Fortuito escrita por Tamires Vargas


Capítulo 4
Ganhar é perder. Considere o inverso.


Notas iniciais do capítulo

Eu tô muito feliz de postar esse capítulo.

Se alguém ainda acompanha,
boa leitura!



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— Excelente — soltou ao sentir o efeito do nen em seu corpo.

O bem-estar se espalhava devagar, afastando os sintomas que o incomodavam, permitindo-o desprender parte da atenção dedicada ao próprio corpo para direcioná-la ao modo que a mulher o sarava. Interessava-lhe a técnica, sua aplicação, o efeito visual que causava, a pele surgindo e se ligando a que não fora violada. Interessava-lhe também as feições de quem lhe curava, o esforço empregado, a concentração. Notou a dor brotar novamente.

— Quero a resposta. — Ela o fitou, os olhos escurecidos pela noite, a expressão pálida do vazio. — Não vai me passar para trás.

— Oh... agora você está cheia de coragem! O que vai fazer se eu tentar?

Um gato vadio se fez perceber através do som de seus passos. Caminhava devagar, balançando a cauda num ritmo quebrado, observando-os com demasiada atenção. Esperava passar despercebido e alcançar as ruas, mas surpreendido pelo olhar de Hisoka correu em desespero.

— Tente.

O tom frio o acendeu, e os lábios se esticaram de imediato, mostrando o branco dos dentes, que foram ocultos num segundo. No entanto, o sentimento ainda estava lá, repuxando seu rosto, pronto para imprimir nele a máscara da insanidade. 

— Eu aceito. Continue. — gesticulou em direção ao próprio corpo. — Em troca, nós lutaremos de novo e você me vai me mostrar como controla as pessoas.

Naoko impediu que a fala criasse raízes em seu pensamento, precisava conservar o fluxo e intensidade de seu nen. A falta de reação foi observada com interesse e a mulher sentiu a pressão das intenções de Hisoka pronta para quebrar sua indiferença em cacos de medo.

— Vou lhe dar cem mil além disso.

— Não quero dinheiro.

— Todos vão em busca de dinheiro, cedo ou tarde. — Cortou o fluxo, pressionando os dedos contra as costelas, deslizando-os sobre elas até constatar o que imaginava. Afundou-os para identificar a dimensão do problema e entreabriu a boca. "É mais resistente do que eu pensava."

— Meu ferimento é difícil? — Hisoka indagou com deboche.

— Quero que mate quem contratou Illumi. Se ele é um profissional perderá a obrigação assim que o contratante morrer. — Encarou-o esperando afirmação, finalizando ao recebê-la: — E me mantenha segura.    

— Não serei seu... — Engoliu o resto da frase. — Por isso a oferta... Esperta! Mas não vai conseguir o meu sim pra isso. 

— Se eu morrer, você não terá sua luta.

— Se você morrer é a prova de que não vale a pena.

Naoko se voltou à cura com os dedos formigando para rasgar a carne. Forçar a costela quebrada contra os órgãos também lhe passou pela cabeça, perfurar mais um talvez fosse o suficiente para dar fim àquele homem repugnante.

— Gosto da sua forma de curar... tem ódio.

♥ ♠ ♣ ♦

Hisoka se levantou de pronto quando terminou, caminhando para fora do beco. Restaurou a maquiagem e os cabelos, pôs as roupas feito novas. Acompanhou um carro jogar a luz do farol no asfalto e atravessar a rua em alta velocidade. Sacou o baralho. Às, dama, rei... Valete de ouros. Balançou a eleita com uma leve satisfação, fazendo-a desaparecer em seguida.

Incomodado com a demora da mulher, olhou por cima do ombro, reconhecendo, próximo a algumas latas de cerveja, o que ela havia descartado. 

Hisoka queria de Naoko mais intensidade, vontade, contudo ela teimava em lhe entregar uma prudência detestável. Embora tivesse rompantes de audácia, parecia fadada a voltar à indiferença.

Ele caminhou de volta para o beco, cada movimento seu gravado por ela. Foi abordado por sua mão estendida que trouxe suavemente os dedos para si. Hisoka fingiu inocência, esvaziou os bolsos como prova, mas o silêncio de Naoko se aliou à posição estática, encurtando a brincadeira.

— Não deveria exigir o que jogou fora. — Balançou o celular pela antena antes de deixar cair na palma dela. — Vai pedir ajuda? — indagou ao vê-la digitar.

O número desconhecido na tela dava a Naoko a hipótese de que esperavam por seu retorno, contudo o que a paralisou naquele instante foi o pensamento de que o laço havia se rompido em definitivo. Apesar de sua fragilidade, era o único que tinha como certo e agora não passava de mais uma linha em sua lista de mágoas.

Ela tentou justificar a atitude, colocando-a como uma retaliação justa diante do que fizera, mas logo desistiu daquela infantilidade de sustentar o que havia desmoronado, uma postura antiga que não lhe trouxe qualquer benefício. Ainda assim, doía-lhe um pouco tomar a mudança, da mesma forma que machucava constatar outra vez que não tinha importância para aquela pessoa. "Por que estou surpresa? Era para ela ter feito pior", divagou, esquecendo-se de sua situação.

Naoko focou no sapato de bico pontudo, bebendo de uma vez a realidade da qual havia se afastado. Precisava se manter segura até o contratante ser morto enquanto lidava com a possibilidade de se tornar refém de alguém interessado em seus serviços. A liberdade que desejara trouxe o desamparo para lhe fazer companhia e ela
não sabia o que significava caminhar sem ter quem zelasse por seus passos.  

— Não preciso de ajuda.

Ela enfiou o celular no bolso, andando na ponta do pé descalço, insistindo no caminhar desajeitado até que parecesse o mais natural possível. Usou as mangas da camisa para limpar o rosto e as enrolou acima dos cotovelos. Curou as feridas que ganhara na luta. Os movimentos, tocados pelo cansaço, denunciavam que o semblante impassível fingia. Era capaz de desmoronar se relaxasse, por isso se agarrava às poucas forças para sair dali e enfrentar o que estava por vir.

Buscou uma referência para descobrir onde se localizava, mas aquela parte do bairro era puramente residencial e os prédios tinham uma similaridade grande. Pensou ter visto aquela rua em uma de suas andanças, contudo uma placa contradisse o pensamento assim que ele se formou. Deteve um suspiro quando sentiu o mundo lhe oprimir e um arrepio gelado lhe tomar a pele feito um choque.

— Como quer que eu mate alguém sem me dar qualquer informação?

A voz inundou seus ouvidos, tão próxima que ecoou em sua mente. Fez-lhe virar de imediato, os braços se posicionarem em defesa, o coração reagir com batidas rápidas.

Hisoka exprimia cordialidade na face, como um amigo pronto para ajudar outro. Analisava a expressão corporal de Naoko, traçando hipóteses e acrescentando detalhes ao seu perfil. Uma faísca de curiosidade o incitava a descobrir mais sobre a alternância entre covardia e ousadia. O quão interessante seu acordo poderia se tornar?   

— Não faço ideia de quem possa ser... Não tenho inimigos — respondeu convicta.

— Isso torna tudo mais fácil... — ironizou, discando um número e desligou assim que ela visualizou o nome na tela. — Me ligue quando souber.

"Filho da puta." Naoko não verbalizou, porém seus lábios se moveram de forma inconsciente e o movimento não passou despercebido. A tensão cresceu no corpo dela, deixando a raiva em segundo plano, enquanto Hisoka demorava a esboçar reação.

— Diga em voz alta. — O tom soou indistinguível.

Naoko deslizou o pé esquerdo para trás, desviou o olhar por segundos para observar um par de pessoas que vinha ao longe e procurar algo que pudesse lhe dar uma vantagem.

— Diga.

Hesitou. Nenhum pensamento agradável lhe surgiu. Tinha duas opções e zero certeza de qual deveria escolher. Postergar pioraria as chances. Repetiu de uma vez:

— Filho da puta.

Para Naoko, o silêncio de Hisoka foi mais longo dessa vez, porém havia durado os mesmo cinco segundos de antes.

— Você perdeu o medo, rápido... — pontuou com a voz rouca, alterando-a de forma abrupta para um tom brincalhão. — Se eu me ofendesse facilmente, estaria em apuros!

A incredulidade a tomou por um momento, desfazendo-se na sensação de estupidez. Que surpresa existia na atitude dele? Era um desgraçado sem escrúpulos, não poderia agir diferente. Cabia a ela aprender a reconhecer seus truques para não ficar em desvantagem.

— Illumi não deve levar muito tempo para se recuperar. É melhor que você descubra logo quem o contratou.

O aceno e a partida se deram num estalar de dedos, causando um breve alívio a Naoko. A presença de Hisoka a desgastava, porém a ausência dele lhe colocou diante da solidão que desconhecia. Sem ter para onde voltar ou a quem recorrer, ela percorreu os poucos metros até o fim da rua como se fossem uma imensidão fria e escura.    

♥ ♠ ♣ ♦

O trem deslizava suavemente sobre os trilhos enquanto cortava o vento da noite. Faltava um quarto de hora para um novo dia e boa parte dos passageiros dormia. Da parcela que não havia fechado os olhos, Naoko era a única que os mantinha abertos apesar da ardência que sentia. Sua mente alternava momentos de cheia com hiatos profundos nos quais ela se perdia fitando a paisagem correr depressa. Nenhum nome que lhe surgiu poderia ser apontado como suspeito e a probabilidade de não conseguir identificar quem queria sua morte aumentava.

Ela observou o mapa. Havia três estações até chegar a final, quatro opções de cidades para desembarcar, e a próxima estava a vinte minutos dali. Tencionava escolhê-la pela familiaridade, porém temia a pequena distância que a separava daquela onde foi atacada.

Perdeu o tempo do trajeto refletindo sobre os prós e contras. Percebeu o trem diminuir a velocidade e um par de homens abandonar seus lugares rumo à porta. Viu o brilho da cidade, carros e pedestres circulando na larga avenida repleta de estabelecimentos abertos. A paisagem parou, a porta abriu.

♥ ♠ ♣ ♦

O homem recebeu a notícia como um murro no peito. Dinheiro não era o problema, mas gastá-lo sim, e da forma que seria gasto, um desperdício inominável.

— Você deu o seu preço e eu aceitei... Como quer cobrar a mais por um contratempo?

— Você não falou sobre ela ter um segurança.

— Porque ela. Não. Tem!

— Mandei o vídeo para o seu e-mail.

Ele engoliu a saliva e foi até o notebook. Procurou dentre os e-mails recentes, encontrando um com a data do dia anterior como assunto, e abriu pronto para refutar Illumi. A imagem mostrava um homem alto trocando algumas palavras com Naoko antes de conter o ataque e permitir que ela fugisse.

— Isso... não faz o menor sentido. — Olac voltou a cena várias vezes procurando indícios de que o vídeo era uma montagem.

— Espero o pagamento para terminar o trabalho.

Olac não respondeu, estava preso em um detalhe que lhe parecia destoar do resto da cena. Meteu os óculos rapidamente no rosto, debruçou-se sobre a tela, pediu para Illumi confirmar a quantia e emendou a pergunta:

— Ela ofereceu resistência?

Illumi reteve a resposta por um instante, analisou a frase e o tom. Admitiu para si mesmo que havia julgado o homem mais idiota do que realmente era.

— A luta me impediu de me aproximar dela.

Olac desconfiou, não tinha o que apontar, mas sua intuição insistia que havia algo errado. Ele fixou o olhar na figura desconhecida puxando as lembranças da memória. Nada. Ninguém assim havia chegado perto de Naoko.

— Onde você a encontrou?

A voz de Illumi se perdeu para Olac quando ele notou a presença de sua esposa. O rosto endureceu numa expressão de quem procura uma saída e se manteve diante do questionamento dela sobre  "estar feito".

Olac cobriu parte do celular com os dedos e contou sobre o ocorrido esperando apoio para a negativa nítida em seu semblante. Porém a indiferença de Saemi se restringia à aflição do marido.

— Dê a ele — ordenou. — Dê e acabe logo com isso.

— Saemi, não é razo...

— Vou transferir o dinheiro agora... Quanto? — dirigiu-se a Illumi enquanto ignorava a aflição de Olac que debilmente tentava tomar o celular de volta. — Você tem até amanhã para entregar o resultado.

— O prazo foi estendido para dia dezenove. Se quiser antes disso são mais duzentos mil.

Saemi sentiu a cabeça esquentar. Aquilo deveria ser simples e rápido. Sem problemas, novas negociações, adiamentos. Por que não podia ser como lhe disseram? Por que justo na sua vez as coisas tinham que dar errado?

Enquanto seu pensamento borbulhava, Olac lhe fazia sinais pedindo para que desistisse. Não havia para ele a mesma importância que para ela e por isso era incapaz de entender a intensidade da cólera que consumia Saemi. O quanto ela estava disposta a dar para que a vida daquela garota tivesse fim.

♥ ♠ ♣ ♦

O sol ardia às oito da manhã nas pálpebras pesadas. Os olhos secos pela poeira piscavam apenas quando chegavam ao seu limite. Não houve noite para Naoko. Todas as pessoas lhe pareceram suspeitas, todas as esquinas foram dobrados com cautela excessiva. Nada lhe escapou dos sentidos.

Pagou um quarto para tomar um banho. Não comeu o café da manhã gratuito. Saiu antes das sete. Parou numa cafeteria e engoliu a comida encarando a saída. Perdeu o foco diversas vezes. Percebeu que o sobretudo era ineficaz contra o frio que sentia.

Durante os vinte minutos que permaneceu sentada levou a mão ao bolso, retirou, repetiu o ato, desistiu. Fez isso sem perceber e também com consciência. Não se julgou e se repreendeu. Era ridículo pensar em correr de volta para a cela que deixou, contudo não negava que se continuasse nela tudo estaria bem.

O pensamento se repetiu como uma apática confirmação, mas logo passou à descrença e ao deboche. Estava esquecendo o motivo? Ignorando o passado por medo? O que seria depois, pedir socorro em troca de submissão?

Olhou para o número no celular e a palavra que o acompanhava. Apagou as poucas letras que nunca fizeram sentido, substituindo-as pelo nome próprio. Sentiu que deveria ter feito isso antes e o incômodo da troca. Distanciava-se, contudo o laço parecia feito de arames, cada vez que uma parte rompia suas pontas lhe perfuravam.

Nas ruas, Naoko retomou o equilíbrio à custa do passado, queimando a si mesma com as brasas de memórias, revisitando o cenário que a enraivecia e torturava. Relembrando o dissabor de ser vista como um objeto.

Por isso ela deixara sua vida para trás, a rotina morna que se alterava somente quando havia trabalho. Conforto, amizades, graduação, relacionamento amoroso,... a falta. Essa que era falsamente suprida antes de saber de um novo cliente. Nessas ocasiões, a voz suave e o semblante sereno lhe traziam a notícia, sempre como uma oportunidade irrecusável, e ficavam até o pagamento, esmaecendo conforme os dias passavam.

Perdeu a conta das vezes que isso se repetiu e de quando se deu conta de que nunca mudaria. Negou-se pela primeira muitos anos depois de ter entrado nesse ciclo, mas a afronta gerou apenas indiferença. Era culpa dela Naoko ter feito o que fez.

Rolou a lista de contatos. Todos comprometidos. Ligar era correr o risco de dar alguma pista sobre seu paradeiro. As únicas exceções pertenciam as duas pessoas que ela não poderia pedir ajuda: a que havia lhe explorado e a que lhe deixou sozinha na busca por quem contratou Illumi.

♥ ♠ ♣ ♦

Havia acabado de sair do banho quando notou o celular vibrar. Presumiu que era uma mensagem da mulher informando sobre a transferência. Não se apressou para ver. Enxugou o corpo, o cabelo, vestiu-se. Alisou a pele onde antes existia o corte, pensando no benefício que viera de um problema.

Dias atrás tinha recriminado Milluki por seu costume de extorquir os clientes e há algumas horas fizera o mesmo sem pestanejar. Nada sentia por isso. Só fez aproveitar a abertura. Ademais, era justo que pagassem pelo incômodo que lhe causara.

O celular voltou a vibrar na mesa de cabeceira, desta vez por um período maior, fazendo Illumi estreitar os olhos. Desde que aceitou aquele trabalho, o sossego parecia se afastar de sua vida e embora a indiferença fosse algo inerente ao seu ser, a cobrança contínua empurrava-a lentamente para abrir espaço para a irritação.

— O que você quer?

— Demorou... Não queria me atender? — perguntou jocoso, assumindo seriedade ao perceber o silêncio de Illumi. — Sua ajuda. Uma informação em troca de algo que você queira.

— Por que eu te ajudaria?

— Por que sou seu único aliado.

— Que me traiu.

— Sempre quis um motivo para lutar com você... Não é como se eu fosse te matar. — Esperou um instante. — Só preciso do nome do cliente. Você me dá ele e pode pedir qualquer coisa.

O silêncio obrigou Hisoka a olhar para a tela, que ainda piscava "chamada encerrada". Ele apertou os lábios contrariado, mas logo se pôs a pensar numa alternativa. Uma não lhe agradava e a outra guardava uma probabilidade mínima. Descobrir o mandante estava fora de cogitação, no entanto deixar essa tarefa para Naoko seria colocar seu desejo nas mãos do improvável.


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Notas finais do capítulo

Até a próxima! o/



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