A Valsa de Vênus escrita por Sarah


Capítulo 10
Capítulo 10




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Dezessete anos.

 Tanto o burburinho dos visitantes quanto o uivo do vento tinham se dissolvido em caos assim que a noite caíra, e a Curva do Vento ecoava com o sussurrar de condolências e com o bater de asa dos corvos.

Rozênia, no entanto, tinha se mantido afastada daquela movimentação. Logo após o almoço retirara-se para a sala onde costumava estudar com Marcella e deixara-se ficar lá, metade do tempo apenas deitada sobre as almofadas que compunham o ambiente, metade andando de um lado para o outro, organizando ervas variadas.

Estivera esperando por algo assim, mas ainda se sobressaltou quando Marcella apareceu ali. Quando chegaram à Curva do Vento ela já era velha, mas naquele instante a anciã não parecia muito mais do que um eco.

Rozênia sentou-se sobre as almofadas, porém Marcella dispensou qualquer formalidade, tirando alguns livros de cima de uma poltrona para logo em seguida deixar-se cair sobre ela.

— Fiz tudo o que pude, mas não consegui salvar aquele Lorde. Aparentemente eu te ensinei bem — a anciã falou em um tom indiferente. — O que você usou? Beladona? Sementes de cravo?

Não havia qualquer sentido em negar.

— Sementes de cravo misturadas com erva de bruxa, creme de leite e amoras. —Obviamente, só os dois primeiros eram venenosos.

Marcella acenou como quem encaixa as peças de um quebra-cabeça.

— Faz sentido — ela disse com certa aprovação. — O efeito de uma anula o antídoto que pode ser usado para o outro, e no fim as causas da morte ainda parecem naturais.

— Imagino que você tenha dito que ele morreu porque havia pedras em sua visícula.

— Certamente.

Rozênia remexeu-se, mordendo a parte interna da bochecha. Provavelmente fora uma morte dolorosa.

— Não vai perguntar a razão de eu ter feito isso?

Marcella ergueu uma sobrancelha e torceu os lábios.

— Você quer falar sobre isso? Você e Eliza tem feito um bom trabalho em manterem-se discretas, mas eu já vi o suficiente do mundo e de vocês duas para saber o que acontece entre ambas quando ninguém está olhando.

Rozênia sentiu suas bochechas arderem de vergonha, mas forçou-se a não desviar os olhos de Marcella.

— Não está brava comigo?

Sabia que Marcella não a entregaria, mas tinha certeza de que a anciã estaria irada por sua conduta, em vez de monstrar-se apenas cansada.

— Fui eu quem lhe ensinou, não é? O que eu poderia esperar que fizesse com o conhecimento?

— Não é sua culpa. Se você não tivesse me ensinado eu teria achado outra maneira, provavelmene menos segura.

— Talvez — Marcella concedeu. — Como se sente? Matar um homem não é o mesmo que matar um coelho em uma caçada.

Rozênia deu de ombros. Tinha despejado uma mistura de ervas em um prato, não parecia um grande feito. Havia passado a maior parde do dia naquela sala esperando sentir alguma coisa, mas nada viera além da angustia causada pela própria apatia.

Marcella pareceu perceber seus pensamentos.

— Não se engane, criança. Eu já disse isso a você, não será perdoada apenas porque não sujou as mãos de sangue. Os mortos sabem, e eles sempre cobram seu preço.

Marcella fora uma Filha de Vênus durante a toda a vida, e Rozênia se perguntou quantos fantasmas ela via ao adormecer.  

— O que eu devo fazer? — perguntou, esperando que não estivesse tão desalentada quanto soara aos próprios ouvidos.

 De qualquer forma, Marcella não se mostrou muito compadecida.

— Achei que você tivesse um plano.

Oh, não exatamente, mas qualquer direção que tomasse envolveria conversar com Eliza, e aquilo parecia mais difícil do que matar um homem.

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Apesar da relutância inicial, Marcella passara as horas seguintes instruindo-a sobre como se livrar dos eventuais resquicios que poderiam entregá-la, e quando Rozênia fora para o quarto já era muito tarde, mas Eliza ainda não estava lá. Se ela voltara durante a madrugada não procurara sua cama, e, quando Rozênia despertou, encontrou o quarto dela deserto.

Seguiram-se os ritos fúnebres, em escala menor do que haveria quando o corpo de Lorde Cassius retornasse ao Vinhedo, mas ainda assim pomposos o suficiente.

Ninguém lhe deu atenção, e Rozênia deixou-se ficar atrás da profusão de pessoas que se avolumara no salão para fazer alguma homenagem ou apenas para dar uma olhada no corpo. Prestar homenagem provavelmente só a faria ainda mais amaldiçoada, e tampouco tinha interesse em ver o corpo de Lorde Cassius. Os venenos que usara eram gentis e ele não devia estar tão diferente do que fora em vida, considerando que não se passara nem um dia inteiro desde sua morte.

Eliza, por sua vez, estava à frente dos demais, usando vestes vermelhas, mais simples do que as do dia anterior, mas ainda assim muito rubras. Ao prestar atenção, Rozênia notou que ela chorava de forma bastante apropriada a uma moça que acabara de perder seu prometido. O fato pesou em seu estômago.

Ficou ali o bastante para que sua ausência não gerasse suspeita, e o suficiente para constatar que ninguém falava sobre assassinato, e então se retirou.

Sua fuga não durou muito tempo, no entanto. Não muito após ouvir o soar das trombetas, que indicavam que o corpo do Senhor estava sendo retirado do salão, Eliza a encontrou sentada à margem dos jardins internos da Curva do Vento.

Rozênia concentrou-se em enrolar as fitas do seu vestido na ponta dos dedos enquanto Eliza se sentava ao seu lado, e por um longo instante as duas ficaram em silêncio. Quando Eliza finalmente falou, suas palavras cortaram o ar como uma navalha.

— Foi você quem o matou, não é?

Rozênia inalou, retendo o fôlego.

— Não — mentiu, sem sequer se dar ao trabalho de parecer indignada com o questionamento. Não fazia diferença, de qualquer forma: Eliza sabia a verdade, ouvir a confirmação da sua boca só a magoria mais. — E o que importa? Nada vai mudar o fato de que ele está morto.

— Lorde Cassius era um homem tão bom quanto qualquer outro, Rozênia. Ele não teve culpa de nada disso.

— Você também não teve culpa, e ainda assim seria obrigada a passar a vida em um casamento que só traria sofrimento!

— Não cabe a você decidir minha vida, Rozênia! Acha que estou feliz com o que fez? — ela perguntou em um tom sibilante, raivoso, porém baixo o suficiente para que apenas Rozênia a escutasse.

Céus, Eliza não podia nem mesmo suportar as caçadas, não achara nem por um segundo que a garota fosse ficar feliz por ela ter causado a morte de um homem.

— Não cabe a mim decidir sua vida, mas caberia segui-la, não é? Você esperava que eu a acompanhasse para o Vinhedo e continuasse penteando seus cabelos e atando os laços do seu vestido depois que você tivesse passado a noite com um homem!

Eliza se encolheu diante das suas palavras. Rozênia assistiu enquanto ela abria a boca para rebater, mas, ao fim, a garota não encontrou o que dizer. Num ímpeto, ela se levantou, dando as costas a Rozênia e se afastando, as tranças loiras chicoteando sobre seus ombros.

Rozênia apenas recostou-se no banco, o vento cortando suas bochechas, deixando que Eliza se afastasse e sentindo-se tão gelada quanto Lorde Cassius estava naquele instante.

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Não viu Eliza pelos dois dias que se sucederam. Não tinha ideia de onde ela estava dormindo, mas não a viu no quarto, nem durante as refeições, e quando perguntou a Marcella sobre ela, a anciã também disse que não a encontrara.

Tinha considerado a possibilidade de Eliza não a perdoar, porém não com a seriedade adequada, e agora parecia haver um buraco em seu peito.

Quando a terceira noite caiu, Rozênia escreveu uma carta para sua mãe e arrastou seu baú para o meio do quarto, separando suas roupas e pertences. Era doloroso constatar que quase tudo o que possuia passara pela outra garota, mas ao menos fazer aquilo lhe dava um senso de proposito menos agoniante do que a inatividade.

Assim, no momento em que Eliza apareceu, ela tinha um par de botas em cada canto do quarto, meias sobre a cabeceira da cama e uma razoável quantidade de vestidos e roupas de montaria dobradas sobre os lençóis.

Rozênia assustou-se quando a ouviu pigarrear, anunciando sua presença, e deixou cair o frasco de ervas que segurava. O vidro quebrou, impregnando o ar com cheiro de alecrim, mas nenhuma das duas deu atenção ao fato.

— Você desapareceu — Rozênia falou a título de cumprimento, voltando-se para a outra.

Eliza sacudiu os ombros.

— Estive ocupada — ela disse, correndo os olhos pelo aposento. — O que você está fazendo?

Rozênia titubeou, mas, ao fim, não existia razão para evitar aquela conversa.

— Não tem sentido eu continuar aqui quando você não deseja minha companhia. —Desviou os olhos de Eliza, virando-se para recolher uma peça de roupa que estava sobre a cama.

Não viu quando Eliza se aproximou, mas no instante seguinte os braços dela estavam ao redor do seu corpo, abraçando-a. Sequer foi capaz de retribuir; apenas permaneceu muito quieta, sentindo o calor da garota e o ritmo da sua respiração. De certa forma, aquela seria uma despedida melhor do que qualquer coisa que estivera imaginando.

— Você foi irresponsável — ela disse, sua voz ecoando sobre os ossos de sua clavícula. — E, céus, não consigo nem mesmo conceber que tenha matado alguém, quanto menos perdoá-la por isso... Mas não quero ficar sozinha, Rozênia.

Muito devagar, Rozênia ergueu as mãos, afagando as costas de Eliza.

— Também acho que ainda não me arrependo o suficiente para pedir seu perdão.

Diante dessas palavras, Eliza se apartou , fitando-a nos olhos.

— O que pretendia fazer em seguida? Matar todo homem que pedisse minha mão? Lorde Cassius não mereceu esse destino.

Provavelmente não, mas já era muito tarde para considerar aquilo.

— Esperava que seu pai fosse capaz de recusar o compromisso da próxima vez.

Eliza sacudiu a cabeça, esfregando os olhos e sentando-se na cama.

— Isso não iria acontecer — ela falou, hesitando em seguida. — Contei a minha mãe sobre nós duas.

Dentre tudo o que Rozênia podia esperar, certamente não contava com aquilo. Seu queixo caiu em espanto.

— Você não pode ter feito isso! — disse em desespero. De repente um medo irracional de que guardas invadissem o quarto e a levassem para as masmorras sob a acusação de ter corrompido Lady Eliza comprimiu seus pulmões.

— Mas fiz.

Sua pressão devia ter baixado, pois o mundo girou e Rozênia viu pontos brancos explodirem contra os seus olhos. Afastou um punhado de vestes e também se sentou na cama, sentindo que suas pernas não a aguentariam por muito mais tempo. Percebendo seu desalento, Eliza segurou sua mão, entrelaçando os dedos nos seus.

— O que Lady Lorena disse?

— Que fazia muito mais sentido o fato de você ter se disposto a se casar no meu lugar.

Rozênia lançou um olhar angustiado para a outra.

— Não pode ter sido só isso.

— Não — Eliza concedeu. — Mas ela compreendeu, Rozênia.

— O que vai acontecer agora? — perguntou, apertando mais os dedos de Eliza contra os seus.

Eliza devolveu o afago, desenhando círculos sobre o dorso da sua mão de uma forma calmante. Pareceu levar um longo tempo até que ela voltou a falar.

— Marcella disse que já sou boa o bastante para me juntar a uma Casa de Cura.

Aquilo fez os músculos de Rozênia se contraírem, como se ela houvesse levado um choque. Fitou Eliza com uma expressão magoada!

— Se você for para uma casa de cura o que eu fiz não terá valido de nada! Estará presa por juramentos ainda mais fortes do que aqueles que envolvem o casamento! As Casas de Cura exigem sua feminilidade em troca dos encantamentos que ensinam, você sabe disso!

— Não — Eliza a cortou, seca e firme. — De fato, os juramentos levarão meu sangue de mulher junto com a possibilidade de ter filhos, e exigirão a promessa de que eu nunca me deite com um homem. Mas eu não desejo essas coisas, Rozênia, e não há nada nessas promessas que me proíba de amar outra moça.  

Lentamente, Rozênia compreendeu o que a outra estava fazendo.

— Você realmente quer isso? — perguntou, e Eliza assentiu.

— Mais do que tudo. Você sabe disso, me viu estudando com Marcella durante esses anos.

— Seus pais...?

— Eles concordaram. Enviar uma filha para uma Casa de Cura ainda é algo honroso, e eles podem dizer que escolhi esse destino depois da dor de perder Lorde Cassius. Nem mesmo o rei poderá contestar isso. — Eliza engoliu em seco. — Ainda é egoista pedir para que vovcê me acompanhe?

Oh, sim — Rozênia falou. — Mas não estou em posição de negar.

Além do mais, a ideia de sair da Curva do Vento e percorrer meio mundo com Eliza até uma Casa de Cura, aliada à possibilidade de percorrerem o restante quando ela terminasse seu treinamento, em missões para a Casa, não lhe parecia desagradável naquele instante.

— Não — Eliza concordou. — E talvez um dia eu aprenda o suficiente para compensar a vida que você tirou — ela acrescentou em um sussurro, tão baixo que Rozênia sequer teve ceteza se Eliza pretendia que ela ouvisse aquela declaração.

Porém qualquer réplica que pudesse ter se perdeu, pois no instante seguinte Eliza tomou seu rosto nas mãos e beijou-lhe a fronte, muito delicadamente. Rozênia permitiu-se desacançar a cabeça sobre os ombros da outra — apreciando o fato de que, céus, depois de tudo ainda estavam juntas — para logo em seguido buscar os lábios de Eliza, retribuindo o beijo.

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A brisa assoviou ao seu redor, balançando sua capa e jogando-a para trás. Era apropriado, mas Rozênia apenas incitou o cavalo a marchar adiante. Depois de sete anos na Curva do Vento, supunha que partir deveria ser mais doloroso, mas ela só sentia uma vaga apreensão, facilmente abafada pela perspectiva de liberdade. Eliza não seria mais envolvida em jogos politicos, bastaria um pequeno desvio no meio do caminho para que pudesse reencontrar sua mãe e ver o que restava das Filhas de Vênus, e estar ali fora parecia mais natural do que do que ter os limites de um Castelo sobre si, além de todas as regras da corte.

Por sua vez, Eliza olhou para trás não muito depois dos portões terem ficado distantes. Ao perceber isso, Rozênia se aproximou, tomando as rédeas do cavalo dela nas mãos de forma que o animal voltasse a marchar, acompanhando o resto da pequena comitiva que seguia com elas. 

Em vez de parecer ofendida, Eliza sorriu perante o seu movimento, segurando sua mão brevemente em um aperto confortador, antes de voltar ela mesma a guiar o cavalo.

A Curva do Vento ficara para trás, mas as duas percorreriam juntas o caminho que viesse a seguir.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler até aqui! Se puder deixar um comentário com suas impressões, ficarei muito grata. ^^



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