Les Marcheé escrita por Marurishi


Capítulo 3
Com o passar dos anos




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Com o passar dos anos, a repentina ruptura das correspondências fez Shaido entender que aquela amizade não era tão intensa assim. Codhe não queria mais ser seu amigo e isso o deixou magoado. Gostava dos gêmeos e também de Loren, por quem tinha sempre aquela preocupação sobre a magia dela poder ser do mal. Não tendo mais notícias, não saberia o que se passava com os amigos, mas decidiu focar em seus estudos e não se preocupar com amizades; aliás, queria mesmo evitá-las.

Mas quem disse que poderia evitar? Shaido era o mais procurado para ser amigo pelas meninas que o achavam lindo, educado, de sangue nobre e um bom partido para um casamento, como também os meninos o achavam inteligente, honesto, forte, um tipo de amigo interessante para ter quando trata-se de promessas em poder e governo. Ele não estava interessado em companhias assim e educadamente se fechava para todos que tentavam se aproximar.

Mas depois desses anos, era inevitável que se sentisse sozinho mesmo rodeado de pessoas interessantes. Sua nobreza lhe dava acesso a personalidades de mesma classe para conversas e trocas de ideias. Tanto os jovens, como com os mais velhos lhe mostravam e falavam sobre a magia nobre. Não que ele tivesse total interesse, mas era importante para si e para seu futuro.

Sua mente estava mudando e percebia agora que tinha objetivos e sonhos, que a cada dia estava por realizá-los, pois seus estudos de música e canto iam tão bem que sua voz de barítono já era considerada a melhor de todo o reino. Seu nome já havia sido elogiado pela própria Imperatriz, assim como também sua força e destreza eram louváveis; até os mais velhos estavam impressionados com suas habilidades.

Seu avô, que tudo ficava sabendo, contava com orgulho, e não via a hora do neto retornar ao litoral, pois teria muito prazer em passar a ele o governo. O povo concordava assim como Loren e Khei, mas Codhe discordava. Não era por desacreditar na capacidade do amigo, mas sim, uma questão pessoal.

Havia três anos desde que Shaido partira de Boandis, um ano que não se falavam, nem mesmo se encontravam nos festivais anuais que aconteciam em Imperah. Não eram mais tão crianças assim, os gêmeos e Loren estavam com dezessete anos e Codhe queria ser notado por Loren como alguém além de um amigo, mas ela insistia em ignorá-lo, principalmente quando ele deixou de se corresponder com Shaido. Ela somente não o desprezava completamente porque estudavam juntos, era amiga de Khei e continuavam a fazer experiências buscando a magia.

 

Codhe estava se decepcionando com Loren e sua insistência nas coisas que não surtiam efeito, como o amor por Shaido e a busca pela magia. Tinha se dado conta que seu coração estava apaixonado já fazia um bom tempo, mas era incapaz de mudar as coisas. Preferia continuar como estava naquela amizade do que perdê-la de alguma maneira.

Loren e Khei estavam cada vez indo mais longe com as experiências, ao ponto de arriscarem a própria vida. Isso deixava Codhe extremamente preocupado e sentira a obrigação de vigiá-las. Fora um desses momentos que lhe trouxera a maior decepção até ali: o dia em que Loren e Khei decidiram fazer experiências usando veneno de serpente. Mas não era uma serpente comum, era Shiala, uma espécie tão venenosa que diziam ser mágica.

Por semanas, elas procuraram pela serpente, pesquisando os lugares onde havia sido vista, sobre como eram seus hábitos, alimentação, habitat... Iam com frequência na floresta, perto da rocha oca onde deveria ser sua toca. Não era uma serpente grande, pelas ilustrações que encontraram tinha uma coloração roxa e vermelha bem inusitada. O dia que a viram, não tiveram dúvidas e sua emoção foi tanta que não sentiram medo. Correram até ela, usando instrumentos rústicos feitos à mão em casa, capturaram rapidamente, colocando-a em uma caixa de vime.

Codhe tinha ficado para trás, quando ouviu ao longe a euforia das duas, imaginou que tivessem encontrado uma Shiala, mas jamais cogitou a ideia de que seriam loucas o suficiente para capturá-la. Quando se aproximou, sem pressa e chateado pela obrigação de estar ali, as viu correndo em sua direção. Loren segurava a caixa de forma desajeitada enquanto corria, Khei ao seu lado rindo e lhe puxando as roupas. As duas faziam grande alarido.

— Muito bem! Eu nem acredito! Conseguimos!

— Eu disse! Eu sabia!

Codhe pensou que não pareciam já ter dezessete anos, agiam como se tivessem sete ou menos. Nesse momento, de total irresponsabilidade, Loren resvalou em uma pedra com limo, caindo de costas no chão. No susto, jogou a caixa para o alto. Khei instintivamente tentou pegar a caixa no ar, mas foi o maior erro da sua vida. A serpente furiosa pela situação caiu de encontro ao seu corpo, não lhe poupando a picada. Foi tudo tão rápido que o grito da queda de Loren, se juntou ao grito de dor de Khei, com o grito de pavor de Codhe, que diante da cena corria em desespero até as duas.

Loren se levantou de imediato e confirmou o pior: Khei havia sido picada mais de uma vez pela Shiala, que havia fugido e sumido do campo de visão. A gêmea caiu no chão, exclamando alguns palavrões em desespero, pois a dor já começava a lhe formigar o corpo.

— Codhe, corre! Chame ajuda! — Loren gritava.

— Estamos muito longe! — Ele abraçou a irmã, tentando levantá-la. — Precisamos levá-la daqui!

Codhe rasgou a barra do vestido dela para fazer amarras junto às picadas, na tentativa de fazer o sangue envenenado não circular pelo resto do corpo, enquanto Loren gritava pela amiga tentando motivá-la a resistir. Sentia desespero e culpa.

Os gritos de Khei se tornaram rapidamente urros de dor, seu corpo amolecia tendo espasmos violentos. Codhe se desesperou com a dor da irmã, podia sentir em si, pois a conexão dos gêmeos era misteriosamente forte. Sentia o veneno infectar todo o seu sangue, era como se estivesse estraçalhando cada veia por onde passava, estava morrendo e da pior forma possível, agonizando dolorosamente.

Em meio aos prantos e gritos de Loren, Codhe sentia suas próprias lágrimas e pedidos de socorro em vão, sua fé estava acabando ali, abraçado a irmã moribunda que já não gritava, apenas tinha uma agonia engasgada, estremecendo aos últimos minutos de vida. E foi a vida inteira até aquele momento, que inundou as memórias de Codhe, pois não conseguia se imaginar vivendo sem sua irmã. Estavam juntos desde o ventre da sua mãe e não havia existido sequer um dia no qual estiveram separados.

O veneno foi rápido e fatal. Codhe num estado de fúria e sofrimento deixou um grito exasperado escapar, como se quisesse ser ouvido pelas divindades chamadas de Musas, que lhe pudessem atender o único pedido: salvar sua irmã gêmea. Em sua aflição soltou a irmã no chão e abriu os braços como se chamasse pela magia que parecia nunca ter estado presente ali, mas ao mesmo tempo, sabia que estava em todos os lugares.

Não aquela magia que Loren buscava através das experiências malditas que causaram tudo isso, era algo maior, tão presente quanto as lembranças de sua vida junto de Khei, de dias alegres e tristes, simples e difíceis, das noites de medo, das tardes de alegria, nas manhãs de estudos onde sempre um ajudava o outro. Estavam lado a lado em todas as coisas. Tudo lhe vinha à mente, o amor enorme que sentia por sua irmã, a sua metade, parte de si.

Aquele sentimento que vinha de dentro de seu peito tal qual a sensação de perdê-la para sempre o desesperou. A dor e a angústia eram tão fortes que, sem dúvida, seu coração ia explodir. Queimavam como fogo, na sua cabeça, desejava que aquele fogo que sentia pudesse queimar o veneno e curar a irmã para que não morresse, não o abandonasse.

Um grito de Loren ficou preso na garganta, os olhos verdes claros quase perderam a cor em total espanto quando labaredas de fogo brilhante e mágico vieram de todos os lados ao encontro dos gêmeos e entraram o corpo de Khei.  Era magia, não havia dúvidas, Codhe havia feito aquilo.

Em questão de segundos, tudo sumiu e Khei abriu os olhos como se despertasse de um sono pesado. Fitou o céu e depois seus olhos se encontraram com os da amiga que a olhava feliz e admirada. Sorriram e Loren jogou-se sobre ela com lágrimas de alegria.

— Oh, Khei! Você está viva! Perdoe-me... perdoe-me — sentia-se culpada, completamente arrependida.

— Tudo bem, eu acho que foi apenas um desmaio. Já passou! — Khei, nitidamente, não tinha noção do que acabara de acontecer.

Quando Loren olhou para Codhe, estranhando o fato dele não ter abraçado a irmã, nem demonstrado alegria em tê-la salvo, viu que ele não estava bem. De joelhos no chão e com as mãos apoiando o corpo, seus olhos olhavam sem entender para elas. Estava em estado de choque.

— Codhe, você está bem? — Khei se levantou e tocou a face do irmão. — Aush! Você está quente! O que aconteceu aqui?

— Magia, Khei! Codhe salvou você com magia! — Loren dizia em meio ao riso.

— Não brinquem. Loren, por favor, o que há com vocês! — Khei tinha um tom repreensivo. — Eu bato a cabeça e vocês que ficam tontos!

— Você não bateu a cabeça, não foi uma queda! Eu derrubei a caixa com a serpente e ela picou você. Não se lembra? — Loren questionava intrigada.

— Ahhh... é verdade... — Khei parecia agora se dar conta do fato, e olhava intrigada para Loren, que não sabia dizer se era o olhar de quem lembrara ou de alguém que a julgaria para sempre pelo que causara.

Khei ficou séria e desamarrando as tiras que estavam atadas em seus braços, voltou-se para Codhe, que finalmente esboçava uma reação.

—Ah, Khei! Que bom que não me abandonou... — Codhe abraçou a irmã com uma força exagerada, demonstrando sua preocupação e alívio.

— Tudo bem, irmão, parece que você me salvou! Alguém aqui tem magia e escondeu da gente? Ou foi alguma intervenção divina?  — Khei sorria divertida e retribuía o abraço, ambos ainda sentados no chão.

— Eu juro que aconteceu agora. Eu nem sei explicar como, mas é tão... estranho... — Codhe desfez o abraço e olhou nos olhos da irmã. — Você pode sentir? Você também sente esse sentimento estranho, como se houvesse algo vivo e quente dentro de você querendo sair? Como se fosse um vulcão em erupção?

— Eu não sinto nada. Sinto uma felicidade enorme por estar viva e um sentimento de gratidão por vo...

— Não Khei, você precisa sentir, sempre sentimos as mesmas coisas! — Codhe a interrompeu, segurando a irmã pelos ombros. — Você lembra como Shaido sempre rira da gente, repetindo que a magia não estava fora, mas sim, dentro de nós! Lembra, Khei?

— Lembro, óbvio. Mas não tem nada disso dentro de mim e...

— Tente Khei, tente sentir! — Codhe a interrompeu novamente e apertava os ombros da irmã, como se pudesse assim, fazê-la sentir a magia que tomara conta do seu corpo e se tornava parte de si. Fechou os olhos e insistiu. — Vamos Khei, sinta comigo! Você precisa sentir isso!

— Já chega Codhe, ela não quer! — Loren os separou de forma brusca, puxando Khei pelo braço, fazendo-a se levantar. — Por que está forçando-a se ela já disse que não sente?

— Loren, está tudo bem comigo. — Khei tocou o braço da amiga como se quisesse convencê-la que estava bem. Não soube dizer se a reação da amiga era preocupação com si, pois acabara de voltar da morte, ou se aquilo era uma sombra de inveja. Afinal, tantos anos com experiências que nunca surtiram efeito, e agora, sem prévia alguma, Codhe havia despertado a magia e queria compartilhar apenas com ela.

Codhe as olhava de baixo, ainda sentado no chão. Vagarosamente, levantou-se, ficando de frente para ambas, fitando-as em silêncio. Loren teve a impressão que ele estava mais alto. E mais bonito também. Ele sempre fora assim e ela nunca tinha percebido ou fora por causa da magia? Seus cabelos negros, lisos e longos estavam soltos, haviam se desprendido do rabo de cavalo durante o momento de desespero e agora voavam com o vento, seus olhos possuíam um brilho que Loren também nunca tinha notado, o verde esquisito brilhava como se houvesse fogo refletindo ali, e ela sentiu-se quente, corando.

Era como se ele pudesse incendiá-la completamente apenas com a força daquele olhar, e ela não conseguia desviar... Codhe estava usando magia para prendê-la ali, olhando para ele como se admirasse um deus? E ele parecia um deus, por que somente agora ela percebeu o quanto ele era lindo, sedutor e poderoso? Sim, poderoso demais para ela lidar com ele. Sentiu algo por dentro, algo estranho em seu coração; medo ou ... amor?

— Codhe, eu já disse que está tudo bem! — Khei interrompeu ao perceber aquele clima tenso. — Vamos voltar e descansar. Precisamos estudar sua magia e contar para nossa família — sorriu amigavelmente.

Codhe finalmente desviou o olhar de Loren e fitava a irmã, retribuindo o sorriso. O olhar dele para a irmã era completamente diferente do que tinha segundos atrás.

— Vamos logo, eu estou realmente exausto. — Codhe enganchou o braço no da irmã, como costumavam andar. Dando alguns passos parou e estendeu a mão livre para Loren. — Você vem?

Loren o encarou, o olhar estava igual o de sempre e o sorriso sincero também estava ali novamente.

Sentiu-se aliviada e, por um momento, pensou ter sido tudo sua imaginação, até tocar na mão de Codhe. Sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha. A mão dele estava quente e segurava a sua gentilmente, mas aquele simples toque a deixou arrepiada e pensou novamente se isso que estava sentindo era medo ou algum outro sentimento nunca vivenciado.

À medida que caminhavam, o silêncio os acompanhava. Cada um estava imerso nos acontecimentos do dia, procurando explicações, desculpas e aceitações.

Acompanharam Loren até sua vila, que ficava mais próxima da floresta do que da praia. A família Macrin precisava de espaço para o atelier, por isso, sua casa era mais afastada das demais; simples, porém grande. Tinha um amplo gramado na frente, com canteiros e vasos de muitas plantas ao longo do caminho de ladrilhos que levavam até a porta da entrada. Os ladrilhos eram brancos, lavados com escova e polidos com cera. O estranho era que naquele entardecer até os ladrilhos lhe pareciam diferentes, estavam mais bonitos e brilhantes.

— Que cara é essa? O que aconteceu? — sua mãe vinha na porta recebê-la e observava a filha.

— Nada de importante — beijou a face da mãe e tirou os sapatos para entrar.

— Está tentando me enganar? Estava te vendo pela janela, fez todo o caminho olhando para o chão, como se estivesse perdida em pensamentos tristes!

— Não é nada, mamãe, não se preocupe. Só estou cansada e quero dormir um pouco. — cruzou direto para os fundos, onde era seu quarto, deixando na porta uma mãe com cara de desconfiada sobre o que a filha escondia.

 


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