Cinzel, Angel, Rigel. escrita por João Victor Costa


Capítulo 4
A Criança




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Ameacei soltar um grito quando acordei do nada, no meio do noite, com Mark me cutucando. Ele colocou a mão na minha boca no mesmo instante e esperou eu me acalmar.

— O que você está fazendo aqui? - sussurrei para ele, nervosa. - Como conseguiu chegar aqui?

Os corredores estavam escuros e silenciosos do outro lado da porta.

— É uma longa história. - comentou ele, olhando para trás. - Quer ir até a cidade hoje?

Mark parecia apenas uma silhueta, uma forma na escuridão. Aos poucos, absorvi aquela informação.

— Irei me arrepender disso depois? - perguntei, com um tom de sarcasmo.

— Com certeza - admitiu ele antes de eu pular para fora da cama na ponta dos pés.

— Sim. - respondi, sorrindo.

Damos as mãos um ao outro e saímos em disparada pelo corredor, logo depois de certificarmos que não haveria ninguém. Alguns funcionários estavam de plantão, mas não tivemos dificuldades de evitá-los. Fomos até o segundo andar, entramos em uma sala vazia e saímos pela janela, em direção ao pátio, escorregando agarrados em uma pilastra.

— Vamos! - disse Mark, apressado. Minha mão se escorregou da dele e, nesse momento, eu simplesmente parei, no meio do jardim.

Olhei para o céu nublado e tempestuoso. Ouvi um trovão ou dois.

— Isso não é real. - sussurrei para mim mesma, de olhos vidrados.

— O que você está fazendo? - Mark perguntou, olhando nos meus olhos, com seu rosto bem diante de mim. Seu belo rosto…

— Não é real.

Fechei os olhos e quando os abri, Mark havia sumido e tudo estava ainda mais silencioso. Só se podia ouvir o som de chuva e dos trovões.

— Sim, é real. - ouvi uma voz suave atrás de mim e quando me virei, vi uma criança esgueirando-se de trás de uma árvore. - Muito real, mas não para você.

Lágrimas começaram a escorrer dos meus olhos. A garotinha não era uma criança comum. Sua pele era verde e seus cabelos eram feitos e flores, folhas e espinhos.

— O que está acontecendo? - perguntei. Já estava cansada daquela pergunta. - Onde está Mark? Quem é você?

Ela me observou, com curiosidade.

— Eu sou a Criança. Você não se lembra?

— Não.

Eu me vi parada, na rua, com a respiração pesada e acelerada como se estivesse acabado de ter um ataque. Alguém me chamava.

— Angel, você está bem? - Mark perguntou, segurando minhas mãos - Angel?

Desvencilhei-me dele e andei pela rua. Estava escuro e a chuva agora caía fraca do céu.

— Onde… Onde nós estamos? - perguntei, olhando em todas as direções ao meu redor, procurando qualquer detalhe, qualquer coisa, que me desse alguma resposta. Notei que não estávamos usando o uniforme do hospital. - Que roupas são essas? Mark, elas ainda estão com as etiquetas! Que roupas são essas?

Não consegui olhar para ele. Eu só queria sair dali. Daquele mundo.

— Você não se lembra? - perguntou Mark, boquiaberto. - Nós fugimos! Droga, precisamos voltar. Preciso te levar de volta!

Nesse momento observei o letreiro brilhante de uma casa de festas do outro lado da rua e, em seguida, olhei diretamente para o rosto de Mark. Eu engasguei, sentindo minha garganta fechar enquanto arregalava os olhos.

— Não, não… - Cambaleei e dei meia volta, correndo o mais rápido que consegui. Meus pés afundavam-se nas poças de água que se formaram ao longo da rua. Entrei em uma rua pequena onde passei a ouvir cada vez mais alto o som de música e pessoas. Sem pensar muito bem, invadi a casa de shows pela porta dos fundos.

Mark gritou atrás de mim. Entrei na festa e corri por entre as pessoas em uma expressão constante de pânico. Pressionei minhas mãos contra os ouvidos e fugi, com medo das pessoas sem rosto que esbarrava pelo caminho. Por cima de ombros e cabeças que dançavam e pulavam, consegui localizar a placa de um banheiro e foi para lá que eu corri, trancando a porta atrás de mim.

Lá dentro, gritei em silêncio quando vi meu próprio reflexo borrado no espelho. Tateei meu rosto, na tentativa de sentí-lo, mas eu não conseguia vê-lo.

— Tão linda… - sussurrei para mim mesmo, deixando lágrimas escorrendo por minhas bochechas. Uma energia súbita percorreu meu corpo e fechei a mão, dando um soco forte no espelho e fazendo meu punho ficar vermelho. Alguns cacos de vidro caíram.

Dizem que quebrar espelhos dava azar.

— Angel! - Mark me gritou. Ele estava do lado de fora e tentava, a todo custo, arrombar a porta. Chocava-se contra ele, gritando meu nome em desespero, com o som da festa abafando sua voz. - Angel!

Peguei um dos cacos maiores do espelho quebrado e fechei os dedos em volta dele, fazendo sangue escorrer pela minha palma.

— Vá embora! - gritei de volta, desabando no chão. Usei o pedaço do espelho que eu ainda segurava para observar mais uma vez meu próprio reflexo. Fechei os olhos e respirei profundamente. - Nada disso é real.

Nada disso é real. Abrace a Ovelha ou acorde.

Acorde.

A porta cedeu, mas nada havia do outro lado. Tudo ao meu redor estava branco.

Angel caminhava por um jardim que a fazia se lembrar do mesmo jardim da mansão, muito mais calmo, agradável e incrivelmente acolhedor. Empoleirada em uma árvore próxima, estava a Criança.

— Ouvimos muitas histórias sobre você. - disse ela, tranquilamente. - Você é um mistério, até mesmo para mim.

A Criança desceu escorregando pelo tronco da árvore e se acomodou em meio às raízes.

— O que está acontecendo? - perguntei a ela, com tristeza na voz. - Por favor, me diga o que está havendo comigo!

— Já aconteceu uma vez. - contou ela, pensativa. - Há uma história que diz que, quando alguém descobre a verdade sobre o motivo do universo existir, ele simplesmente se apagar. Se desintegra por completo para formar um mundo ainda mais complicado. Claro, há muitas interpretações diferentes dessa história, mas creio que você não esteja muito longe da sua verdade.

Analisei pensativa as folhas secas no chão.

— Como eu faço, para descobrir a verdade? - perguntei. A Criança se levantou e saiu saltitando pela floresta.

— É simples, apesar de toda essa complexidade. - afirmou ela, enquanto se distanciava. - Não escolha se juntar ao abraço da Ovelha ou ser perseguida pelas garras do Lobo. Escolha a vida, e não a morte.

Então, tudo ficou branco mais uma vez

...

Abri os olhos e me deparei dentro de um sonho, sem que realmente estivesse sonhando. Eu não era mais uma constelação ou um anjo. Eu era uma estrela, Rigel, e havia voltado para casa.

Encontrava-me no centro de uma plataforma circular de pedra que flutuava em meio ao céu estrelado. Havia um arco de pedra que nada se via do outro lado além do vazio.

— Está preparada? - perguntou alguém. Percebi que era a Criança, que estava do meu lado.

— Sim - assenti.

Nós duas damos as mãos e atravessamos o portal para outro mundo.

Nós duas surgimos em um lugar que me parecia bastante familiar. Era o pátio de uma escola e os muros eram pintados nas cores azul e branco. Os banquinhos estavam vazios.

— Angel esteve aqui, neste momento, uma única vez. - afirmou a Criança. - Para Angel, tudo acontece apenas uma vez. Observe.

Uma garota de cabelos castanhos que deveria ter uns doze anos, mais ou menos, entrou no banheiro feminino. Menos de um minuto depois, um grupo de garotas da mesma idade a seguiu.

— Oh, não. - lamentei, compreendendo do que aquilo se tratava. - Não podemos fazer alguma coisa para ajudá-la?

— Não, sinto muito, Rigel. - A Criança admitiu e ficamos apenas esperando. No banheiro da escola, Angel chorava perante os insultos e tentava se soltar desesperadamente da colega que a segurava por trás enquanto uma outra usava uma tesoura em seu longo cabelo castanho.

O grupo saiu correndo do banheiro, deixando sozinha por lá a garota que mais tarde teria pegado aqueles mesmos fios de cabelos castanhos e dado de presente para sua mão no hospital.

— Angel esteve aqui uma vez… - disse eu, pensativa, observando enquanto Angel fugia com a mecha de cabelos cortada guardada na mochila.

— Porém, Cinzel esteve aqui muitas e muitas vezes. - explicou a Criança.

As poucos eu começava a compreender.

— Cinzel é os sonhos dela. Os sonhos de Angel. - foi o que eu disse. A Criança assentiu. - Cinzel é os sonhos e pesadelos de um anjo…

— Isso mesmo. - concordou a garotinha. - Infelizmente, Angel nunca foi normal.

...

A cena mudou. Estávamos agora no quarto de Angel

A janela estava aberta e a garota observava as estrelas lá fora, sempre consultando em um livro a posição das constelações para conseguir identificá-la no céu.

Ficava ali, todos os dias, contemplando.

— Foi assim que ela. - disse eu, compreensiva. - Que nós… Aprendemos tanto.

— Sim. - A Criança concordou, indicando os arranhões que Angel fazia em si mesma. Marcas vermelhas que sumiam da pele em uma semana ou duas, mas não tão rapidamente de sua alma. - Não era a única forma que usava para escapar do mundo, afinal.

E então a cena mudou.

 

— As cicatrizes. Como Angel conseguiu as cicatrizes? - perguntei.

O cenário foi substituído por uma ponte e, no meio dela, a garota de cabelos castanhos cambaleava sozinha, enquanto os carros buzinavam

— É uma pergunta curiosa, admito. - disse a criança. - Acho que é a única lembrança, marcada na própria pele, que afirma que Angel já morreu.

Não me surpreendi.

— Eu estava morta esse tempo todo?

— Não exatamente. - A Criança respondeu. - No momento em que o Lobo a atacou, ele cravou as marcas na forma de uma constelação em suas costas, mas você acordou. Sabe, é impressionante a forma que você conseguiu escapar, tantas vezes.

— Quem são eles, exatamente? - perguntei. - O que são o Lobo e a Ovelha?

— São escolhas. Pode escolher a Ovelha e dormir ou fugir, sendo caçada pelo Lobo. Em ambas as opções, você nunca acorda. Entretanto, há uma terceira, que quase ninguém nota.

Observamos a garota na ponte. Ela desmaiou no meio da rua e algumas pessoas saíram dos carros para ajudá-la.

— Ele está vindo. - disse a Criança. Uma onda de terror me invadiu e meu coração se acelerou. - O Lobo está vindo para você.

O cenário mudou mais uma vez e eu me vi flutuando, em meio às estrelas.

— Ora, ora. - A terrível voz do Lobo fez com que meus ossos congelarem e meus músculos se enrijecerem. - As escolhas acabaram, Cinzel, Angel, Rigel…

Na escuridão do outro extremo do Salão Estrelado, o Lobo surgiu arqueando lentamente a cabeça e exibindo sua máscara de um único ponto. Seus cabelos negro pareciam se fundir à escuridão ao mesmo tempo em que seus olhos se disfarçavam em meio às estrelas.

— Não, não acabou. - A Ovelha surgiu graciosamente do outro lado, com seu típico brilho prateado no olhar. - Você ainda tem tempo para escolher, mas não muito.

O Lobo grunhiu.

— O que vai ser? - perguntou ele. A cada segundo que se passava, ele dava mais dois passos em minha direção. Percebi que a garotinha com cabelos feitos de folhas e flores ainda estava do meu lado.

— Eu escolho a Criança.

Os dois se surpreenderam e assim, todo o universo se desfez.


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