sua surpresa, próximo da porta de vidro, Lucky estava escorado na parede, olhando para fora. O olhar abatido encarava o nada. Assim que percebeu a presença de Laura, o jornalista guardou uma folha de papel rabiscada dentro do bolso da calça.

— Sem sono? — Ele perguntou, tentando tirar sua atenção do rabisco. Por enquanto, aquelas palavras para Ariel poderiam esperar.

— Pesadelos, você sabe como é… Primeiro são as borboletas no estômago, a incerteza do que está por vir, o medo de nunca poder sair daqui, a saudade dos parentes… Tudo contribui. — Ela deu de ombros, engolindo em seco com o assunto e lembrando-se do irmão. — E você?

— Um pouco de insônia, pra variar. — Lucky rolou os olhos, rindo de maneira breve. Logo o sorriso sumiu. Naqueles segundos, Laura percebeu como o sorriso de Lucky era gentil, mesmo no meio da tormenta.

— Talvez tenha algo pra você aqui nesse lugar. — Ela fez menção de vasculhar uma prateleira. — Minha mãe costumava tomar uns comprimidos e-

De repente, a garota parou e entreolhou-se com o homem.

— O que eu estou fazendo? — Laura pensou alto, rindo constrangida, incrédula com sua própria atitude. — Desculpa, eu não devia.

Lucky se aproximou dela e disse:

— Eu não faria isso agora, mas em algum momento da vida, todos nós precisamos de algo que nos tire da nossa realidade. Nem que seja um simples calmante.

Laura suspirou e aproveitou para se posicionar ao seu lado. Também olhou para fora. O mini shopping ficava logo depois daquele saguão, ela podia ver um dos letreiros. Ela queria poder dar uma volta por lá, antes que algo pudesse atingi-la, mas seu lugar era ao lado do grupo por enquanto. E aquele pensamento trouxe algumas recordações involuntárias.

— Você já comemorou ou ouviu falar do Hannukah? — A artista plástica disparou, incerta se formulara a pergunta certa.

O jornalista não esperava por essa.

— Você se refere ao Hannukah, a festa judaica?

— Sim! É que quando eu era menorzinha, comemorava com minha família. Meus pais vieram de uma família de judeus, sabe? Tradição, essas coisas. Por mais que eu não tivesse totalmente imersa nessa religiosidade ou seguisse qualquer tipo de doutrina, me sentia feliz e renovada de alguma forma. Fazíamos compras juntos no shopping pra celebração bem no início do mês de dezembro. Eram oito dias de festa e a gente se divertia muito. Pedíamos por sorte, por realizações e que nossos caminhos fossem iluminados. — Os olhos de Laura brilharam ao final do relato.

— É bom ver alguém com a mente tão aberta como a sua. — Lucky comentou. — E como vocês vivem em paz com suas crenças.

O tempo verbal da frase deixou a garota visivelmente abatida.

— Eu disse algo que te incomodou? — Ele interveio. — É sobre seus pais?

Laura assentiu, encolhendo os ombros e pegando uma caixa de medicamento da prateleira mais próxima. Chacoalhou a caixa, ouvindo o ruído da cartela de comprimidos dentro dela. Era um som calmo.

— Meus pais morreram quando eu tinha treze anos, o avião deles caiu no Pacífico. Eu vi pela TV e não acreditei quando ouvi o nome deles entre as vítimas encontradas, fiquei anestesiada por dias. Meu irmão foi quem estourou minha bolha. — Ela fez um gesto com o dedo indicador no topo da cabeça. — Ele viu uma matéria em um jornal da cidade, uma coluna inteira dedicada às vítimas.

Lucky acabou por lembrar-se da época em que esteve na Síria. E de uma família de judeus que conheceu em Damasco, a quem entrevistou para sua matéria. Ele fora bem acolhido e o tempo que passou lá lhe trouxe muito aprendizado cultural no meio de tantos conflitos. Pouco tempo depois de sair da comunidade, voltou ao local e não encontrou mais uma casa, apenas entulho. Na tentativa de se informar sobre o estado de saúde dos membros da família, não teve nenhuma resposta. Pelo contrário, foi ameaçado por moradores que, inclusive, já vinham sendo oprimidos por uma liderança extremista da região. Lucky nunca esquecera a sensação devastadora de não ver mais o sorriso daquelas pessoas.

— Que horror! — Lucky exclamou quase num sussurro, pálido. — Sinto muito que as coisas tenham sido assim.

— Já estive pior. — Ela sorriu de lado. — Por isso o Hannukah me lembra deles, é uma forma de mantê-los vivos dentro de mim.

A doce voz da garota foi desaparecendo e a mente do jornalista girou bruscamente, trazendo flashes do atentado no aeroporto. Todo o risco que corriam dentro do lugar veio à tona. A presença na qual Lucky sentia cada vez mais próxima, se tornou mais evidente, quase física e o homem fez uma careta ao reunir todas as informações. Foi um quebra-cabeças difícil de ser montado, mas se seu instinto estivesse certo, o pior ainda viria. Lucky tinha que abrir o jogo com todos, principalmente os que quase foram tragados pela morte pela segunda vez. A relação entre sua visão e os acontecimentos seguintes pareciam surreais a primeiro momento, mas que faziam sentido quando os fatos eram unidos.

Ver o semblante de Laura acendeu uma fé em seu coração. De que eles poderiam passar por isso juntos, desde que todos estivessem às claras sobre a energia que existia naquele lugar.

A mesma energia que Lucky sentia agora.

XXXXX

— Será que dá pra começar essa reunião? — A voz entendida de Nate percorreu todo o recinto.

As prateleiras da farmácia haviam sido afastadas para dar espaço ao grupo, que esperava o pronunciamento de Lucky. Ele andava lá e cá, o bloco de papel balançava em mãos e o suor na testa destacava seu nervosismo. Era como se estivesse prestes a dar uma palestra, mas não uma palestra qualquer. Lucky contaria algo que provavelmente mudaria a forma de ver o mundo daquelas pessoas. Se fora difícil para ele entender a teoria, imagina ter que compartilhar com terceiros.

— Temos que ir no tempo do Lucky. — Cisco compreendeu a situação do homem e veio em sua defesa. Olhou para ele. — Tome todo o tempo que quiser, cara. Sem pressa.

Sentado ao fundo, Nate soprou, rolando os olhos.

O engenheiro ambiental era quem estava mais próximo do jornalista. Sua roupa estava um lixo, mas Cisco se mantinha no eixo e sério o suficiente para passar algum tipo de confiança ao colega de confinamento.

— O que será que ele tem de tão importante pra dizer? — Laura indagou baixinho com Tami. As duas sentaram lado a lado e a loira tinha a cabeça deitada sobre o ombro da outra.

— Depois do que o Louis e o Randy presenciaram, dos militares e seus lasers nos mantendo aqui dentro, não duvido de mais nada. — A professora comentou.

Astrid se pôs de joelhos ao lado das garotas e ouvindo parte da conversa, retrucando:

— Eu confio nele. Dá pra ver que o Lucky está sofrendo tanto quanto a gente, então o que ele tiver pra falar, será de suma importância. — Desta vez, seu sotaque russo saiu carregado.

Laura e Tami concordaram.

Lucky se posicionou de frente para o grupo e folheou o bloco de papel. Parecia conferir suas anotações, para não correr risco de despejar nada que não precisasse ser dito. Suspirou e pigarreou em seguida, recebendo olhares diferenciados de todos.

— Não vou mais enrolar, por favor, me ouçam! Tem algo muito estranho acontecendo conosco. Não só esse desastre, como uma força atuando diretamente no nosso destino. — Ele escolhia as palavras com certeza destreza, mas tinha muito medo de dizer algo que atrapalhasse o convívio entre eles. — Eu não consegui uma explicação plausível pra minha premonição. Pra falar a verdade, nunca vivi nada parecido em toda minha vida, muito menos foi um assunto presente durante meus anos de trabalho. Pessoas tendo previsões do futuro geralmente são associadas com charlatanismo ou sensacionalismo por parte da mídia, querendo fazê-las aparecer diante das câmeras. E isso me assusta, não só porque senti isso na pele longe das câmeras, como pelo motivo de não saber de onde partir, não saber exatamente onde estou pisando. — Ele encarou dentro dos olhos de cada um dos confinados. — Mas uma coisa é certa, a qual não contestei por hipótese alguma: o Amelia Earhart ainda é um poço de mistérios e corremos um grande perigo aqui.

— Conta uma novidade. — Nate sibilou irônico.

— A menos que queira morrer, sem fazer a mínima ideia do porquê, melhor me ouvir sem fazer piadinhas, rapaz. — Lucky repreendeu o negro seriamente. — O assunto é sério, estamos numa sinuca de bico!

Foi inevitável que Tami desse um risinho. Nate estava procurando sarna para se coçar.

— Aonde quer chegar? — Jane perguntou um pouco seca, ignorando a bronca. Até então, ela não estava entendendo muita coisa.

— Bom… — Lucky tomou um tempo para respirar, após ser interrompido. — Minha intuição ficou martelando na minha cabeça, então, fiz algumas conexões entre o que vi na minha mente e o que aconteceu depois disso. Cheguei à conclusão de que os sobreviventes, ou seja, nós, estamos sendo perseguidos pela morte na exata mesma ordem em que morríamos no atentado.

A primeira reação de Nate foi gargalhar, mas o garoto limitou-se apenas a fazer isso. Jane e Cisco repeliram-no com o olhar. Laura sentiu-se estranha com a afirmação e Louis fez uma careta.

— Uma superstição de fóruns da internet? Ok, isso é demais pra mim. — O estudante de espanhol reclamou, levantando e passando entre os demais membros do grupo. — Mesmo assim, se precisarem, estarei lá fora.

Cisco sentiu-se pessoalmente atingido.

Assim que Nate saiu, e superando o ocorrido, a curiosidade de Tami levou-a a perguntar:

— Isso significa que eu era a primeira?

Lucky assentiu com a cabeça e a professora arrepiou-se com a resposta. Ela entreolhou-se com Laura e em seguida, com Randy.

— Se seguirmos a linha de raciocínio e a ordem cronológica dos incidentes, Alex era o segundo… — Cisco apontou. — Seguido de Jane e Randy.

— Exato! — O jornalista deu uma conferida no bloco, passando algumas folhas.

— O que eu não entendo é: se sua “Teoria do Caos” estiver correta, por que a morte está querendo nos pegar? Já não nos foi dada a segunda chance? Já não nos salvamos do maldito acidente? — Louis perguntou, fazendo aspas com os dedos, um tanto aborrecido. Ele cruzou os braços. — Na realidade, pra mim essa peça não encaixa. Vamos focar em sair daqui e deixarmos isso pra ficção.

Lucky faria uma objeção, mas Cisco atropelou seus pensamentos.

— Vai ver, isso está ligado diretamente com a visão. — O engenheiro retrucou, saindo de seu lugar. — Raciocinem comigo… Já sabemos que todos morreriam no acidente, certo? Mas por algum motivo, Lucky viu tudo antes e nos avisou. Nós saímos do local onde haveria as explosões, os desabamentos... Isso nos tira do lugar exato onde nossas mortes aconteceriam.

— Acho que entendi. — Tami ergueu o dedo e murmurou, coçando o queixo. — É como se tivéssemos pegado um caminho alternativo?

— Que nos tirou diretamente da linha de tiro. — Randy, que até então se mantinha apenas ouvindo, murmurou quase que involuntariamente. Ele não estava totalmente imerso no assunto, mas as coisas iam fazendo sentido para ele passo a passo. Ainda que devagar, ele conseguiria compreender.

— Se entendi bem, o caminho alternativo vai nos levar ao mesmo destino final. — Jane estreitou os olhos, enquanto sua fala soava mais como uma pergunta retórica.

Os olhos de Lucky começaram a brilhar, ele não esperava que a maioria seria tão receptiva com a teoria, e ainda por cima, pensarem junto dele. Havia um ou outro olhar de reprovação dentro do cômodo, mas ele seguiria firme em seus argumentos. Sua função no momento era convencê-los. Ele concordou com as respectivas percepções.

— A propósito, — Cisco pigarreou, se pondo diante do piloto. — Louis, juntando tudo que vocês complementaram, é assim que funciona a Teoria do Caos. A ação do Lucky foi tirar a gente do caminho da morte e a reação é que a morte vai nos caçar de outras formas.

— Nós nunca sobrevivemos ao acidente, é isso? — Louis indagou, uma risada frustrada surgiu no canto dos lábios. — Estamos mesmo na porra de um purgatório, esperando nossa sentença?! Que piada mórbida e sem graça!

O piloto levantou de onde estava e fez menção de sair pela porta de vidro.

— Uma coisa é acreditar em teorias da conspiração envolvendo o governo e esse aeroporto, outra bem diferente é aceitar que uma entidade usando manto preto e uma foice está tentando nos eliminar! — Seu rosto ficou vermelho, vide seu tom de voz aumentando.

Lucky o encarou e viu o homem parar por um minuto, como se no momento sua verdadeira realidade tivesse caído por terra.

— Quem seria o próximo? — Perguntou sem se virar, envergonhado demais por ter feito uma tempestade. Queria ter certeza de que não estava fazendo a coisa errada em sair de perto da única pessoa do grupo que conseguia ter premonições.

Lucky quebrou em um sorriso, aliviado por ele ter parado, mas engoliu em seco e evitou olhar para os demais. Agora só encarava as costas do uniforme sujo do caucasiano. Por um segundo, seu olhar de canto percorreu o estabelecimento e um rosto pálido foi avistado entre eles. Laura comprimia os lábios, nervosa pelo que ele responderia. Lucky sentiu um aperto no peito e por breves instantes se perguntou se valeria a pena desgraçar a cabeça de alguém como sua teoria estava fazendo. Primeiro Nate, Louis e em breve...

— Laura, — Proferiu num rompante — Me desculpa.

Sua resposta foi como um soco no estômago da artista plástica, que entendeu de imediato o recado. Até o momento, Laura ainda estava digerindo tudo o que foi dito naquela tarde. Apesar disso, não foi impedimento para que ela sentisse o impacto de saber que poderia morrer a qualquer momento.

A garota só levantou e saiu correndo da farmácia, derrubando alguns remédios de uma prateleira e esbarrando no ombro de Louis.

O piloto pôde ouvir seu choro.

Tami deu alguns passos, mas foi interceptada por ele.

— Eu trago ela. — Disse, se encaminhando para fora. — Mas por favor, tracem logo um plano pra nos tirar dessa situação! Se Tami, Jane e Randy conseguiram, todos conseguem! — Gritou, andando a passos largos por uma rampa atrás de Laura.

XXXXX

Laura marchou por uma rampa e chegou desconsolada no andar do mini shopping que ficava no mesmo extenso setor da farmácia do aeroporto. Inúmeras lojinhas de departamento se espalhavam ao longo do corredor e algumas com seus letreiros resistindo às sequelas do ataque. Faíscas chiaram ao longe e um cheiro de óleo empreguinava as paredes. Uma das portas automáticas se abriu com o movimento da garota, que entrou. A primeira coisa que encontrou, foi uma loja de casacos e malas de viagem. Duas lâmpadas estavam acesas e um ar-condicionado na parede detrás de um balcão parecia estar funcionando pelo ruído que fazia. Era pouca a energia fornecida pelos geradores, mas suficiente para fazer os aparatos eletrônicos da loja funcionarem.

Escondeu-se entre as várias malas coloridas e agarrou as pernas, rangendo os dentes de nervosismo e tremendo como nunca tremeu na vida.

Completamente rendida às lágrimas, Laura queria gritar. Poder colocar tudo para fora, mas não da forma convencional como fazia. Ela sempre tivera o poder de ser mais complacente, focada e equilibrada, ter as palavras de acalento ao pé da língua, transformar o resto das pessoas em arte. Entretanto, não conseguia juntar seus próprios pedaços para parecer mais bela. Laura tornou-se uma arte incapaz de ser moldada.

Só esbravejou nos primeiros meses do luto, quando tudo ao seu redor desmoronou e ela desejou sumir do mapa, largar seu irmão para trás e detonar com a própria vida. A cartela de comprimidos tarja preta que comprara na internet era tentadora e Laura costumava encará-la todas as noites, antes de tentar dormir.

Dormir para sempre.

Gastou o dinheiro guardado da sua mesada todo em giletes, todos afiados e enfileirados na estante do banheiro. Laura havia se esgotado, mesmo sem ter usado nenhum destes artifícios. A morte era um privilégio para poucos, ela sabia.

A artista plástica lembrava-se de não ter comparecido ao funeral. Ela não teve coragem de ver o último deles, soube que apenas metade do corpo de sua mãe estava dentro do caixão; a outra metade fora reconstruída da maneira que conseguiram. O rosto de seu pai estava inchado, não era daquele jeito que ela pensara que poderia despedir-se deles. Foi brutal para a garota ter que conviver com aquilo, apenas com partes de um passado, de recordações boas.

Pela primeira vez, Laura queria ter tudo por inteiro. Abrir-se com pessoas desconhecidas e encontrar a paz através dos encontros da igreja só fizeram sentido tempos depois de ficar perdida. E ela se encontrou na fé. Laura queria fazer da segunda chance que ganhara através de Lucky uma nova e belíssima escultura, mas a mesma fé que construiu, se desmanchou como a tinta de uma parede velha. Laura estava desprotegida outra vez.

— Laura! — Ela ouviu a voz de Louis preencher o ambiente. — Você tá aí? Estamos todos preocupados!

XXXXX

Longe da farmácia e evitando os locais com mais escombros, Nate enfiou as mãos nos bolsos e caminhou sem rumo. Por fora, uma muralha de pedra; por dentro, um castelo de cartas.

Ele estava farto de ter que conviver seus prováveis últimos dias com um grupo de pessoas que incitavam seu transtorno a cada segundo. Foram anos de terapia para se convencer de que se saíra bem, que estava pronto para ver o mundo outra vez. A verdade é que ele nunca esteve pronto, porque a todo momento sentia que a fera queria voltar. A sensação de estar machucando a irmã ia e voltava, as discussões com Adriel davam pancadas em sua cabeça e Nate se via envolto nas mesmas sombras que o atingira anos atrás.

Agora, Adriel estava longe. Seu namorado seria incapaz de ser seu feixe de luz e tudo porque Nate era orgulhoso, egoísta e arrogante demais para mantê-lo por perto. Nate alimentava a culpa de tê-lo mandado para longe, assim como repelia toda e qualquer pessoa que queria se aproximar.

Nate chegou até a vidraça que dava para a pista de pouso e suspirou. Será que o que Louis contou seria verdade? Será que os militares estavam mesmo os mantendo em cárcere? O estudante de espanhol encostou a mão fria no vidro e aproximou o rosto do reflexo, olhando para fora. Não conseguia ver muita coisa além da névoa alaranjada pelo pôr-do-sol, mas podia enxergar um ponto de luz oscilando ao fundo.

O ponto de luz mudou estrategicamente de lugar e chegou ao peito do estudante. A sensação de adrenalina percorrendo cada centímetro do corpo, Nate ergueu o punho fechado contra a vidraça e começou a batê-lo contra ela, sorrindo. Toc! Toc! Várias vezes.

O laser pareceu aumentar de tamanho e o rapaz apenas fechou os olhos e recuou alguns passos até a luzinha desaparecer por completo.

Com um sorriso mórbido estampado no rosto, caminhou por alguns saguões e chegou até uma parede desmoronada, próximo do local onde encontraram o hospital abandonado e onde Randy quase tivera seu fim. Pulou um bloco de concreto e entrou pela abertura.

O que viu fez seu coração disparar.

Uma ambulância estacionada em uma espécie de pequena garagem, onde apenas um veículo cabia. Talvez fosse um veículo de emergência dos paramédicos. Havia um portão de ferro que dava para algum canto da pista de pouso. Nate tinha uma chance, mas sabia não conseguiria sozinho. Ele avisaria aos outros.

XXXXX

— A Jane saiu para caçar, mas podemos adiantar o assunto. — Astrid comentou.

Estavam apenas a lutadora, Lucky, Tami, Randy e Cisco na farmácia. Jane estava faminta e ficou responsável por trazer comida para todos se encontrasse um bom rango, aquele fora seu combinado. Os cinco decidiram traçar planos para deter o padrão que se formara a partir da precognição do jornalista.

— O Randy ter me salvado me tira de vez dessa tal teoria da morte? — Foi Tami quem perguntou.

Lucky deu de ombros, incerto.

— Talvez sim. Depois que ela não conseguiu levar você, ela foi atrás dos outros, então meio que te pulou.

— Isso não isenta ela de voltar pra Tami quando alcançar todo mundo. — Cisco apontou. — Vai ver, só retardamos o processo.

— Um ciclo vicioso, que animador! — Tami apoiou os braços no chão, desapontada.

— Tem que ter alguma brecha no padrão. — Randy murmurou. — Toda teoria tem uma ruptura, nem que seja mínima.

— Não se a morte for uma ciência exata. — O engenheiro argumentou, mesmo tendo suas próprias ressalvas.

— Mesmo assim, enganei ela uma vez e juntos, tiramos mais três vítimas do seu caminho por tempo indeterminado, considerando que ela pode voltar. — Lucky explicou. — Significa que podemos fazer isso até o final e ver o que acontece.

— Acho isso um pouco inconsequente. — A voz de Astrid foi ganhando força entre o grupo. — Temos que ter nossos truques na manga, não é como se soubéssemos quando, como e de onde vem seus golpes. Até agora, ela veio com artilharia pesada, quer dizer que temos que estudar o máximo possível nosso oponente, se quisermos chegar prontos pro combate.

Astrid se levantou e fez um gesto de soco no ar.

— E vencê-lo.

— K.O.! — Tami riu.

— Mandou bem no nocaute, lutadora! — Cisco piscou e Astrid mostrou um sorriso vitorioso.

Nate chegou na farmácia um tanto suado e vermelho. Ninguém deu muita importância para a sua chegada, de modo que encarou todos em silêncio e observou Lucky refletindo por alguns minutos.

Lucky disparou, tendo um insight:

— Cisco, lembra quando você disse que mudamos o local exato onde morreríamos na minha visão é isso nos salvou?

O engenheiro assentiu.

— E se tivermos a mesma lógica aplicada a essa ordem? Se por acaso, a morte leva alguém na posição errada do padrão?

— Não entendi. — Randy murmurou de maneira arrastada, apoiando a mão no queixo.

Lucky tentou reformular sua questão.

— Se ela espera levar a Laura, que é a quinta e acaba levando alguém de uma posição diferente no lugar dela… Isso poderia quebrar o padrão, certo?

Uma lâmpada pareceu se acender no topo da cabeça do homem de óculos.

— Faz bastante sentido!

— Uma vida no lugar de outra? — Nate perguntou, interessado. Ele ouvira parte da reunião, mesmo do lado de fora. E agora, o assunto finalmente ganhara sua atenção. — Uma das poucas coisas inteligentes que ouvi hoje, mas isso não vem ao caso.

Tami revirou os olhos, tentando se manter firme. Astrid também estava com uma paciência curta, mais outra tirada de Nate e ela interviria.

— Nate isso não é hora pra-

Lucky foi quem interveio, mas Nate o cortou em seguida.

— Eu tenho a solução pra nos tirar daqui. Tem uma garagem com uma ambulância daqui dois saguões. Vou chamar Laura e Louis, e partimos direto pra lá. O que acham?

Tami não pareceu convencida. Astrid semicerrou os cílios analisando-o e Cisco coçou o queixo ao se entreolhar com Lucky.

Randy disse de maneira abatida:

— Tudo que mais quero agora é sair daqui, então se tem uma forma de voltar para casa e reencontrar minha família, eu estou dentro. E vocês?

XXXXX

Laura encolheu-se entre as malas e tapou a boca, fechando os olhos com força.

— Qual é! Não é nenhum jogo de esconde-esconde. Pode aparecer, podemos conversar se quiser. — Louis pôs as mãos na cintura, um pouco afetado pela corrida.

— Você não entende, eu sou a próxima!

A voz da loira ecoou de algum lugar da loja, mas Louis não sabia dizer especificamente de onde. Poderia ter vindo do provador, dos fundos, do meio de todo aquele estoque.

— Eu já quis me esconder, Laura, muito! — Ele começou. — Eu sei como é estar tomado pelo medo, principalmente o medo do que as pessoas vão pensar de mim, do que pode acontecer comigo se mostrar a elas do que realmente sou feito. — O piloto explicou. — Porém, não ganhei nada com isso. Muito pelo contrário, me reprimir acabou me mostrando meu ponto fraco.

— E qual é seu ponto fraco?

— A solidão.

— Isso não tem nada a ver com a morte. — A garota protestou. — A morte não está atrás de você nesse momento!

— Na verdade, a minha primeira solidão me mostrou algumas saídas que inicialmente pareciam fáceis. — Louis sentou em um assento circular, ao redor de uma haste de ferro com vários casacos pendurados. — Fugir era uma delas, e de preferência, para bem longe de casa, onde eu achava que estava menos seguro. Há um ano, aproveitei que faria escala em Veneza e busquei refúgio em braços desconhecidos, na primeira pessoa que encontrei. Ela tinha olhos agradáveis, um sotaque atraente e um sorriso simpático. Depois de um drinks, nos animamos nos lençóis de um motel da escolha dela. Ela parecia ser minha única zona de conforto naquele momento, sabe? Daí, fui fundo, se é que me entende.

Louis viu Laura surgir detrás de algumas malas, com os olhos inchados, fungando e dizendo:

— O que aconteceu, você sente saudades dela?

— Nem um pouco. Depois que dissemos adeus um ao outro naquela tarde, procurei seguir com minha vida normalmente, com meus excessos e tudo mais. Até passar por um exame de rotina da empresa e descobrir que contraí o vírus HIV. — Ele disse com pesar.

A jovem artista era a primeira pessoa com quem ele falava abertamente sobre o assunto em vários meses, mas sabia que era por um bem maior.

Laura abriu a boca, estarrecida e deu alguns passos na direção do piloto. Instintivamente ele recuou. Ela nunca imaginaria que a história de sexo casual do homem terminaria daquela forma. Porém, tentava entender como ele se sentia.

— Você é um homem bastante forte, Louis. — Laura começou cautelosa. — Por não transparecer essa fraqueza. Não é fácil lidar com algo desse tamanho, a pessoa precisa ter certa responsabilidade emocional pra não fazer uma besteira.

— Sinceramente, não sou egoísta o suficiente pra terminar com tudo de uma vez sem dar uma chance pra mim mesmo de recomeçar. — O piloto respondeu firme e o coração de Laura acelerou. — Diferente da primeira solidão, a segunda me fez ver que fugir só me levaria pra baixo, é como se ela tivesse aberto meus olhos pra um final inevitavelmente triste e angustiante. Embora essa doença faça parte de mim há um ano, tratando-a com coquetéis e retrovirais, passei a viver cada dia como se fosse o último. Foi um divisor de águas pra mim. Convivo com a morte todos os dias da minha vida, não é fácil saber que tem algo correndo no seu sangue, que a qualquer momento pode dar uma pane no seu sistema. Não vai ser agora, com essa vingança particular da morte, que vou me acanhar, e você também não irá jogar o lenço, ok?

Laura ficou paralisada, sem saber como proceder.

— Você também é uma menina forte! — Louis abriu um sorriso de dentes alinhados. — Me promete?

Mesmo receosa, Laura concordou e o abraçou.

Os dois ouviram um barulho de objetos caindo e olharam para a porta. Nate entrava ofegante. Ele bateu-se contra uma estante acidentalmente, tropeçando em um puff. Sua quina acabou se chocando contra a lateral do ar-condicionado da loja. O objeto lançou uma faísca e se inclinou para baixo.

— Se escondam, tem alguém vindo! — O rapaz sussurrou.

— O quê? — O piloto perguntou, sussurrando, sem fazer ideia do motivo de Nate estar ali.

— Rápido, se escondam!

Louis puxou Laura para detrás do balcão, embaixo do ar-condicionado e Nate se jogou entre o estoque.

XXXXX

Jane entrou no restaurante “LeMiro” do aeroporto feito um rato à procura do queijo. A oriental sondou o ambiente com o olhar sorrateiro, carregando um carrinho de malas consigo e passando a vasculhar as mesas, gavetas do balcão e recipientes jogados por ali de maneira ágil. Ela sentia o cheiro de poeira se permutar aos rastros de alimento, mas não se importava nenhum pouco. Derrubou duas colheres de metal no percurso e olhou para todos os lados, certificando-se de que não chamara a atenção de ninguém.

Detrás do balcão, um pacote intacto de salgadinhos. Jane tomou em mãos, agradecendo internamente por aquilo. E mesmo tentada a abri-lo e devorá-lo ali mesmo, resolveu guardá-lo para dividir com o grupo. Jogou dentro do carrinho.

Além do balcão, conseguia ver uma porta laranja com uma pequena portinhola de vidro, por onde pendurou-se e conseguiu ver uma cozinha revirada. As mesas de metal e os objetos pendurados reluziam. A andarilha deu um riso satisfeito. Empurrou a porta e adentrou na cozinha apressada, mas sem deixar de olhar para todos os cantos. Havia um forno virado no chão da cozinha e olho espalhado. Jane pensou em como poderia se dar mal se não percebesse.

Pulou o forno e passou longe do óleo com habilidade. Até ouvir um estrondo e perceber que uma parede havia acabado de desmoronar. Jane inclinou-se e enrijeceu os ombros, intrigada. A oriental empurrou um pedaço da parede que ficou de pé e passou pela abertura feita pelo desmoronamento.

A abertura levou-a a um túnel familiar. Identificou como sendo o mesmo túnel pelo qual ela e os outros passaram para chegarem até o galpão, logo depois das explosões. Essas coisas estão todas conectadas como uma casa de toupeira? Pensou. Instigada a seguir, Jane empurrou o carrinho pelo corredor, cantarolando uma música qualquer, na esperança de encontrar a reserva de alimentos do restaurante.

Pisou no que seria os rastros úmidos das poças d’água de outrora e tentou abrir a primeira porta de ferro. Trancada. A segunda pareceu destravada e a oriental abriu-a cautelosamente, com um rangido incômodo. Enfiou a cara primeiro e constatou que a sala estava vazia. Era uma sala alta, paredes resistentes e com poucos móveis, composta por: uma velha mesa de escritório, uma lâmpada apagada, monitores desligados e objetos cobertos por um pano empoeirado. Jane puxou o pano e deu de cara com inúmeros quadros enfileirados.

A jovem afastou os quadros, fazia tempo desde a última vez que ficou frente a frente com obras de arte. Lembrou-se de quando seu companheiro hipster demorou para vender seus lindos quadros. Até que algo chamou atenção da oriental, a assinatura das obras. “Jun Kobayashi” tinha uma caligrafia delicada e que agradava o olhar da andarilha, assim como as composições inteiras.

Porém, aquele nome lhe era familiar. Assim como a sala de comando que visitara mais cedo com os rapazes tinha algo de familiar, a sua habilidade em cantar e tocar piano vindo à tona, as memórias ruins de quando quase morreu afogada… Aqueles quadros lhe traziam a mesma sensação de déjà vu. Todos eles mostravam pedaços conceituais do aeroporto e pareciam não possuir muitos anos. Todos pareciam felizes demais para esconder o lado sombrio do Amelia Earhart.

Jane deixou os quadros e foi até a escrivaninha, abrindo a gaveta e retirando alguns papéis de lá. Em todos eles, o nome Jun Kobayashi aparecia repetidas vezes.

— Por que você está na minha cabeça? — Jane perguntou em voz alta. — Que merda tá acontecendo comigo?

XXXXX

Lucky desceu a rampa, seguido de Tami, Randy, Astrid e Cisco. Eles andavam apressados em direção ao mini-shopping, para onde Louis disse ir procurar por Laura. Nate havia ido buscá-los, mas não voltara ainda e o jornalista ficara preocupado, porque algo dizia para ele, que a morte agiria em breve.

— Temos que achá-los logo e ir para a tal garagem, não podemos perder tempo! — Bradou. O suor embaixo da blusa já fazia a vestimenta grudar.

— Desde que encontramos Nate com o corpo do Alex, algo me diz que ele não é confiável. — Tami comentou casualmente, os cabelos balançando embaixo do chapéu.

— É perigoso deixá-lo sozinho com a Laura. — Astrid sibilou, tendo recordações repugnantes do rapaz de cabelos rosados tostado no chão.

Lucky não tirava os olhos do conjunto de lojas, estava a poucos metros e já podia sentir a energia pesando em seu peito e em suas têmporas. A mesma sensação que tivera das outras vezes, onde o ar poderia espremer sua cabeça feito uma laranja a qualquer segundo. De repente seu pescoço começou a arder e o jornalista coçou-o com força. Ele parou para tomar fôlego.

— Tá acontecendo de novo? — Astrid perguntou.

Lucky apenas meneou a cabeça positivamente. Tami não perdeu tempo e correu com Cisco ao seu encalço. Randy não estava com o mesmo pique que os outros desde que conseguiu se livrar do tubo de água. O policial resolveu esperar por Lucky e Astrid, enquanto via Tami e Cisco se afastarem ligeiramente.

De repente, um vento frio desprendeu a cabeça de um enfeite de teto de um dos estabelecimentos, que caiu e rolou até os pés de Lucky, assustando-o. A cabeça sorria. O jornalista sentiu um sentimento agourento e entreolhou-se com seus colegas.

— A cabeça dela… Vai ser na cabeça.

XXXXX

A silhueta se moveu pela loja, atordoada.

Empurrou duas malas e chutou um chaveiro pelo carpete. Preparado para o bote, Nate lançou um olhar mútuo para Louis, que acenou com a cabeça, permitindo que ele fizesse as honras de atacar primeiro. O piloto estava depositando sua confiança no rapaz, o que não fazia sempre, de modo que era um tiro no escuro e esperava piamente que não fosse direto no seu pé.

O estudante de espanhol fez “um” com o dedo indicador, preparando-se para a contagem regressiva.

Dois.

Louis inclinou-se para ter o vulto em seu campo de visão.

Três!

Nate investiu contra o vulto, que não esperava e rosnou com o baque. Louis surgiu do balcão e agarrou o indivíduo pelo pescoço, tentando alçar uma gravata. Ele não era tão alto quanto o vulto, e nem tão musculoso, mas tinha força suficiente para ao lado do estudante, imobilizá-lo. O indivíduo rangeu os dentes e deu um movimento giratório brusco, batendo contra uma prateleira, que virou. A prateleira caiu sobre o balcão e por pouco não atingiu Laura, que gritou e se jogou para trás.

Suas costas bateram na parede e o ar-condicionado torto balançou com o impacto. Duas faíscas escaparam do equipamento. Uma frágil prateleira de vidro acima da máquina balançou vertiginosamente. Laura gemeu e caiu sentada, os cabelos bagunçados contra o rosto. Sobre a prateleira, cabides de aço instavelmente posicionados. Dois deles escorregaram e caíram. O primeiro tilintou no chão, enquanto segundo caiu em cima do ar-condicionado.

Passou a tremer devido o ronco metálico que o equipamento de ar fazia.

A lâmpada principal da loja oscilou e fez um jogo de luzes, enquanto o vulto tentava se soltar. Ele jogou Nate para o lado e o rapaz virou sobre as malas de viagem, machucando o rosto na barra de ferro que ficava no centro da loja. Louis socou o rosto do homem de capuz preto e abriu os braços, agarrando-o pela cintura e empurrando-o contra uma segunda prateleira, repleto de casacos.

Laura levantou com dificuldade, o salto da sandália estava quebrado e ela sentiu uma dor lancinante nas costas. Apoiou-se no balcão e observou a confusão generalizada. Avistou Nate entre as bagagens e correu para ajudá-lo, mas escorregou com o salto quebrado.

— Me solta, porra! — A voz do encapuzado soou com um forte sotaque latino, enquanto ele se desvencilhava do piloto. — Eu não quero machucar ninguém!

Suado, Louis não recuou e acertou um chute contra o estômago do homem, que despencou, segurando a barriga enquanto reclamava. O capuz revelou Antônio, por pouco a droga não escapara.

XXXXX

Tami e Cisco chegaram até a loja e viram através do vidro da porta a confusão lá dentro. A lâmpada piscando causava certa vertigem e dificultava o discernimento do que de fato se discorria. Tami sentiu o coração acelerado embaixo do peito.

A professora se aproximou, mas a porta automática não abriu e recuou atônita. Ela olhou para cima e viu uma faísca sair da parte superior do aparelho magnético, mas não teve tempo de avisar Cisco e o engenheiro foi direto na porta para abri-la a força. Assim que encostou as palmas de suas mãos contra a vidraça, tomou um choque e recuou sacudindo os braços. Soprou as palmas e entreolhou-se com a latina. Tami levou o olhar para Laura dentro da loja.

— Cisco, olha! — Chamou.

— O quê?

— Atrás da Laura, na parede!

O olhar do homem de óculos foi imediatamente para o ar-condicionado. Ele viu o equipamento despejar fumaça e uma faísca descer até a cabeça de Laura. Então, chutou o vidro com seus coturnos reforçados com borracha, chamando atenção de todos lá dentro. O vidro começou a se rachar e as veias saltaram na testa do engenheiro. Ele tinha fé de que tudo acabaria bem. As rachaduras aumentaram ao redor das solas de seus sapatos. Tami movimentou os braços na direção de Laura, pedindo que ela se afastasse do local.

A Laura não entendeu a primeiro momento, foi Louis quem virou-se para ela e arregalou os olhos.

— Puta que pariu! — E correu para ajudá-la. — LAURA SAI DAÍ AGORA!

A artista plástica olhou por cima dos ombros e viu o exato momento em que o ar-condicionado superaqueceu totalmente e partiu-se em mil pedaços, explodindo. A pequena parede de fogo se ergueu ao redor da loira, que não foi atingida por ela e tentou correr, mas não conseguiu escapar da velocidade do cabide de aço. O objeto afiado e triangular voou em sua direção, cortando o ar tão rápido quanto o sopro de vida escapando de seus lábios num milésimo de segundo.

O cabide rasgou o pescoço da loira, fazendo um zunido. Sua pele desmanchou e deu lugar ao sangue que seringou em um arco ao longo do rosto de Louis. Nate presenciou a cena chocado e Antônio escondeu o rosto.

— LAURA!!! — Tami tapou a boca aterrorizada e as lágrimas surgiram tão rápidas quanto Laura se foi. Cisco envolveu-a em seus braços, enquanto tinha o rosto apavorado atrás dos óculos quadrados. Os lábios tremiam involuntariamente.

Louis caiu fraco de joelhos e Nate se pôs de pé detrás dele.

Do lado de fora, Lucky e o restante do grupo chegaram e presenciaram a cena angustiante do corpo de Laura estirado no meio da loja com o pescoço degolado. Mais um pouco e sua cabeça havia sido decapitada. A poça de sangue deslizou pelo carpete cor-de-carmim.

Contudo, a porta automática abriu-se.

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What you got if you aint got love?

The kind that you just wanna give away

It's okay to open up

Go ahead and let the light shine through

I know it's hard on a rainy day

You wanna shut the world out

And just be left alone

Don't run out on your faith

Tami entrou na loja aos prantos, debruçada no sangue, soluçando. A garota deu um berro, abraçando o corpo inerte de Laura e encharcando sua blusa com a papa vermelha sobre o peito da loira. Randy tentou tirá-la de cima de Laura, mas a latina não suportou ver uma pessoa que tanto queria bem daquela forma. Ela e Cisco fizeram o que puderam. Lucky fizera o que pudera, mas a morte chegou antes para compensar o estrago deles sobre seus planos.

— E agora, quem é o próximo? — Cisco perguntou, mesmo arrasado.

— Nate. — Lucky respondeu seco e convicto.

Sometimes that mountain you've been climbing

Is just a grain of sand

What you've been out there searching for forever,

Is in your hands

When you figure out love is all that matters, after all

It sure makes everything else

Seem so small

Nate engoliu em seco e seu mundo deu um giro. O rosto com vestígios do sangue de Laura. Ele nunca pensou que sua vez chegaria tão depressa. Ele ainda tinha muito o que viver, tinha muito a falar para Adriel. Nate não cumprira todas suas pendências pessoais na Terra e estava disposto a fazer de tudo para não ter a morte como uma pedra em seu sapato.

Randy sentiu o coldre ficar mais leve e olhou rapidamente para um Nate nervoso, segurando sua arma na frente no rosto.

Na direção do grupo.

— Eu só preciso dar uma vida no meu lugar, certo? — Sua voz saiu entrecortada.

— Nate, você não precisa fazer isso. Vamos arrumar outro jeito. — Randy veio em intervenção, estendendo os braços.

— Cala a boca! — O estudante berrou.

Mesmo abatidos, Cisco e Louis se entreolharam e o piloto fez um sinal discreto para o engenheiro.

So easy to get lost inside

A problem that seems so big, at the time

It's like a river that's so wide

And swallows you whole

While you sittin round thinking about what you can't change

And worryin' about all the wrong things

Time's flying by, moving so fast

Better make it count, cause you can't get it back

Ambos partiram para cima do negro e, empunhando a arma, Nate escorregou o dedo no gatilho com facilidade, feito manteiga. Todos gritaram ao ouvirem o estampido e Nate saiu porta afora, portando a pistola e apontando para Astrid, que estava na entrada. A lutadora lhe deu passagem e ele sumiu em um dos corredores.

Cisco levantou e conferiu se não tinha nenhuma bala perfurando seu corpo, seu sangue quente impedia que ele discernisse se estava realmente bem. Lucky correu até Louis, caído no chão. Em seu abdômem, um buraco de bala e uma mancha rubra crescendo embaixo do tecido do uniforme.

Antônio apenas observava a cena se desenrolar em silêncio.

— Precisamos estancar o ferimento! — Lucky bradou. — Rápido!

— Ninguém aqui é médico ou enfermeiro! — Astrid sugeriu. — Vamos levá-lo até a farmácia!

Sometimes that mountain you've been climbing

Is just a grain of sand

What you've been out there searchin for forever

Is in your hands

Oh, When you figure out love is all that matters after all

It sure makes everything else

Seem so small

Louis gemeu e revirou os olhos, sentindo uma vontade imensa de fechá-los. Ele entendia de primeiros-socorros, mas não conseguia fazer o procedimento em si mesmo naquele estado. Mostrou os dentes, somando a dor infindável ao desconforto de ter algo preso na sua barriga.

— Tirem isso! Arg! — O piloto queixou-se.

Randy retrucou:

— Eu tenho curso de primeiros-socorros, posso estancar a hemorragia até conseguirmos carregá-lo pra farmácia.

Foi aí que o policial rasgou um casaco de tecido grosso e estava prestes a amarrá-lo em volta do abdômen de Louis, até que o homem de olhos azuis puríssimos surtou.

— Não toquem no meu sangue! No meu sangue não… Fiquem longe! — Urrou, rangendo os dentes e se contorcendo.

— Do que ele está falando? — Tami perguntou.

Sometimes that mountain you've been climbing

Is just a grain of sand

What you've been out there searchin for forever

Is in your hands

— E o Nate? — Astrid olhava para fora da loja, atritando os braços.

— Quero que a morte foda aquele imbecil! — Louis murmurou zangado. Soltou um grito. — Se ela não fizer, eu dou um jeito de mandá-lo pro inferno! Caralho, tirem isso de mim! — Comprimiu os olhos, pálido.

Oh, When you figure out love is all that matters after all

It sure makes everything else

Oh it sure makes everything else

Seem so small

Nate corria rumo à garagem onde encontrou a ambulância. Se ele não partisse de uma vez por todas para fora do aeroporto, era como se estivesse dizendo para a morte que aceitava seu destino final. E ele não cederia às chantagens onipresentes da entidade. Se a superstição estivesse correta, Nate desejou que Louis estivesse morto uma hora dessas.

Olhou para a arma em suas mãos e sorriu pleno.

O que você tem se você não tem amor?
Daquele tipo que você apenas quer distribuir
Não há nada errado em se abrir
Vá em frente e deixa a luz brilhar através de você
Eu sei que é difícil nos dias chuvosos
Você tem vontade de gritar com o mundo
E ficar sozinho
Mas não desista da sua fé”

(So Small — Carrie Underwood)


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, não esqueçam de comentar! As reviews são importantes para a continuidade do projeto.



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