Rune abr Fricai - Os Versos do Amigo escrita por Dan Achard


Capítulo 8
Sentimentos Imutáveis


Notas iniciais do capítulo

YO. Então, aí está mais um capítulo (que deu muito trabalho e ficou enorme). Boa leitura!



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— Já basta. – disse Eragon, acenando para que os jovens Cavaleiros encerrassem o fluxo de energia que alimentava os encantamentos. – É o suficiente por hoje.

Os dois alunos relaxaram os músculos e deixaram as duas rochas tombarem no chão com um baque surdo. Estiveram sustentando enormes pedras no ar por meio de magia enquanto tentavam penetrar um na consciência do outro nas últimas horas daquela tarde. Aparentavam cansaço e aborrecimento, já que nenhum deles obtivera vantagem sobre o outro.

— Visto que estudaram com Arya Dröttning praticamente juntos, não é de se admirar a semelhança entre suas habilidades. – comentou o Mestre dos Cavaleiros, pensativo. Observara de perto as reações dos aprendizes, tanto psicológicas quanto físicas, durante aquele treinamento. – Creio que ela ensinou as mesmas técnicas de invasão mental para vocês. Porém, nem todos se adéquam ao mesmo estilo de combate, e o estilo dela é apropriado para um elfo, mas não para alguém de outra raça. Imagino que seja sábio que vocês possuam um modo de luta mental já formado de sua preparação inicial com a rainha e que ao menos conheçam e saibam executar relativamente bem as técnicas élficas, mas duvido que queiramos formar uma nova geração totalmente homogênea e invariável, certo?

Os discípulos pareceram confusos, porém assentiram. O Mestre achou graça da situação, ao mesmo tempo sentindo-se estranhamente confortável. Durante os últimos anos, desde que tomara conhecimento de seu dever como líder da Nova Ordem dos Cavaleiros a ser formada, perturbara-se com a perspectiva de que, um dia, seria ele a instruir os mais novos em vez de aprender com os mais velhos. Entretanto, desde o momento em que iniciara as observações acerca do que os Cavaleiros recém-chegados aprenderam com Arya, constatou que tal preocupação era essencialmente desnecessária. Ensinar àqueles que necessitavam de instrução mostrara-se uma tarefa prazerosa e gratificante, beneficiando tanto aos que ouviam quanto ao que falava.

— Creio que necessitaremos de uma ou duas semanas para que possamos repetir o teste de hoje, mas certamente vocês notarão a diferença. – prosseguiu o Matador de Rei. – Praticarão a defesa e o ataque mentais de outra forma: a partir de hoje: ambos deverão lutar individualmente comigo. Tentarão tomar a minha consciência a todo custo enquanto defendem as suas próprias.

— Nunca conseguiremos. – contrapôs secamente Ki’dáin, o anão Cavaleiro do dragão Mustethun. – Não somos tão poderosos assim.

— Quem sabe? – retrucou Eragon, dando de ombros displicentemente. – Posso ser pego desprevenido. Apenas tentem dominar minha mente.

— E quando começamos? – indagou Naatruk com seu sotaque pesado de urgal.

— Quando quiserem. – respondeu o Mestre, indiferente. – Quando eu estiver partindo daqui, durante o jantar, algumas horas antes do desjejum... Será um ataque contínuo, sem horário estipulado ou técnicas preferenciais. Usem a criatividade, pois conheço todos os truques que usaram hoje e saberei defender-me deles. Inventem novas táticas. Inovem!

Tão logo o Matador de Espectros terminou de falar, sentiu uma consciência tentando tomar o controle de sua mente. O Mestre identificou o invasor como Naatruk, o Cavaleiro de Adsha, e sorriu consigo mesmo – o rapaz tinha iniciativa. Contudo, os muros que ergueu para proteção própria eram tão imperturbáveis quanto Argetfell, a montanha prateada em que estavam. Ousado, pensou Eragon, mas não é o bastante.

O ataque cessou e o urgal mostrou os dentes, demonstrando satisfação apesar do insucesso.

— Talvez na próxima. – disse ele com um toque de entusiasmo na voz.

— Infelizmente, tem muita coisa para mudar na abordagem. Suas técnicas não foram muito diferentes das que veio usando durante essa tarde e eu pude sentir sua dificuldade em executá-las. – declarou o Mestre em tom formal. – Mas devo admitir que foi um começo promissor, Naatruk-finiarel.

O discípulo assentiu com o rosto sério. O urgal, diferente do que Eragon pensara a princípio, era um aluno dedicado e estudava com afinco. O Líder da Nova Ordem sabia que seria insensato de sua parte tomar os urgals por Cavaleiros inferiores e desleixados em relação aos demais. Sua raça provara-se incrivelmente leal aos Varden durante a Guerra da Conquista, tantos anos atrás, e eles costumavam empenhar-se em seus deveres mais que qualquer outra criatura. Entretanto, foi inevitável refletir se a escolha que fizera ao incluí-los no pacto com os dragões fora o caminho certo a se seguir. Naquele momento, porém, ele pôde concluir que estava enganado e Naatruk era o tipo de aluno que ele nunca fora – o aluno perfeito.

— Bem, acho que ambos precisam de banho e descanso antes do jantar. – disse o Matador de Espectros, notando que os dois jovens permaneciam de pé apenas por pura força de vontade. – Eu mesmo preciso disso e não os reterei por mais tempo. Não aprenderão nada se caírem no sono enquanto eu estiver explicando os princípios da natureza.

— Sim, Ebrithil. – concordaram eles, inclinando levemente a cabeça.

Os dois viraram-se e caminharam em direção à única porta da Arena, debatendo sobre os erros e acertos que cometeram durante o dia de treinamento. Ao observá-los afastando-se, Eragon começou a divagar acerca de seu próprio tempo como aluno. Lembrava-se de ter sempre estudado só, sem um colega ou mesmo um rival Cavaleiro com quem pudesse comparar suas habilidades e competir pelos elogios do mestre. Tivera Murtagh para impeli-lo a evoluir e derrotá-lo e Vanir para incentivá-lo ao progresso na esgrima, mas jamais teve a oportunidade de aprender lado a lado com outro aprendiz. Ele sentia-se feliz em saber que a nova geração dos defensores seria marcada por uma união e companheirismo que jamais existira nas anteriores.

Eragon. Veio a voz clara de Saphira, arrancando-o de seu devaneio.

Também terminou o expediente? Perguntou o Cavaleiro, sentindo-se contente por ouvir a voz da parceira depois de um dia separados.

Sim. Adsha e Mustethun estão descendo na área de pouso, mas quero encontrá-lo na torre leste do Salão-Sede.

Estou a caminho. Disse Eragon, dirigindo-se à saída utilizada momentos antes por Ki’dáin e Naatruk e deixando o prédio circular que servira para avaliar seus alunos.

***

O vento bagunçava os cabelos de Eragon e repuxava suas faces, fazendo-o senti-las dormentes. Suas pernas estavam abertas em um ângulo desconfortável, devido à ausência de sela em Saphira durante aquele voo e ao aumento do diâmetro do pescoço do dragão durante os últimos anos. Ele segurava com firmeza o espinho à sua frente, a fim de não despencar das nuvens alaranjadas de fim de tarde em direção à extensa campina que se projetava quilômetros abaixo. A despeito disso, entretanto, sentia-se imensamente satisfeito por voar com sua parceira depois de quase uma semana instruindo os novos Cavaleiros e seus dragões.

Eu deveria ter saído com a sela de manhã. Lamuriou-se Saphira, sentindo o desconforto do amigo.

Não se preocupe com isso, já é ótimo estar no ar com você depois de tanto tempo. Tentou acalmá-la o parceiro.

E seria ainda mais tempo se não fosse por eu tê-lo ameaçado caso não terminasse mais cedo que de costume com os bípedes novatos hoje.

Não acho que me abocanharia e cuspiria no rio Edda apenas para conseguir a minha atenção, certo? A voz do Cavaleiro soou insegura.

Claro que não. Eu também levaria você para longe de Argetília e o prenderia sob minha pata em um pântano qualquer. Quantas sanguessugas acha que vivem naqueles ao sul?

Eragon engoliu em seco. A voz da parceira estava mortalmente calma e ele sabia que, dentre tantas outras qualidades, o dragão era extremamente determinado. E vingativo.

Conseguiu pensar em alguma coisa sobre o caso de Ismira? Indagou o rapaz, tentando mudar de assunto.

Nada em especial. E você?

Queria ter obtido mais sucesso. Admitiu ele, abatido. Blödhgarm não conseguiu identificar nenhuma espécie de relação entre a clareira e o navio. Temo que, caso não consigamos outra forma de transporte em alguns dias, Ismira permanecerá um mês ou mais conosco até o primeiro vislumbre de pista ser encontrado e pelo menos um ano até ser seguro usar o Talita de novo.

Já pensou em chamar Arya ou alguém de confiança até aqui para buscá-la?

Creio que ela repudiaria a presença de outros que não sejam os Cavaleiros ou os que já estejam aqui antes de a Nova Ordem estar mais amadurecida. Eu o repudio. Argumentou Eragon, dizendo-lhe o que concluíra naquela tarde. E você sabe tão bem quanto eu que ninguém mais, nem mesmo ela, sabe o caminho daqui.

Você poderia contá-la. Contrapôs Saphira. Seguir o curso do Edda não deve ser um desafio para alguém como ela ou Fírnen. Na verdade, para ninguém que possua miolos na cabeça e, no mínimo, duas patas.

Ela é a rainha dos elfos e tem muitas obrigações por lá, ainda mais com os novos ovos que chegaram há quase duas semanas na Alagaësia. Imagino que ela não disponha de tempo para uma viagem assim.

Acredito que ela viria caso pedíssemos. Ela sente-se responsável pelo que aconteceu a Ismira, Roran tratou de culpá-la quando recebeu a notícia em Gil’ead.

Ainda assim, não farei isso. Sei que ela viria, mas não quero pressioná-la. Conheço bem a sensação de estar atarefado e outro problema só iria prejudicá-la. Disse o Mestre dos Cavaleiros em um tom que punha fim ao assunto.

Que nobre atitude! Zombou Saphira, ignorando o desconforto do parceiro. Gostaria de saber se é pura gentileza sua ou se tem outros motivos por trás de seus argumentos. Você está apenas criando mais problemas para si mesmo!

Não há nada a esconder. Declarou ele, mesmo sabendo que era inútil contrariar os sentimentos que já haviam escapado por sua forte ligação com o dragão azul. Apenas acho que...

...Que vê-la pessoalmente iria feri-los ainda mais. Ou talvez apenas ferisse a você. Interrompeu-o a companheira, inclinando-se para diminuir a altura de seus voo. Sei que essa situação é difícil pra você, Eragon. Eu também deixei minha casa para trás e compartilhei de sua dor. Mas precisa deixar seus medos de lado quando se trata de fazer o que é certo.

A pequena figura no dorso do dragão hesitou, ciente de que a parceira estava correta. Não poderia pôr seus temores e sentimentos acima do dever. Nunca. Jamais. Um Cavaleiro não agia assim, muito menos o Líder da Ordem. Era necessário sacrifício, e ele precisava estar disposto a ignorar os próprios interesses em benefício dos outros. Esse era seu dever.

Procuraremos outra solução. Decidiu ele. Até o fim dessa semana. Depois disso, entrarei em contato com a rainha dos elfos e a informarei sobre a situação.

Continuaram conversando sobre assuntos variados até o sol desaparecer por completo no horizonte. O dragão inclinou-se com ar majestoso e voltou a Argetfell, a montanha que agora servia como lar para eles. A formação rochosa fora encontrada cerca de duas semanas após a partida de Eragon de Hedarth, quando os tripulantes do Talita haviam decidido ancorar e descansar em terra firme à noite. O pico da montanha cintilava ao por do sol, porém o que despertara o interesse deles fora o brilho intenso que provinha dela, como o de um diadema de prata sob a luz solar, durante a noite. A luz do luar parecia concentrar-se na montanha, irradiando-se do pico ao sopé, e espalhava-se pela região circundante mais que em qualquer outro lugar do mundo. Os campos de vegetação alta, tal como o rio Edda, pareciam constituídos de mercúrio líquido, coloridos por um prateado produzido pelo brilho da imensa elevação. Era como se o monte fosse uma extensão da lua, um pedaço lunar que fora lançado na campina e servia como um embaixador dela na terra.

Cavaleiro e dragão haviam decidido investigar a curiosa montanha naquela noite, descobrindo que ela possuía uma imensa abertura no topo, com uma cavidade espaçosa e incrivelmente bem iluminada em seu interior. Após a constatação de que, durante o dia, o espaço também era inteiramente alumiado pelo sol - graças às bordas lisas da cratera que serviam como espelhos que refletiam a claridade para toda a cratera -, o local foi escolhido como lar da Nova Ordem dos Cavaleiros. Desde então, os novos habitantes passaram a primeira década de estabelecimento no lugar cantando na Língua Antiga para construir, a partir da rocha, as diversas construções que então constituíam Argetfell, a Montanha de Prata. Não era costume dos elfos cantar para a pedra, mas o local demonstrara ter uma ausência de árvores na época, contraditória a seu solo que se provara inacreditavelmente fértil posteriormente.

Ao aproximarem-se da entrada dela, Eragon e Saphira tiveram uma visão ampla de cada construção ou área vazia da cratera, contemplando mais uma vez o resultado de dez anos de esforços e investimento no local. No centro do espaço, a área de pouso – uma grande região despida de qualquer prédio ou calçamento – resplandecia à fraca luz do crepúsculo, com seu solo acinzentado remexido pelas pegadas produzidas pelas patas dos dragões que ali desciam ao longo dos últimos dias. Em cada uma das quatro direções principais, estradas seguiam rumo às demais construções, cobertas por ladrilhos de calcário e ladeadas por postes que suspendiam as lâmpadas sem chamas élficas.

Seguindo o caminho do sul, a estrada era cercada por árvores de todos os tipos, que cresciam com ajuda de encantamentos élficos e do solo prateado – que se provara espantosamente fértil quando Matwë, um dos elfos, tentara cultivar uma bétula perto das paredes nuas de Argetfell. Do lado esquerdo da estrada sul, encontravam-se as edificações mais valiosas da cidade – o Berçário, onde os ovos e os filhotes de dragão eram mantidos; o Cofre, onde eram armazenados os eldunarí sob a proteção de Cuaroc; e o Armazém, onde eram depositadas provisões para os dragões em crescimento. Em cada um dos lados do Berçário, uma cabana fora construída para morada dos que mais tempo gastaram cuidando dos primeiros dragões que aos poucos foram nascendo: Blödhgarm e o próprio Líder da Ordem. O chalé deste fora erguido à margem do grande terreno repleto de árvores, plantadas pelos elfos, que se estendia para o leste da cratera, reservado para os futuros Cavaleiros e seus dragões habitarem.

No nordeste, logo acima do espaço reservado aos Cavaleiros, uma grande construção repleta de acomodações fora erigida com o intuito de abrigar eventuais hóspedes, como era o caso de Ismira. Acompanhando sua saída, havia as Casas de Banho e diversos canteiros de flores, perfumando o ar e embelezando a paisagem. Uma longa passarela seguia da Casa de Hóspedes até uma encruzilhada, que apontava para a Área de Pouso ao sul, para a Biblioteca a oeste e para o Salão-Sede ao norte, a maior e mais majestosa construção do lugar. Entre a encruzilhada e a biblioteca, erguiam-se o Pavilhão de Refeições, construção circular coberta por telhas de argila avermelhadas, e a Cozinha.

Por sua vez, a Biblioteca era cercada pelas Áreas de Cultivo, regiões reservadas ao plantio dos mais variados legumes, verduras e ervas. Ao sul do prédio, onde eram mantidos inúmeros livros e pergaminhos chegados da Alagaësia alguns anos atrás, numerosas casas e choupanas pontilhavam o espaço cercado de árvores, utilizadas como residência pelos demais elfos que acompanharam o Cavaleiro em sua nova missão de fundar a Nova Ordem há cerca de dezoito anos. Havia poços – reservas de água trazidas do rio Edda eventualmente pelos elfos – espalhados próximos de cada construção do local.

O Arsenal, para onde Eragon pretendia dirigir-se após o pouso, localizava-se entre a encruzilhada e a Área de Pouso. À sua frente, a Oficina e a Arena foram levantadas lado a lado, visto que as três edificações eram constantemente associadas em suas funções. Era no Arsenal que as espadas de Cavaleiro, encontradas no antigo castelo de Galbatorix, eram guardadas e o Matador de Rei pretendia selecionar algumas para a escolha dos novos alunos no dia seguinte, que ainda utilizavam espadas comuns.

Você acha que encontraremos espadas apropriadas e de cor semelhante às das escamas de Adsha e Mustethun? Indagou o Cavaleiro à sua parceira quando entraram na montanha.

Creio que sim, muitas espadas foram encontradas em Uru’bain.

Se não encontrarmos, acredita que Rhünon nos contaria uma forma de mudar a cor das lâminas e bainhas?

Acho melhor para ela que sim. Veio a resposta cortante de Saphira. Não ando com um humor muito bom para discutir diplomaticamente. Eu voaria até Ellesméra e arrancaria a informação dela do mesmo jeito que se arrancam as entranhas de um gamo.

Não vai chegar a tanto. Disse Eragon, surpreso com a resposta da companheira. Seja como for, a cor é apenas um acréscimo conveniente, não uma necessidade.

Ao aproximar-se da Área de Pouso, Saphira parou no ar e pareceu intrigada, batendo as asas para ascender um pouco. Apenas após alguns instantes perguntando-se o que teria acontecido, o homem de feições élficas percebeu uma leve pressão no fundo de sua mente e entendeu qual fora a razão daquilo – algum tipo de contato fora acionado com o pequeno espelho no gabinete em sua cabana. Ao depositar o espelho utilizado para contatar a Alagaësia em sua mesinha, o Cavaleiro criara um encantamento que lhe permitia saber quando alguém tentava conectar-se com ele, fazendo-o sentir um leve toque em sua consciência.

Como você não percebeu esse contato antes? Perguntou Saphira, incrédula. Sinto um leve contato há mais ou menos cinco minutos, mas pensei que fosse apenas sua mente ligada à minha até perceber que a sensação, na verdade, é na sua.

O cansaço deve ser a resposta. Respondeu ele, confuso. Não estou acostumado a ensinar todos os dias e voar com você em seguida.

Não ouse culpar-me pelo seu desleixo. Isso foi sua falha, não minha.

Tudo bem, você está certa. Sinto muito. Desculpou-se Eragon. Poderia levar-nos até a cabana?

Claro.

***

Eragon estacou a dois passos da cadeira de encosto alto, subitamente apreensivo. Desviou os olhos do espelho e encarou a figura nele novamente, como se para se certificar de que seus olhos não o haviam enganado. Sentiu algo arder em seu peito, algo antigo e que jamais fora esquecido.

— Atra esterní ono thelduin, Eragon-elda. – disse Arya, a rainha dos elfos.

O Cavaleiro forçou-se a sair de seu estupor, dando os passos restantes e sentando-se na cadeira atrás da escrivaninha que suportava o espelho com a imagem da elfa.

— Atra du evarínya ono varda, Arya Dröttning. – respondeu ele, tardiamente lembrando-se de que o gesto de respeito dos elfos não poderia ser realizado corretamente caso estivesse sentado.

— Não se preocupe com formalidades, Eragon. – interrompeu-o a rainha dos elfos quando ele fez menção de levantar-se. – Guarde os títulos e a etiqueta para uma ocasião mais formal. No momento, estou contatando-o por meu espelho particular, não pelo da sala do trono.

O homem tentou inutilmente relaxar na cadeira, confuso com a situação. Ao amanhecer daquele dia, tentara entrar em contato com a Cavaleira para relatar-lhe sobre o aparecimento de Ismira em Argetília, nome escolhido para referir-se ao conjunto composto pelo monte Argetfell e suas cercanias. Entretanto, Däthedr, um dos conselheiros da rainha, informara-lhe de sua ausência e pediu para que ele tentasse novamente em alguns dias. O repentino contato da elfa naquela noite criou uma série de perguntas em sua mente, porém ele decidiu fazer apenas uma:

— Soube que esteve ausente de Ellesméra. Anda viajando muito a Hedarth?

— Pretendo ir até lá em duas semanas, na verdade. Estive viajando por toda a Alagaësia para conferir o andamento das Cerimônias de Apresentação de cada raça. – explicou Arya. – Agora mesmo, estou esperando ser chamada para um banquete dos urgals que ocorrerá em alguns minutos. Por isso, precisamos ser rápidos.

Eragon assentiu, preparando-se para contar-lhe em ligeiras palavras como Lanrí encontrara Ismira e o que ela contara a respeito de seu desaparecimento. Contudo, antes que pudesse dizer qualquer palavra, a bela elfa de cabelos negros e olhos verdes como a esmeralda suspirou, começando a falar.

— Eragon, a rainha Nasuada entrou em contato com Nar Garzhvog e pediu-lhe que me informasse algo importante relativo ao caso de Ceunon. – começou ela, com um tom de voz que evidenciava a gravidade da situação. – Creio que ela já o tenha comunicado sobre o que aconteceu na cidade há quase um mês.

O Cavaleiro voltou a assentir, recordando-se da conversa que tivera com a rainha do Império há algum tempo. A mulher contara-lhe que um ataque havia aterrorizado os cidadãos de Ceunon e custado aos Jogos Triviais um adiamento, apenas encerrado pelas crescentes pressões feitas pelos anões e urgals, que ansiavam pelas competições. Quando perguntada sobre a identidade dos invasores, apenas dissera buscar respostas com os melhores magos e seus feitiços de recriação de cena. Contudo, diversas testemunhas afirmavam tratar-se de velhos e perigosos inimigos – os Ra’zac.

— O general urgal disse-me que ela pediu sigilo sobre essa informação, permitindo-me contá-la apenas a você, como Líder da Nova Ordem e aliado confiável. Caso essa notícia se espalhe, o pânico poderá se instaurar por toda a Alagaësia, e a última coisa que queremos é medidas precipitadas sendo tomadas por nobres do Império, causando desordem no reino. – prosseguiu a rainha dos elfos. – O fato é que os magos da Vanyalí Varden finalmente obtiveram sinais que comprovam os nossos maiores temores.

O Mestre dos Cavaleiros sentiu o peito arder com uma nova sensação, nem de longe tão agradável quando a que sentira inicialmente ao ver Arya. Esta fora um calor agradável e reconfortante, seguido por uma dor nostálgica e melancólica. Contudo, o que experimentou dessa vez foi uma ardência gélida, um pavor e ódio tão antigos quanto a outra sensação, se não mais. A ânsia por destruir a causa dela era tão intensa quanto seu impulso de agarrar-se ao calor vindo da primeira emoção. Duas percepções extremamente opostas, que apenas tinham em comum sua imutabilidade e profundidade.

— Quer dizer que eles voltaram? – indagou ele em tom sombrio.

— Sim. – concordou a elfa gravemente.

— E o que faremos a respeito?

— Esperaremos. – respondeu Arya, assumindo uma expressão atônita. – Não há nada que possamos fazer, exatamente. Não sabemos onde eles esconderam-se durante todos esses anos, muito menos se ainda permanecem lá. Todos os magos rastreadores restantes, os que não estão em Hedarth, foram enviados para buscar, de alguma forma, pistas de onde eles possam estar entocados.

— Compreendo. – disse o Líder da Ordem. – Gostaria de poder ajudar nas buscas, por mais que eles sejam praticamente inencontráveis.

— Não se preocupe com isso, agora. Nós daremos um jeito de localizá-los e exterminá-los antes que os Jogos Triviais acabem. – garantiu-lhe ela, tentando tranquilizá-lo. – Sua tarefa agora é instruir Ki’dáin e Naatruk. Eles são o futuro, não só da Alagaësia, mas de todas as terras por onde andarem.

— Tem razão. – admitiu o homem com um suspiro. Por mais que quisesse ele mesmo terminar o que havia começado com o primeiro par de Ra’zac, sabia que seria inútil preocupar-se com mais um problema. Mal tinha pensado em alguma solução plausível para o caso do transporte de Ismira, o que poderia fazer pela Alagaësia, onde sequer estava? – Confio que serão capazes de eliminar essa ameaça.

Arya pareceu intrigada, observando-o mais atentamente. Parecia só então perceber algo de diferente no Matador de Espectros, uma mudança que antes não percebera. Um silêncio contemplativo se instaurou entre eles, enquanto ambos se encaravam e refletiam sobre o que o tempo aparentava ter feito com o outro.

A antiga embaixadora dos elfos entre os Varden também parecia diferente aos olhos de Eragon. Sua beleza não mudara – seus cabelos, olhos e postura permaneciam as mesmas, talvez aprimoradas para ele pelo tempo que se passara desde a última vez em que a vira. Fazia cerca de oito anos desde a última vez em que conversara que a filha de Islanzadí, na ocasião em reunião formal com os líderes de cada raça para definir o futuro dos dois ovos – Adsha e Mustethun – que haviam passado dez anos sem chocar para urgal ou anão algum. Ali, falando particularmente com ela e sem a formalidade comum em tais contatos, percebia que sua atração pela elfa apenas aumentara com a distância.

Entretanto, um brilho diferente cercava Arya. Não era a beleza exterior ou sua posição no reino dos elfos que a fazia aparentar mudança. O que a fazia diferente, o Cavaleiro percebeu, era um amadurecimento em relação a tantos anos atrás. Ele sabia que ela sempre fora prudente e sábia em suas escolhas, mas ignorar as transformações no modo de pensar que ela provavelmente experimentara desde que iniciou seu reinado seria tolice.

Por sua vez, tinha consciência de estar sendo julgado da mesma forma pela figura no espelho. Talvez seu ar cansado, depois de anos de preparação e finalmente o exercício de seu dever como Líder e Mestre dos Cavaleiros, tornava-o distinto do Eragon que lhe pedira para acompanhá-lo até a primeira curva do rio Edda no dia de sua partida. Talvez seu olhar distante, que parecia refletir sobre diversos problemas ao mesmo tempo, concedesse-lhe uma aparência mais distante e responsável. Não sabia de que forma, mas sabia que a elfa encarava-o como se percebesse algo que ele próprio jamais enxergaria em si mesmo. Inferia que ela olhava-o com um novo toque de admiração, de respeito.

— Parece mais resignado e paciente que há dezoito anos. – comentou Arya com sua voz cadenciada. – Quando o conheci, recordo-me de seu impulso em abraçar as causas da Alagaësia como se fossem todas suas.

— Os anos fazem-nos trabalhar partes de nós que antes não conhecíamos. – declarou Eragon, sentindo-se agitado com o reconhecimento da Cavaleira.

— De fato. – concordou ela. - Bem, creio que isso é tudo.

— Espere! – disse o homem. – Preciso entregar-lhe meu próprio aviso.

A elfa assentiu, inclinando a cabeça curiosamente.

— Bem, tentei contatá-la em Ellesméra hoje, mas Däthedr-vor disse-me que estava viajando. – começou ele. – Planejava contá-la que Ismira foi encontrada na Floresta dos Seixos na noite passada. Está viva e bem, provavelmente na Biblioteca neste momento.

Arya pareceu surpresa, olhando o Cavaleiro nos olhos e buscando algum sentido nas palavras que ele falara. Em seguida, suspirou aliviada, como se um fardo que carregasse por dias tivesse sido tirado de suas costas.

— E como isso se deu? – indagou.

— Lanrí, o elfo que creio ter citado o nascimento há alguns anos, encontrou-a nos limites do bosque, fraca demais para se mover. Ela desmaiou e ele a trouxe até aqui, onde cuidamos dela e a alimentamos. – explicou Eragon, sendo o mais objetivo possível. - Segundo ela, não se lembra de mais nada que não seja um fraquejar na cabine do Talita seguido por um puxão no cabelo. Desmaiou e relata ter sentido uma leve pressão na base do crânio durante o período de inconsciência. Então, acordou em uma clareira da floresta e caminhou até as fronteiras dela, encontrando-se com o rapaz e desfalecendo de cansaço.

— Tem ideia do que possa ter ocorrido? – perguntou a Cavaleira, intrigada.

— Não. – lastimou-se o Matador de Rei. – Blödhgarm e alguns elfos buscam ligação entre a clareira e a cabine, mas até agora nada foi encontrado. Não seria seguro enviar Ismira de volta à Alagaësia no navio sem mais respostas e estamos sem alternativas a não ser deixá-la longe do pai por um logo intervalo de tempo.

— Isso é terrível. – disse a rainha dos elfos com sincera tristeza. – Eu gostaria de ajudar, mas não poderei voar com Fírnen até aí em, pelo menos, dois meses. E, ainda assim, estaria deixando muito trabalho de lado em Du Weldenvarden.

— Compreendo. – declarou o Líder da Ordem, confirmando em sua cabeça que estava correto em almejar poupá-la da viagem. – Também penso que seria problemático trazer qualquer outro estrangeiro para Argetília com a Nova Ordem tão imatura e a campina repleta de dragões selvagens. Creio que Roran compreenderá caso Ismira demore mais do que o esperado para voltar, ainda mais com os nossos velhos conhecidos de volta.

— Eu ordenarei que os mais estudiosos elfos pesquisem algo nos registros de Ellesméra a fim de encontrarem alguma resposta para esse caso e acelerarem o processo. – garantiu-lhe ela. – Sinto muito por não poder ajudá-lo de outra forma.

— Não se turbe com isso, todos temos muitos problemas a enfrentar. Obrigado por seu apoio, Arya. – agradeceu Eragon. Falar o nome da elfa de uma forma tão íntima depois de tanto tempo fez o Cavaleiro estremecer, cônscio de que, provavelmente, aquela seria a última vez em vários anos que ele teria a oportunidade de ignorar seu posto de superior na Ordem ou a coroa dela. – Devo aconselhá-la a enviar os magos que estão em Hedarth para as buscas no norte, já que Ismira foi encontrada.

— Certamente o farei. – decretou a bela.elfa, sorrindo em seguida.

A velha amiga abriu a boca para falar algo, mas foi interrompida por alguém que entrou em seus aposentos e murmurou alguma coisa, incompreensível aos ouvidos do Matador de Espectros.

— Bem... – disse ela, voltando-se novamente para o Cavaleiro. – Preciso ir. Foi muito bom vê-lo novamente, Eragon. Espero poder contatá-lo novamente em breve. Minhas saudações e as de Fírnen para você e Saphira.

— Igualmente. – respondeu ele com um sorriso.

A imagem no espelho tremeluziu e escureceu, refletindo a imagem do homem de olhar melancólico em seguida. Ele suspirou, incapaz de se mover dali. O sentimento de ouvir a voz de Arya mais uma vez, depois de tantos anos, despertou nele uma emoção que ele acreditava ter sido esquecida nos recônditos de seu ser e que jamais retornaria. Seus últimos anos, gastos em estudos e reflexões com os eldunarí, haviam feito-o quase abandonar sua paixão que parecia não fazer mais sentido com a distância. Quase.

Entretanto, outro sentimento viera agarrado a este: o puro ódio que sentia das criaturas que mataram seu tio, seu pai e causaram tanta dor e sofrimento a seu primo. Seus instintos primitivos o instigavam a voar em Saphira até encontrá-los e eliminá-los por completo da face da terra, por mais sua razão apontasse para suas obrigações e deveres para com a Nova Ordem e os novos Cavaleiros.

Dividido entre essas duas sensações, mergulhou mais uma vez em sua meditação arrebatada, com o olhar ausente e os pensamentos há milhas de distância – reflexão que viera a se tornar regular, quase como um ritual religiosamente repetido todos os dias, nos últimos anos.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Não ficou tão caprichado quanto os anteriores, mas bem... Relevem q
Critiquem, comentem, façam o que quiserem. A imagem no começo do capítulo é o mapa de Argetfell.
Na próxima sexta eu posto mais um cap, mas também não decidi o título ainda. Enfim.
OBS: Um link pra um mapa de Argetfell: http://fav.me/db52iza



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