A Marca do Pecado escrita por Kyra_Spring


Capítulo 5
Sombras na janela




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            Marion acordou assustada e ofegante. Tivera um pesadelo  assustador: em seu sonho, ela se afogava no mar. Havia uma tempestade à sua volta, e o mar a puxava para baixo. Ela podia ver a luz da lua e das estrelas, difusa e borrada através da água, se distanciando cada vez mais. Sua mão estava estendida, procurando por um apoio, por algo a que se agarrar, mas algo a arrastava para baixo, lentamente, sem que pudesse fugir. Ela conseguia visualizar cada detalhe, sentir a falta de ar enquanto lutava para subir, inutilmente... A última imagem que via era a de sua própria mão se fechando em torno de algo invisível, a escuridão do fundo do mar envolvendo seu corpo.

            Encharcada de suor, e sem conseguir voltar a dormir, ela se levantou e foi até a janela. Seu maior pavor sempre fora a água, e desde que chegara a Amestris aquele pesadelo se tornava cada vez mais freqüente e mais real. Antes aquele sonho vinha a cada três ou quatro noites, mas então foi ficando mais e mais freqüente... Desde que vira a foto de Eclipse, foram três noites seguidas de pavor.

            A lua cheia brilhava do lado de fora, banhando as árvores na frente dos alojamentos, e uma brisa suave sacudia as folhas gentilmente. O despertador marcava três e quinze da manhã, mas Marion sabia que não conseguiria mais dormir. Resolveu tomar um banho gelado, para se acalmar. Era algo bastante contraditório, mas sempre que vinha à sua mente a imagem assustadora e traiçoeira do mar, pensar em algo como a chuva a ajudava a colocar a mente em ordem. Ela deixou que a água fria escorresse por seus cabelos e por sua pele, e que levassem todo o temor embora.

            “Foi só um sonho, Marion... só um sonho... só um sonho...”, ela repetia para si mesma, mentalmente, abrindo a água do chuveiro ao máximo e deixando que a água despencasse sobre sua cabeça. “Um sonho não pode me ferir, não pode me matar... Estou em terra firme, agora, na Cidade Central, a centenas e centenas de quilômetros do mar, e a menos que o continente todo afunde nada pode me acontecer”.

            Sem muito mais o que fazer, resolveu voltar a analisar os materiais que Sciezka havia trazido. Ela havia estado nas cenas de crime nos dias anteriores, e, junto com a equipe que havia levado, tirou fotos, recolheu possíveis pistas e entrevistou pessoas que conheciam a área e as vítimas. Os casos mais intrigantes ainda eram aqueles em que não havia sinais de violência nos corpos. Ela havia pego todas as fotos e registros das autópsias, e já havia enviado um pedido de exumação para o qual esperava resposta, mas sabia que não poderiam ajudá-la muito.

            De acordo com os registros dos legistas (que estavam desesperados para encontrar qualquer coisa de errado com os cadáveres), para que não se dissesse que eles estavam absolutamente normais, havia sinais de choque nervoso, como se qualquer coisa que tivessem visto os deixasse em estado catatônico. Não havia como declarar que essa era a causa mortis, mas era tudo o que eles tinham.

            Nas cenas dos crimes, também não havia nada que fosse de grande ajuda. Todas tinham em comum o fato de serem becos escuros, perto de áreas movimentadas do centro da cidade. Os corpos sempre eram colocados em posições de repouso, como se as vítimas estivessem dormindo. Nada era roubado, nenhuma impressão digital ou fio de cabelo era deixado para trás, enfim, nenhum sinal ligava os assassinos aos crimes. No caso dos corpos em que havia sinais de cortes e perfurações, os corpos eram carregados, e não simplesmente arrastados, o que ficava claro pelas marcas de sangue no chão. E em todos, o mesmo sinal, a mesma rosa de ônix.

            Uma das rosas havia sido liberada para que Marion ficasse com ela. Era pequena, de mais ou menos dez centímetros de comprimento, mas assustadoramente perfeita em todos os detalhes. As pétalas pareciam ser confeccionadas uma a uma, e polidas com esmero. O cabo da flor exibia pequenos e afiadíssimos espinhos, e o conjunto todo brilhava sob um jato de luz. Seria uma jóia perfeita para se usar em qualquer ocasião elegante, não fosse a conotação macabra que seu uso lhe dera.

            “Meu Deus, nada aqui faz sentido...”, ela pensava, a cada linha que lia. Apesar de saber que esse pensamento era abominável, sabia que, se quisesse pegá-los, precisaria esperar que outro crime acontecesse. Por enquanto, não havia nada que ligasse as vítimas uma à outra: um químico, um astrônomo, uma socialite, um banqueiro, uma pesquisadora em alquimia médica... enfim, eles não se conheciam, suas pesquisas não tinham relação entre si, enfim, pareceria um típico caso de “suspeito zero” – modalidade de assassinato em série em que as vítimas não tinham ligação aparente entre si, e cujas formas de assassinato também não tinham semelhança – se não houvesse um claro interesse da Black Rose em assumir a autoria dos assassinatos.

            Totalmente absorvida pelo seu trabalho, Marion se assustou ao ouvir o despertador tocar. “Droga, eu não desarmei esse maldito despertador!”, ela praguejou, mentalmente, enquanto se levantava e começava a se preparar para mais um dia de trabalho no Quartel Central. Ela era metódica e organizada, e em toda a sua vida nunca se atrasara para um único compromisso.

            Quando terminava de pentear os cabelos, porém, ouviu socos em sua porta. Abriu e viu Sciezka, cabelos desalinhados, vestindo uma mistura bizarra de uniforme e pijama, os óculos tortos no rosto. Vendo o estado da pobre bibliotecária, Marion a fez entrar em sue quarto, sentar-se e explicar tudo:

–Aconteceu de novo – ela dizia, ofegante, enquanto bebia em grandes goles um copo d’água – Recebi um telefonema do coronel e ele me mandou avisá-la imediatamente.

–Acalme-se e repita tudo devagar – disse a investigadora – Aconteceu de novo? Outro assassinato?

–Sim, nessa madrugada – confirmou Sciezka – O coronel Mustang me disse para avisá-la imediatamente! A que horas você pode sair?

–Agora, se for necessário – respondeu Marion, levantando-se – Você vem comigo, mas termine de se trocar. Pegue um dos meus uniformes, acho que eles te servem, e vamos logo.

            Cinco minutos depois, as duas corriam pelos corredores do alojamento até a parte externa, onde um carro as esperava. O trajeto foi curto: em menos de quinze minutos, o veículo já parava em frente a um grande teatro. Já havia uma grande aglomeração de policiais e de militares, que tentavam afastar os curiosos que já começavam a aparecer. Roy estava lá, pálido e com olheiras, e ao lado dele estava Riza, visivelmente cansada.

–Recebemos uma chamada anônima logo de madrugada – ela começou a explicar a Marion assim que ela chegou – Parece que temos outro daqueles casos bizarros...

–Mais uma vez, sem violência, sem nada roubado... E, pior ainda, a vítima, dessa vez, é uma alquimista federal – continuou Roy – Ela se chamava Christina O’Hara, Alquimista do Relâmpago.

–Não era ela que estava pesquisando fontes alquímicas de energia? – disse Marion – Me lembro de um artigo que saiu no jornal há alguns meses, sobre suas pesquisas do uso da água vermelha. Não faz o menor sentido... O que eles iriam querer com ela?

–Eu sei lá...  A verdade é que precisamos que você vá até lá e veja por si mesma... Ah, não, era disso que a gente precisava! – Riza praguejou alto, apontando para a rua – Mais problemas, droga!

            Quem descia pela rua era o inspetor Marcus Clavel. Ele se encaixava bem na descrição de Riza: baixinho, careca e atarracado. Ele andava ofegante, como se suas pernas não suportassem o próprio peso. Marion estreitou os olhos, sentindo que aquele homem só lhe traria dor de cabeça. Assim que ele chegou, foi falar diretamente com ela.

–Marcus Clavel, Inspetoria da Polícia Amestriana – ele apresentou o distintivo – Você é a responsável por essa investigação, eu suponho.

–Sim. Meu nome é Marion Hughes – ela estendeu a mão para cumprimentá-lo, de má vontade – Como o senhor pode ver, estamos passando por problemas agora. Será que poderia voltar mais tarde a falar comigo, depois que esse tumulto acabar?

–Não, obrigado. Preciso ver essa cena de crime – respondeu ele – Como a senhorita deve saber, tenho acesso total à investigação de vocês.

–Está bem, mas o senhor vem comigo – disse ela, então, suspirando – Quero lembrá-lo que o senhor é apenas um observador, o que quer dizer que não deve interferir no trabalho dos investigadores. Acho que o senhor tem consciência da gravidade da situação, e que vai acatar a isso.

            Os dois foram até o beco, abrindo espaço entre um amontoado de pessoas. Roy e Riza os seguiram; Sciezka, por sua vez, preferiu ficar. Marion foi a primeira a chegar, e o que viu a deixou sem palavras. Se, nas fotos, as cenas de crime pareciam bizarras, ao vivo elas eram ainda mais estranhas e sem sentido.

            No chão, deitada reta, como se estivesse num leito de hospital, estava Christine, uma ruiva alta e bonita com profundos olhos verdes. Ela estava com os olhos abertos, e o rosto tinha uma expressão de pavor e de desespero que eles jamais haviam visto numa pessoa. Havia sinais de luta e de transmutações por toda a área, latas de lixo viradas, paredes semi-destruídas. No chão, a alguns centímetros de distância do corpo, estava o relógio de prata da alquimista, e espetada nele, a rosa negra de ônix que era símbolo da Black Rose.

–Temos um bem interessante aqui – foi dizendo Marion, enquanto colocava luvas de borracha e entregava outro par a Marcus – Sem sinais de violência... sem impressões digitais ou qualquer outra marca que leve à captura de alguém... E o bracelete dela está danificado, vêem? – Christine usava um bracelete com um círculo de transmutação – Houve uma luta feia por aqui.

–Algum parecer sobre o caso, srta. Hughes? – perguntou Clavel.

–Não posso dizer nada, por enquanto, mas posso garantir que, considerando o fato de a vítima ser uma alquimista federal do exército amestriano, a investigação passa a ser mais urgente – respondeu ela, num tom imperativo – Quero que o corpo seja levado para a autópsia imediatamente, e preciso de ajuda com a cena do crime – e, ao vê-lo parado – O que você ainda está fazendo aqui? Vá!

            Ele a encarou, surpreso, e fechou a cara, depois deu as costas a eles. Roy a observou longamente, ela deu de ombros e, depois, ele deu um sorrisinho. Durante todo aquele dia, o beco esteve movimentado, e a paz só voltou a reinar no começo da noite, quando foram embora os últimos policiais. Apenas Marion e Sciezka ficaram, conversando. A bibliotecária estava pálida e assustada.

–Sabe, essa é a primeira vez que visito uma cena de crime com... com... ah, você sabe, uma cena em que os policiais ainda não mexeram – dizia ela – Mesmo não tendo visto o corpo, senti alguma coisa ali. É estranho, sabe? – e, num tom confidencial, acrescentou – E eu conhecia a Christine, também.

–Vocês eram amigas? – Marion sentiu-se penalizada.

–Amigas, não. Estudamos juntas – respondeu Sciezka – Pouco conversávamos, e depois que saímos da escola nunca mais a vi. Só voltei a ter notícias dela pelos jornais.

–Agora eles mexeram com o próprio Exército. Pior ainda, com uma alquimista federal – disse a investigadora – Eles devem ter consciência de que vão sofrer represálias, e se tem essa consciência, já devem ter algum plano para não serem pegos. Creio que está na hora de envolver alquimistas federais.

–Tem alguém em mente?

–Ainda não. Preciso saber quem temos à disposição, antes. Precisaremos de pelo menos um, além do Roy. E pretendo chamar também o Alphonse, se ele quer passar no exame de alquimista federal será bastante educativo para ele trabalhar conosco.

            Elas foram embora juntas. Sciezka, ainda impressionada, estava silenciosa, e Marion resolveu respeitar essa decisão. Ela também tinha seus próprios problemas para resolver, muita coisa em que pensar. Qual era a motivação deles, afinal de contas? Eles estavam procurando por alguma coisa, mas pelo quê? Se pudessem encontrar ao menos um membro da Black Rose e obrigá-lo a falar... Ela sabia que era uma organização grande, mas que todos os seus membros eram como sombras, impossíveis de pegar, que desaparecem com a velocidade de um abrir e fechar de olhos.

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–A srta. mandou me chamar, segunda-tenente Hughes? – no dia seguinte, na sala dela, um rosto tímido aparecia na fresta da porta. Era Alphonse, que ela pediu para entrar.

–Na verdade, sim. Você disse que pretende prestar o exame para alquimista federal, não é? – disse Marion, assim que ele se sentou à sua frente – Já ouvi falar coisas ótimas a seu respeito, que você é um excelente alquimista e que é muito dedicado e disciplinado. Como quero ajudá-lo a passar nesse exame, vou lhe oferecer a chance de participar de uma investigação que estou fazendo – ela evitou entrar em detalhes, mas provavelmente ele sabia do que se tratava.

–E-eu? – ele gaguejou, arregalando os olhos – Mas eu nem sou tão bom assim, não faço parte da polícia ou do Exército, nem nada! Não sei como poderia ajudar!

–Precisamos de alquimistas, e fiquei sabendo que você é capaz de fazer transmutações muito poderosas mesmo sem um círculo – respondeu ela, com um sorrisinho – Além do mais, você não estará sozinho. Roy estará trabalhando com você, assim como o outro alquimista que ele disse que iria convocar. Será muito bom para você conviver com eles e com outros militares, assim quando você conseguir seu relógio, já estará bem habituado.

–Eu... eu nem sei o que dizer – o garoto estava ainda meio aparvalhado pelo pedido – Se a senhora me garantir que não vou atrapalhar em nada, eu aceito. Mas ainda não sei se serei de alguma utilidade...

–Ora essa, Al, não seja modesto! – ela riu – Você é inteligente, garanto que vai nos ajudar muito. E a prioridade é você aprender bastante e fazer uma prova de admissão maravilhosa. Confie em mim, você não vai atrapalhar em nada – e, ao ver a indecisão no olhar dele, reforçou – Eu prometo.

–Sendo assim, está bem – ele acenou afirmativamente, com um sorrisinho inseguro – Quando eu começo? O que posso fazer?

–A primeira coisa que quero que faça é que analise isso – estendeu a ele a pequena rosa negra de ônix. O garoto arregalou os olhos, espantado – Quero que descubra se foi feita com alquimia, e de que forma. E, pelo amor de Deus, mantenha-a intacta! É uma prova valiosa, e precisa manter-se íntegra.

–Cada transmutação deixa uma identidade própria no material em que foi feita – disse ele, observando a peça em sua mão, fascinado – Só olhando por cima, posso garantir com 99% de certeza que foi feita por meio de alquimia. Me dê três dias e eu descubro tudo o que essa rosa tem a dizer.

–E você dizendo que não sabia como poderia ajudar, hein? – ela disse, num tom divertido – Viu? Você é um rapaz inteligente, e vai nos ajudar muito. Se precisar de qualquer coisa, ou de mais tempo, é só falar comigo. Você tem autorização para usar o laboratório de alquimia no prédio anexo.

–Obrigado pela confiança – ele, ainda meio tímido, estendeu a mão para cumprimentá-la – Prometo que não vou decepcioná-la. Em três dias, faço um relatório completo. Até mais!

            Ele saiu quase correndo, ansioso para começar a trabalhar. “Esse rapaz... tem qualquer coisa diferente nele...”, ela pensava. “Ele é tão jovem, mas já é tão maduro e dedicado... Se, nessa idade, já é capaz até de analisar um objeto feito alquimicamente, o que costuma levar anos e anos de estudo, fico pensando em como ele será quando ficar mais velho e experiente”.

            Quando anoiteceu, ela resolveu sair para dar uma volta e esfriar a cabeça.  Estava lá há tão pouco tempo e já fora totalmente absorvida pelo trabalho. Essa era uma das suas maiores qualidades: a entrega total aos casos que investigava, a obstinação quase doentia com que se dedicava a eles. Por isso, até agora não havia deixado um único criminoso escapar das suas mãos. Mas o preço a se pagar por isso era o isolamento: tinha poucos amigos, quase todos eles do ambiente de trabalho, e não havia finais de semana ou horário de folga para ela. Talvez, por isso, tenha passado tanto tempo sem falar com sua cunhada e sua sobrinha.

            Ela não sabia ao certo para onde estava indo. Não porque não conhecesse a Cidade Central: já estivera lá outras vezes e tinha um senso de direção bom. Ela só não sabia muito bem o que fazer. Por fim, decidiu ir ao cinema mais próximo do quartel. A algumas quadras, porém, viu uma imagem que a desconcertou um pouco. Aproximou-se, e viu Alphonse, olhando para o céu, paralisado, como se tivesse visto alguma coisa extraordinária. Sem fazer barulho, chegou mais perto, e percebeu que seus olhos brilhavam, e que os lábios, entreabertos, pareciam murmurar qualquer coisa sem sentido. Ela olhou na mesma direção que ele, mas nada viu. Só nesse momento, ele pareceu perceber a presença dela, e sacudiu a cabeça, como se acabasse de despertar de um torpor.

–O que é que você estava fazendo? – ela perguntou, olhando mais uma vez na direção em que ele olhava – Você estava aqui parado no meio da rua, poderia até ser atropelado.

–Eu... bem... Não sei ao certo – respondeu ele, confuso – Pensei ter visto... Ah, não importa.

–Olha, se você quiser conversar sobre alguma coisa, qualquer coisa, pode me contar – disse ela, num tom solícito – Não vou pressioná-lo, mas se quiser alguém com quem desabafar...

–Obrigado, mas essa é uma coisa que preciso resolver sozinho – respondeu ele – A senhora está indo ao cinema? Quer que eu a acompanhe?

–Só se você parar de me chamar de “senhora” e me chamar de “Marion” pelo menos uma vez – ela respondeu, fingindo aborrecimento – Acho que ver um bom filme fará bem a nós dois.

–Então está bem, sen... Marion – concordou ele, com um sorriso. Só então ela percebeu a palidez no rosto dele, mas nada disse. De acordo com ele, era algo que precisava resolver sozinho, e ela respeitava essa decisão, fosse o que fosse o seu problema.

            O filme, uma tola comédia romântica, não era bem o tipo de programa preferido da moça. Mesmo assim, foi bom sair e espairecer um pouco. Al era uma boa companhia: era possível conversar com ele sobre vários assuntos, e ele era educado e bem-humorado. Naquela noite, ela voltou para seu quarto bem mais leve e animada, mais tranqüila até.

            Mas não conseguiu dormir. Ao invés disso, ficou vendo as sombras que se formavam no chão, pela luz que vinha dos postes e batia nas árvores. A brisa as sacudia, levemente, fazendo com que as sombras dançassem também. Por alguma razão, as sombras sempre a fascinaram muito, de uma forma estranha. Cada folha fazia um desenho diferente, único, alterado pelo vento leve. Ela observava cada movimento hipnotizada, sentindo que, de alguma forma, aquilo fazia parte dela. Lembrou-se dos tempos nas ilhas do leste, num dia em que resolvera acampar num lugar ermo e arborizado. A luz da lua criava um desenho espetacular, criando um contraste entre sombra, penumbra e luz que mais parecia uma obra de arte. Aqueles foram tempos maravilhosos, que passaram depressa demais.

            Então, o vento ficou mais forte. As folhas começaram a ser jogadas de um lado para o outro com violência, e as sombras que elas formavam tornaram-se borradas, misturadas e difusas. Ela levantou-se, e se aproximou da janela. As folhas batiam e arranhavam levemente, e algumas se desprendiam da árvore e caíam, rodopiando.

            Mais uma vez, olhou para o céu. Ainda estava intrigada com a atitude de Alphonse. Ele procurava por alguma coisa, ou não ficaria congelado no meio da rua procurando algo entre as estrelas. Mas o que seria? Tentava enxergar algo diferente, qualquer coisa que fosse, mas não encontrou absolutamente nada. Ela acabaria descobrindo, pensou, enquanto voltava para sua cama. Ela sempre acabava descobrindo, de uma forma ou de outra.

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–Marion, descobrimos uma coisa que vai deixar você interessada – três dias depois, assim que Marion entrou em sua sala, Riza chegou dizendo, empolgada – Temos um ex-membro da Black Rose nas nossas mãos há quase dois anos e não sabíamos.

–O quê? – a segunda-tenente se levantou, chocada – E vocês só descobriram isso agora?

–Sim – a major confirmou – Ao que sabemos, ela abandonou a organização bem antes dos assassinatos começarem, e que foi presa por crimes que nada tem a ver com a organização.

–E onde ela está? – de repente, ela sentiu uma onda de esperança invadindo o seu coração – Quero que a mantenham segura, ouviu? Dobrem a vigilância no presídio e... Peraí, quem é ela?

–O nome dela é Clara, mas acho que talvez você a conheça por outro nome – respondeu Riza, com um sorriso malicioso – Há alguns anos, ela atendia pelo nome de Psiren.

PSIREN?! – berrou Marion – A ladra de Aquroya? Só pode ser brincadeira!

–A atuação dela ao lado da Black Rose é anterior ao caso de Aquroya – explicou a primeira – A organização é antiga, e na época em que ela estava lá, havia membros diferentes dos de hoje. De qualquer forma, acho que ela pode ajudar.

–Eu não acredito... – então, Marion começou a rir – Então isso explica toda aquela teatralidade nos roubos! Ela aprendeu com a Black Rose e resolveu botar em prática sozinha.

–Nessa época, a organização era muito mais discreta do que é hoje. Talvez por isso Clara a tenha abandonado, por preferir um pouco mais de publicidade.

–E quando podemos falar com ela?

–Vai demorar um pouco. Precisamos de mil autorizações, assinaturas de metade do mundo... Enfim, vamos tentar agilizar as coisas, mas não prometemos nada para antes de duas semanas.

Duas semanas?! Droga, é tempo demais! Em duas semanas, podem ocorrer mais assassinatos! Isso sem falar em roubos e outros crimes.

–Eu não faço as regras, apenas cumpro. Até lá, precisamos manter essa nova informação em sigilo.

–Eu sei, eu sei... Tente fazer tudo o mais rápido possível, está bem?

            Riza concordou, e saiu da sala. Marion ainda estava desconcertada. Ela lembrava-se, e muito bem, de Psiren, a ladra popstar de Aquroya, que fazia questão de divulgar seus crimes só para ridicularizar publicamente a polícia. Apesar de sua posição oficial ser a de repudiar as atitudes de Psiren, intimamente ela achava a ladra genial, especialmente quando fugiu de um carro cercada de vigias. Um belo dia, porém, ela resolveu se entregar à polícia, sem mais nem menos. Talvez tivesse se cansado da vida de celebridade do crime, ou então estivesse pensando num desafio maior, como fugir da prisão.

            Os resultados da autópsia de Christine O’Hara foram iguais aos dos outros crimes: nenhuma causa mortis aparente. Os familiares dela, ao serem interrogados, disseram que simplesmente não entendiam o que aqueles criminosos iriam querer com ela, pois não houve nenhum tipo de ameaça ou aviso prévio. Ela apresentaria um seminário sobre as pesquisas dela em breve, e estava se dedicando de corpo e alma ao trabalho. Marion tinha a esperança de que o que Clara dissesse fosse capaz de elucidar um pouco as coisas, e até de resolver aquele estanho mistério completamente.

            Nessa hora, Sciezka apareceu na porta da sala e disse que havia alguém que queria vê-la. Antes que ela pudesse chamar, porém, Al apareceu. Ele estava pálido e trêmulo, e só pôde dizer:

–Venha comigo. Agora.

            Assustada pelo comportamento do garoto, Marion o seguiu até o laboratório de alquimia. O lugar estava uma bagunça: havia papéis e anotações por todos os lados, frascos, desenhos de círculos de transmutação sobre o mármore branco do balcão. O lugar era parecido com um hospital, claro e gelado, recendendo a alvejante, e ela pôde ver claramente a rosa negra em contraste com a brancura do balcão.

–Eu fiz o que você pediu – Al, muito nervoso, começou a falar rápido – Analisei essa rosa de todas as formas possíveis, e descobri uma coisa terrível. Espero estar errado, mas acho que é verdade.

–Do que é que você está falando? – ela já começava a ficar nervosa – O que tem nela?

–Eu vou fazer mais testes, mas acho que ela não foi criada por uma simples transmutação – continuou Al, tentando manter a voz sob controle – Para começar, não existem minas de ônix em Amestris, o que dificultaria a obtenção das pedras. Em segundo lugar, mesmo se existissem é praticamente impossível que elas sejam polidas dessa forma, com ou sem alquimia, e não havia uma única imperfeição em toda a peça, nenhuma mesmo!

–Até agora, tudo o que vejo é que isso foi feito por alguém extremamente habilidoso – observou Marion, ainda sem entender o nervosismo dele – Então qual é o problema?

–Você se lembra quando eu te disse que cada transmutação deixa uma marca no material em que foi realizada? Pois bem, essa marca é capaz de dizer tudo, que tipo de círculo foi usado, se algum material foi utilizado como catalisador, tudo – explicou Al – Primeiramente: não foi usado um círculo de transmutação para criá-la.

–Bem, isso é alguma coisa, mas...

–Por favor, me deixe terminar. A segunda é que eu detectei pelo menos dois tipos de catalisador nessa rosa. O primeiro é uma quantidade imensa de pedra vermelha, que serviria para purificar a ônix. E o segundo... o segundo...

–Continue, por favor.

–O segundo... ah, tomara que eu esteja errado... o segundo é uma Pedra Filosofal. Incompleta, mas ainda assim muito poderosa. Ela pode ter sido usada para criar a ônix, desrespeitando a Lei da Troca Equivalente, mas por ainda estar incompleta, foi necessário usar a pedra vermelha para purificá-la.

–Ora essa, Alphonse, não seja ridículo! – Marion riu, mas por alguma razão não achava graça nenhuma naquilo – Todos sabem que a Pedra Filosofal é uma lenda, e mesmo se não for, e não estou dizendo que não é, seria apenas mais um incentivo para irmos atrás deles e obrigá-los a ensinar como se faz.

–NÃO! VOCÊ NÃO ENTENDE! – então, Al perdeu a paciência – VOCÊ NÃO SABE O QUE UMA PEDRA FILOSOFAL É CAPAZ DE FAZER! VOCÊ NÃO SABE DO QUE ELA É FEITA!

–Alphonse... por um acaso tem alguma coisa que você não tenha me contado? – então, a investigadora sentiu que estava pisando em terreno delicado, e perguntou com cautela. Por um momento, Al hesitou, mas por fim disse:

–Diga-me, o que você sabe sobre alquimia?

–Bastante – respondeu ela, sem entender a natureza da pergunta – Cheguei até a prestar o exame de alquimista federal antes de entrar para a Investigação, mas não passei. Mas por que...

–Olha, não posso explicar tudo, só posso dizer que a Pedra existe, e que esse é o maior problema que poderíamos ter – cortou ele – Por favor, não conte isso a ninguém, nem mesmo ao Roy.

–Está bem, eu não conto, mas cedo ou tarde você vai ter que me explicar essa história inteira – disse ela, por fim – De qualquer forma, encontramos uma pista valiosa, e acho que você vai gostar de saber – então, contou sobre Psiren, e ele riu, dizendo:

–Tá de brincadeira, não é? A Psiren? Nossa, de todas as pessoas no mundo ela seria a última que eu pensaria que se meteria nisso. E quando vocês vão falar com ela?

–Não sei, ainda precisamos de autorização. Mas, se você quiser, quando formos você pode ir conosco, o que acha? – respondeu ela – Bem, preciso voltar. Você pode ir para casa, se quiser.

–Não, acho que vou refazer as experiências, ver se deixei alguma coisa passar – o garoto deu de ombros – Até mais, se vir alguma coisa, eu te aviso.

            Marion o deixou sozinho no laboratório, ainda pensando no que ele havia dito sobre a Pedra. “Ora essa, como ele pode afirmar com tanta certeza que não é uma lenda?”, ela pensava, e o observava da porta. “Ele sabe de alguma coisa, só pode ser. E é claro que não quer me contar... Deve ter acontecido alguma coisa para que ele ficasse com toda essa cautela”. Talvez, ele e o irmão tivessem alguma história com a Pedra Filosofal, talvez até estivessem procurando por ela. Pouco se falava dos reais motivos que levaram Edward a entrar para o Exército tão jovem, ou de por que Alphonse viveu por tantos anos dentro daquela armadura. E, aparentemente, quem sabia da história verdadeira preferia nem tocar no assunto, como Roy.

            “Um dia você vai ter que me contar o que aconteceu com vocês, Al”. Ela o olhou pela última vez, mas ele já estava totalmente mergulhado no trabalho, analisando a rosa de ônix ao microscópio. “Um dia, talvez, eu o entenda, mas vou esperar até o momento em que você quiser me contar”. Então, deu as costas e saiu, voltando para sua sala.


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