Fortuito escrita por Tamires Vargas


Capítulo 2
O inesperado é bem-vindo


Notas iniciais do capítulo

Olha quem apareceu?
Imagino que vocês já tinham sacado do que se tratava quando eu disse que era aprendiz do Togashi, então...
Sem mais delongas, obrigada a todas pelos comentários e espero que ainda estejam aqui para ler. ^^



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/732389/chapter/2

Naoko não se moveu. Seu olhar permanecia vidrado no mesmo ponto em que se fixou quando parou de atacar, o rosto empalidecia sob as gotas pegajosas e seus músculos queimavam como se estivessem se rompendo fibra a fibra. Seu coração esmurrava o peito na tentativa de fazê-la lembrar que deveria escapar, mas o corpo afundava em torpor, a mente vazia ecoava uma sensação conhecida que se apoderava da razão com a sutileza de seus dedos gelados.

Ela fechou os olhos ao sentir uma gota invadir o esquerdo, soltando um suspiro engasgado. O ato incompleto devido à pressão contra seu peito aguçou os pensamentos que retornaram devagar. Precisava reverter aquela situação sem deixar transparecer sua falha.

Mergulhou na insanidade latente das íris amarelas, tomando-a como um aviso do que poderia lhe acontecer, sentindo um arrepio deslizar por sua espinha. Engoliu o medo que subia a garganta, disposta a fazer o necessário por sua vida e calculou as palavras de seu algoz. Uma estratégia dependia de descobrir as verdades e mentiras por trás delas, contudo traçar um perfil em pouco tempo e sob pressão era um convite dourado a um erro fatal. Ainda que forçasse interações, compreendê-lo minimamente tomaria parte de sua atenção. Um luxo caro e perigoso que valia o preço daquilo que poderia salvar.

Com um movimento mecânico, ela assentiu à ameaça. Seus olhos firmes sustentados pelo instinto de sobrevivência destoavam da tensão que percorria suas veias. A tentativa de retomar o equilíbrio tropeçava em direção ao êxito, mas parecia fadada a fracassar diante das flutuações de Hisoka.

— Que bom que nos entendemos. — Ele disse com cordialidade.

O sorriso falso desconcertou-a por um instante, mas lhe despertou em definitivo. Precisava dar àquele homem o que ele buscava antes que retirasse a oferta, embora esta não passasse de postergar a hora de sua morte. Ela moveu o braço devagar constatando a folga no aperto e contrariando a voz da cautela, alcançou um seis de ouros no bolso do inimigo, abrindo sua pele do quadril à coxa.

Naoko sentiu o pulso estalar ao ser pego pela mão de Hisoka, mas a sensação se perdeu na apreensão de evitar o contra-ataque. Ela protegeu o estômago aparando o soco, notando seus pés marcarem o chão conforme a força do impacto se recusava a diminuir. A pressão sobre sua palma estremecia os ossos como se fosse pulverizá-los, obrigando-a a escolher uma parte para sacrificar. Quando a dor finalmente chegou ao seu abdômen, Naoko teve a impressão que havia se defendido em vão. O golpe arrancou seu fôlego ao encostar em seu corpo, queimando seus músculos feito uma explosão que se propagou rapidamente sem perder a intensidade.

— Não é educado roubar o brinquedo dos outros, — Hisoka disse balançando a carta que pegara de volta enquanto observava Naoko curvada sobre seu punho. — mas eu gostei da sua audácia. — Ele a ergueu com os dedos, segurando seu queixo com firmeza. — Você tem belas expressões, mas eu sinto falta de algo... — Roçou a unha nos lábios dela fingindo pensar. — Ah,... você ainda não gritou pra mim.

— Você vai morrer esperando por isso. — Ela sussurrou com dificuldade.

— Ora, um desafio... — Sorriu maliciosamente. — É claro que eu aceito!

Naoko sustentou o olhar e o orgulho. Entregar a dignidade não era opção, menos ainda, satisfazer o sadismo de seu carrasco. Daria o entretenimento que ele queria, contudo o prazer de ouvi-la exprimir qualquer som de dor permaneceria engasgado em sua garganta.

 Hisoka sentiu a palma arder quando os pingentes talharam um vale em sua epiderme. Ele havia percebido a intenção da mulher, no entanto a curiosidade o fez esperar pelo ato. Como recompensa, recebeu a visão privilegiada de sua carne e um incômodo na mandíbula que o fez notar o céu quase escuro.

— Deveríamos ter começado assim. Você me fez esperar tempo demais — disse usando sua textura surpresa para cobrir a ferida, encarando o semblante apreensivo de Naoko, agora a metros de distância. — Mas iremos recuperá-lo, não é, benzinho?

O asco que brilhou nos olhos dela o divertiu. Aos poucos, suas provocações dissipavam o medo e despertavam emoções mais interessantes. Ele a chamou com o indicador num gesto de quem detinha o poder no jogo e testava sua influência sobre o outro jogador. Riu por dentro da resistência ingênua que ela demonstrou e fez vibrar o fio de goma que os ligava. Puxou, percebendo-o se estender ao limite, balançando com a força empregada na outra ponta, apreciou um segundo e repetiu o movimento.

Por um momento Naoko não se moveu, para desgosto de Hisoka. O esforço que ela dedicava para não ter seu corpo manipulado por ele era enorme, no entanto prometia se tornar nulo num estalar de dedos e assim, feito um passe de mágica, a força se ausentou.

Ele preparou a investida, notando um pouco antes de desferi-la, Naoko cerrar o punho. Acertou-a em cheio no rosto, recebendo um golpe na face. Forçou a carne sentindo os dentes da mulher, e a pressão, menor, que ela exercia sobre os dele, cogitando a possibilidade de quebrá-los, porém se deteve. Era melhor brincar mais tempo antes de judiar do brinquedo. Blefou um soco contra o diafragma, posicionando suas garras quando Naoko fez menção de desviar, rasgando a blusa em quatro pontos. Sentiu o músculo debaixo dela se retesar e deslizou o pé para derrubar sua adversária, observando a queda se interromper num ataque contra sua costela.

A força exercida sobre o vão entre seus ossos foi a primeira dor verdadeira que recebeu de seu passatempo. Demonstrava que ele havia entendido o jogo.

— Precisa ir mais fundo se quiser me machucar de verdade — murmurou com satisfação, notando o olhar dela assumir um brilho diferente.

Hisoka se sobressaltou com a pontada aguda e recuou lançando um punhado de cartas que foi evitado. Retomou o sorriso, alargando-o de propósito ao perceber que era avaliado, e se pôs a espelhar o ato.

Naoko possuía sinais de abatimento e ainda não havia acertado o ritmo da respiração embora fizesse alguns minutos desde o golpe mais forte. Era possível que estivesse se concentrando em não transparecer sua real condição mas também fingindo debilidade. Podia não ser um desafio em termos de força, porém era cedo para dizer o mesmo em inteligência.

Ela continuou a fitá-lo com seriedade, questionando-se a dose certa para mantê-lo ocupado. Em sua mente, a linha entre desejar e descartar era como um fio de cabelo sob a influência das emoções daquele homem. Uma gota a mais ou uma pitada a menos poderia fazê-lo se partir. Até que ponto ele se satisfazia com o perigo? Que atitudes poderiam ameaçá-lo? Suas reações estavam de acordo com a expectativa dele?

— Foi fraco! — Hisoka disse colocando uma das mãos no quadril. — Há uma gota de suor no seu rosto, benzinho. Espero que seja de expectativa. — Exibiu seu nen fixado em três partes diferentes do corpo dela. — Porque eu estou ansioso para ver sua habilidade.

Os lábios de Naoko se entreabriram de surpresa, apertando-se quando seus olhos vagaram pela confusão experimentada. A expressão genuína de dúvida fez Hisoka se perguntar se ela era capaz de tamanho teatro e se este poderia lhe passar despercebido. Negou no instante seguinte, confiante em sua percepção e alimentou a conversa:

— Não vejo porque anseia por isso — respondeu com cautela na voz.

— Curiosidade! Quero saber se é capaz de usá-la contra mim.

— Não sou.

Hisoka não esboçou reação, ocupado em ler os detalhes no rosto da mulher. Desejou que ele lhe denunciasse a mentira, contudo apenas os traços da verdade compunham a face pálida que exibia uma poeira de segurança em meio às areias de receio.

— Não posso usar contra ninguém — complementou tomando o cuidado de não enfatizar a palavra que ecoava em seus pensamentos.

— É uma pena. Eu a mantive viva por isso. — Puxou o celular. Seus dedos discavam os números devagar enquanto hipóteses surgiam. — Qual a condição? — estilhaçou o silêncio antes de iniciar a chamada. — Irei arrancá-la de você se não disser.

♥ ♠ ♣ ♦

Illumi observou as horas. O prazo recebido escoava em gotas pegajosas que indicavam o término do trabalho dentro do combinado mas também insinuavam a possibilidade do contrário. Ele calculou o tempo desde que havia se separado de Hisoka, uma demora que não carecia de intérprete, e preparou suas agulhas.

Com passos calmos, transformou uma dezena de pessoas em marionetes. Com sorte durariam um minuto, intervalo suficiente para colocar o ponto final, do contrário ainda serviriam ao propósito que havia lhes destinado. Recrutou mais alguns enquanto deduzia o cenário que encontraria. Não esperava por nada, apenas matar e partir. Nem por um segundo seus pensamentos se desviaram do objetivo.

A vibração do celular doou-lhe um mínimo de surpresa ao rosto, e a ideia de que não precisaria levar adiante o que havia começado atravessou sua mente. Ele observou o número na tela semicerrando os olhos vagarosamente e bloqueou o incômodo que lhe acometeu ao constatar de quem se tratava.

— Eu disse que ligaria quando terminasse — interrompeu a primeira sílaba do outro.

— Você disse que seria rápido! Quanto mais tempo demorar...

Illumi se dignou a não ouvir o resto, estava cansado da cobrança constante.

— Não volte a me ligar. É a última vez que repito isso. — Encerrou.

Poucos minutos depois, o aparelho voltou a emitir seu murmúrio eletrônico, exibindo o número que Illumi havia decorado e preferia nunca mais ver de novo. O assassino já contabilizava os milhares que pediria pelo aborrecimento, aumentando algumas dezenas a cada vez que era questionado sobre o término do serviço. Se fosse dado a arrependimentos estaria remoendo o dia em que aceitara executar a mulher.

Ele fitou as ruas com indiferença procurando captar a aura de Hisoka, seguindo as ínfimas ondas que a distância permitia perceber e sondando as variações provocadas por influência de outra pessoa. O espanto sequer o tocou naquele momento como se a certeza daquela suspeita despertasse de um sono profundo.

♥ ♠ ♣ ♦

Hisoka fitou os joelhos vacilantes da mulher que insistia em se manter de pé. O chão já estava prometido a ela e a forma que cairia, definida. O próximo ato abriria as cortinas do movimento escolhido pelo mágico.

A carta destinada a beijar o pescoço de Naoko por centímetros não arrematou o topo de sua cabeça quando o solo recebeu o baque de seus ossos, contudo o que parecia um gesto calculado teve fim numa posição de derrota. Um corpo medíocre e exausto reunia suas poucas forças para preservar o que havia sobrado de sua dignidade.

Hisoka começava a crer que a mentira não residia nas palavras dela. Não se dispensava um trunfo na manga, e sua adversária não se comportava como quem fosse puxá-lo. Talvez ela dissimulasse como ninguém ou talvez não passasse de uma miserável sem sorte. Ele se aproximou numa passada suave, assobiando frustração enquanto decidia entre pressioná-la ou abrir-lhe a garganta para compensar o tédio.

— Vou deixá-la escolher a carta que irá lhe matar — disse como quem oferece um favor, fazendo o baralho ressoar sua melodia.

— Ás... de ouros.

Hisoka puxou a escolhida, e um estalo lhe ocorreu. A lembrança serviu de alerta, e ele lançou o ás acompanhando sua trajetória até o alvo. Os segundos brilharam de expectativa feito pó de ouro, impregnando os olhos que se cobriram com pálpebras em respeito à dedicação derramada naquele espetáculo. Num movimento gracioso, ele desviou da investida contra seu calcanhar e do mesmo modo desferiu um chute que foi aparado com dificuldade. A força que empregava em cada golpe deixara de ser uma amostra de seu poder para se tornar doses cada vez maiores.

— Você tem visão, mas não tem técnica. Eu tive chance de te matar pelo menos dez vezes. Agora mesmo, por exemplo... — Apontou para o abdômen dela. — Tenho outra. Então, benzinho, poupe meu tempo e me dê o que quero antes que eu mude de ideia.

Naoko fitou a linha rosa que em nenhum momento havia se desgrudado de seu corpo. Não sabia por onde começar para se livrar daquilo, mas compreendia a liberdade fornecida por seu adversário. Não era muito diferente da coleira que havia deixado para trás. Entretanto morrer nas mãos daquele homem ou do Zoldyck tinha uma diferença que embora desconhecida a obrigava a tomar uma decisão.

E ela soube que seu tempo havia chegado ao fim quando Hisoka soltou um suspiro baixo e pesado.

O andar calculado do corpo encurvado durou três passos. O quarto o colocou diante dela. O quinto foi o apoio de um soco que a esmurrou contra a árvore, abrindo uma cratera de lascas que penetraram nas costas já judiadas pelo combate. O sexto redefiniu o desespero de estar sem saída.

— Agora faremos uma grande performance... Quanta dor você consegue suportar antes de perder a consciência?

Naoko forçou a goma que se enroscara em seus membros, sentindo-a lhe apertar mais a cada tentativa e prendeu a respiração quando notou que seria incapaz de evitar o novo soco. A estratégia foi inútil perante o blefe, e a carne, lapidada pela ponta de uma carta, derramou suas preciosas lágrimas vermelhas.

— Se eu for mais fundo teremos uma chuva de sangue. — Hisoka disse pressionando o três de paus contra a coxa dela. — Seria bonito, mas você apagaria rápido... — Deslizou a carta para cima, abrindo pequeninas fendas na roupa. Parou no abdômen, girando-a suavemente enquanto fluía seu nen de modo intermitente. — Cortar seu pescoço também é uma boa ideia... Ah, por que é tão difícil decidir?! — queixou-se, terminando o desenho de um coração.

— Eu não vou implorar...

— Hum? Por que acha que quero isso? — indagou enquanto começava outro desenho. Os traços escorriam sangue e com ele Hisoka coloriu o coração e o losango após terminado. — Não faz diferença se você reagir ou não. Vou recuperar meu tempo perdido de qualquer forma.

Sustentando um sorriso maquiavélico, ele enfiou a carta ao lado do pescoço dela, partindo a árvore ao meio, e a puxou devagar, ferindo a pele que pulsava com velocidade. Apreciou o olhar atemorizado que fingia calma, sussurrou melodiosamente "tenha bons sonhos" e executou o grand finale.

"Boa garota."

O sangue escorreu em cascatas da boca de Naoko e seus dentes tremeram como se estivessem segurando uma espada. Os lábios arderam com o toque do vento e a língua formigou na poça amarga de saliva, expelida quando ameaçou escoar para a garganta.

Hisoka se vangloriou por não ter desistido e internamente louvou o ato da mulher. Agradava-o mais levar as situações ao limite, e Naoko era do tipo que só cedia a um dedo de tocá-lo. Ele mordeu o lábio pensando em dar a ela um sorriso maior, porém voltou atrás, contentando-se com o estrago já feito. Não queria que nada lhe furtasse a nitidez daquele rosto em agonia. Sacou um quarteto de ases, posicionando-os entre os dedos, exibiu-os num desafio a detê-los, distanciou-se um passo e atirou-os.

Os ouros e as espadas foram evitados por centímetros com um desvio mal calculado, o de paus, atingido por sua companheira de menor valor, ricochetou, encontrando seu fim numa lebre, e o vitorioso de copas abriu um caminho do ombro ao fim da coluna de seu alvo.

Hisoka sentiu sua cintura quente ao mesmo tempo em que o frio lhe invadiu junto com a sensação de umidade. Olhou para a mulher caída, a carne aberta num sulco raso e contínuo, a respiração ofegante, o esforço para se levantar. Quase não podia acreditar que a falha tentativa dela em cortar seu pescoço havia se convertido num outro golpe.

Sorriu.

Retirou a goma como presente. Não se importava de continuar a facilitar as coisas. Era divertido de uma forma diferente. Exigiu que sua oponente se erguesse. Não esperou que tivesse condições, agachou-se diante dela debochando de sua fragilidade, tocou sua testa de leve um par de vezes.

Naoko levantou a cabeça. Seus olhos desfilaram pela terra, subindo pelo corpo de Hisoka, num movimento que parecia se arrastar pelos segundos. Ela arfou quando eles correram para traí-la, fixando-se na ferida. Sentiu-se gelar de imediato. Cerrou os punhos que logo imploraram por liberdade, repuxando os tendões em protesto e por fim tomando as rédeas de sua necessidade.

Ele estava misturado a suor e poeira, ligeiramente espesso pelo contato com o mundo externo, mas conservava seu carmesim puro. Ainda detinha um pouco do brilho que o fazia fascinante quando foi tocado por mãos urgentes que lhe apertaram contra a pele, como se quisessem lhe forçar a voltar de onde saíra, acidentalmente espalhando-o e transformando-o em grandes marcas. Minutos depois, seu fluxo foi interrompido, e ele se dividiu entre a parte que havia escorrido para fora e a que permaneceu junto à fonte. 

Naoko observou imóvel o resultado. Todo o esforço empregado para evitar o pior cenário se converteu numa imensa perda de tempo.

— Interessante, mas acho que não é apropriado usar no adversário. — Hisoka pontuou, alisando a carne intacta. — Isso se você tiver o controle de sua técnica, é claro. O que me dá uma boa ideia de como me divertir com você... — A malícia que impregnava a voz se esfriou de súbito, e ele se colocou de pé observando as árvores a leste. — Temos companhia. Melhor controlar seu impulso.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Dúvidas, reclamações, erros no texto ligar para: 21 974...
brincadeirinha!

Mas se quiser deixar um comentário, responderei com todo carinho!
Bjs!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Fortuito" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.