A Marca do Pecado escrita por Kyra_Spring


Capítulo 10
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–Ed, será que pelo amor de Deus você pode ficar no balcão para mim? – o dono da lojinha veio falar com ele desesperado, assim que chegou para trabalhar – Sua namorada está gripada, e tive que mandá-la tirar o dia de folga para não afastar meus clientes. Ela está no quartinho dos fundos.

–Tá bem, mas quem vai fazer as entregas? – Ed, que ainda não estava muito bem acordado, se assustou um pouco.

–Eu sei lá! Depois pensamos nisso – de repente, o patrão pareceu mais aliviado – Preciso urgentemente ir até a prefeitura, e você acaba de salvar a minha vida.

            Ed já havia se acostumado com a loja. Ele sabia onde estava cada coisa, sabia seus preços e já tinha experiência em atender pessoas. Não foi difícil: assim que os primeiros clientes chegavam, ele ia atendendo-os com eficiência e simpatia. Alguns, os que visitavam a loja com mais freqüência, perguntavam por Tatiana. Ed tinha visto que ela estava doente demais para ir trabalhar, e tentou convencê-la a ficar em casa, mas descobriu que sua namorada era teimosa como ele. Sempre que tinha uma brecha, ele ia ver como ela estava, e valendo-se de sua experiência com remédios ia cuidando dela como podia, com toda a gentileza do mundo.

–Vocês vendem parafusos? – ele estava nos fundos, buscando caixas no estoque, quando ouviu uma voz feminina perguntando.

–Segundo corredor, prateleira três – respondeu ele – Desculpe por não ir ajudá-la pessoalmente, mas estou sozinho aqui hoje e preciso cuidar do estoque. Do que mais você precisa?

–Um pouco de graxa, também. Vocês têm?

–Desculpe, a graxa acabou. Aqui não é uma loja especializada nesse tipo de coisa, moça, geralmente só vendemos coisas para emergências. Tem uma loja de artigos para mecânica no fim da rua.

–Eu sei, mas hoje ela está fechada e, bem, é uma emergência das grandes.

–Entendo... É, nenhum tubo de graxa aqui também – ele foi até o balcão – De qualquer forma, acho que você encontra a graxa na loja da... frente...

            Ele parou imediatamente, congelado e abismado. Na sua frente, estava uma mulher loura, alta, cabeços longos presos num rabo-de-cavalo. Os olhos eram azuis, grandes e muito vivos e a boca, contorcida numa expressão de choque, era delicada e fina. Ela não conseguia articular as palavras, ele também não. Sua voz parecia mais um grunhido quando ele finalmente disse:

–Winry... você... aqui?

–Ed?... Ed! – ela não acreditava. O choque logo deu lugar a um sorriso iluminado, regado por lágrimas. Sem esperar mais, ela se jogou sobre ele, abraçando-o apertado. O balcão os separava, mas ele não viu alternativa a não ser corresponder ao abraço. Ele mesmo não sabia ao certo o que estava sentindo, era tanta coisa misturada que era difícil diferenciar uma da outra, só sabia que aquela era a melhor coisa que lhe acontecia desde que voltara para Amestris.

–Winry! Caramba, quanto tempo! Eu... eu nem sei o que dizer – Ed estava desconcertado, mas não pôde deixar de sorrir – Como é bom ver você de novo!

–Como você voltou? – ela queria saber tudo, e começou a metralhá-lo com perguntas – Quando você chegou? Como está se virando?

–Calma, calma, você tá fazendo perguntas demais! – ele retomou o tom que geralmente usava com ela, meio zombeteiro, meio divertido – Vou precisar de muito tempo pra contar tudo, e não vai poder ser agora porque estou trabalhando. Então comece por você: o que está fazendo aqui na Cidade Central?

–Trabalhando – respondeu ela – Resolvi montar uma oficina de próteses aqui na Cidade Central. A oficina da vovó Pinako cresceu muito, sabia? Temos vários funcionários, e atendemos o país todo. Montamos uma filial aqui, e eu estou supervisionando.

–E como está a vovó? Rabugenta como sempre?

–Pior! – Winry abafou uma risadinha – Ela continua igualzinha, mas desde que arrumou gente pra trabalhar para ela, tornou-se uma tirana. E você, como está?

–Bem – respondeu ele – Voltei há algumas semanas, e estou me virando por aqui. Quero encontrar o Alphonse antes de falar com o resto do pessoal. Aliás, você sabe onde ele está?

–Ele estava aqui mesmo na cidade, morando com a sra. Hughes – explicou a loura – Ele passou um tempo em Dublith com a professora Izumi, mas voltou para prestar o exame de alquimista federal.

–Não acredito que ele vai ser idiota a esse ponto! – Ed arregalou os olhos – Noventa por cento dos nossos problemas começaram quando eu me tornei alquimista federal, e agora ele quer fazer o mesmo?

–Ed, tem uma coisa que eu preciso te contar... – ela disse, parecendo envergonhada – É que o Al...

            Mas ela não terminou. Na mesma hora, Tatiana saiu do quartinho em que estava. A moça estava enrolada numa manta, o cabelo trançado desleixadamente e o aspecto pálido e amarelado típico de quem está com gripe. Na mesma hora, Ed corou. Ele não havia pensado em como Winry lidaria com o fato de ele ter trazido, ainda que sem querer, a namorada. As duas se encararam, estudando-se mutuamente, antes de perguntarem, quase que ao mesmo tempo:

–Edward, quem é ela?

–Tá bem, vamos começar do princípio. Tati, esta é Winry Rockbell, minha melhor amiga – Winry acenou afirmativamente com a cabeça – E Winry, esta é Tatiana Ahkmatova, minha namorada.

–Sua o quê? – exclamou ela, sem acreditar – Peraí, quando você conheceu ela?

–Vai levar muito tempo pra explicar tudo com detalhes – respondeu o rapaz, pensando “isso vai ser bem mais complicado do que eu pensava...” – Basta dizer que ela veio comigo do outro lado.

–Bom, muito prazer, Tatiana – elas se cumprimentaram, com uma frieza mútua que incomodou Edward profundamente – E então, o que está achando de Amestris?

–É um excelente lugar – respondeu Tati – É quente e ensolarado, e as pessoas bem mais receptivas do que as de onde eu vim. Vocês se conhecem há muito tempo?

–Desde crianças – respondeu a outra – E vocês?
–Há alguns meses, mas foram meses maravilhosos.

–Tudo bem, tudo bem, a conversa está ótima, mas eu realmente preciso trabalhar – sentindo que a hostilidade entre as duas crescia cada vez mais, Ed cortou a conversa – Winry, você tem certeza que o Al está na casa dos Hughes? Eles se mudaram, ou ainda moram naquela casa grande e bonita?

–A casa é a mesma, Ed, tenho certeza – confirmou a mecânica – Mas acho que você não vai encontrá-lo lá tão cedo, pois fiquei sabendo que ele ia para Aquroya.

–Aquroya? O que diabos ele iria fazer lá? – o rapaz ergueu uma sobrancelha, confuso.

–Não sei – ela pagou pelos parafusos e deixou um cartão com o endereço de sua oficina – Passe lá qualquer dia desses, pra gente poder conversar.

–Tá bem. E não conte pra ninguém que eu voltei – ele acrescentou, enquanto Winry dava as costas e ia embora – Quero fazer uma surpresa para todo mundo.

            Ela acenou, sem se virar, e partiu, andando um pouco mais rápido que o normal. Tatiana começou a encarar Ed profundamente, de uma forma muito incômoda. Ela nada dizia, mas os olhos dela já manifestavam tudo o que ela queria dizer. O alquimista tentou continuar o seu trabalho, mas para qualquer lado que fosse, sentia o olhar inquisidor da namorada.

–Ela é só uma amiga, Tati – ele disse, por fim – Uma amiga que, por sinal, já tentou me matar várias vezes com uma chave inglesa.

–Ela não pareceu gostar muito de mim... – observou Tati, com uma nota muita estranha na voz, um misto de cinismo e agressividade.

–Ela é meio possessiva, acha que é minha mãe ou coisa assim – desconversou ele, sabendo que Winry certamente se via como outra coisa, e não como a mãe dele – Mas, a partir do momento em que você a conhece, descobre que ela é uma excelente pessoa.

–O seu irmão... parece que ela estava dizendo algo sobre ele antes de eu entrar, e não terminou...

–É mesmo... Estranho, não? Agora volte a se deitar, porque você está doente e não pode ficar aqui tomando friagem.

            Tatiana foi, meio que a contragosto. Ed estava muito feliz com o encontro com Winry, mas agora estava mais confuso do que nunca. Estar próximo a ela outra vez despertou lembranças profundas, de momentos de alegria e de tristeza. Só então ele percebeu o quanto as coisas mudavam em cinco anos: fisicamente, ela estava praticamente idêntica, só um pouco mais alta e com cabelos um pouquinho mais curtos, mas o olhar dela havia perdido aquela jovialidade. Ela agora exibia um olhar decidido e firme, adulto, muito mais maduro e ajuizado. Sim, ela ainda era Winry Rockbell, protética, mas agora estava muito diferente, e muito mais interessante.

            “Ou será que fui eu quem mudou?”, ele não pôde deixar de pensar. Quanto ele mesmo havia se transformado naqueles anos de distância? Ora, ele era um alquimista, um estudioso da transformação, e sabia que o tempo e a distância eram como catalisadores numa reação química, que aceleravam e tornavam mais profundas as mudanças que aconteceriam naturalmente.

            O que o intrigava, também, era a idéia de Alphonse estar em Aquroya. Aquela cidade era o lar de Psiren, uma ladra que irritou Ed o bastante para querer distância daquele lugar pelo resto da vida. Será que ele havia descoberto alguma coisa por lá? Amestris era um país enorme e cheio de segredos, e talvez houvesse lá algo extraordinário. Ele só não se conformava com o fato de o irmão querer se tornar um cão do exército. Al entendia, mais do que ninguém, as humilhações pelas quais um alquimista federal era obrigado a passar, então por que tentava se submeter àquele tratamento outra vez?

            “Será que ele está tentando... me resgatar?”. Ele não tirava da cabeça o momento em que o vira através do Wirbel. De alguma forma, sabia que Alphonse havia sentido alguma coisa, tão ou mais intensa do que o que ele mesmo havia sentido. De qualquer forma, não poderia saber até encontrá-lo, e não sabia quando ele voltaria. Até lá, precisaria esperar, pacientemente.

            Naquela noite, ele resolveu sair para dar uma volta, deixando Tatiana aos cuidados do doutor Strathmore. Rever a sua Amestris, a sua Cidade Central, era ótimo. As caras eram novas, mas a agitação era sempre a mesma. Parou, então, em frente à livraria que freqüentava com mais freqüência, às vezes para comprar livros de pesquisa mas, na maior parte das vezes, apenas para comprar revistas em quadrinhos. Depois, seguiu observando as lojas e lugares que mais freqüentava. Alguns eram idênticos, outros haviam se transformado completamente, e alguns ainda tinham desaparecido.

            Mesmo sendo grande e caótica como Londres, a Cidade Central parecia ser muito mais viva e animada. Apesar de Ed ter nascido em Rizenbul, um vilarejo rural que tinha duas vezes mais ovelhas e vaquinhas do que pessoas, ele sempre se considerava natural da Cidade Central, que tinha mais a sua cara. Ele passou em frente aos portões do quartel. Os guardas que os vigiavam continuavam usando os mesmos uniformes azul-royal (um tanto bregas na opinião do alquimista, por sinal), e ele até pensou em conversar com eles, mas mudou de idéia. Ao observar melhor, percebeu que eles eram os mesmos de cinco anos atrás e, por alguma razão, ele não queria ser reconhecido, e passou direto.

            Ele resolveu fazer o caminho de volta para a pensão, e seus pensamentos se voltaram a Winry. Eles precisavam conversar muito, falar sobre todas as mudanças que haviam acontecido, mas por alguma razão Ed se sentia culpado por isso. Ele era um rapaz comprometido, mas não havia motivo para hesitação. Ele e Winry sempre foram apenas amigos, quase irmãos. Mas...

            “Nem pense nisso, Ed”, ele cortou seu pensamento antes que ele tivesse a chance de se desenvolver e levar a um conflito que ele seria incapaz de resolver. Não havia problema nenhum. Eles eram amigos e, como amigo dela, iria até a oficina na sua primeira folga, sem culpa ou hesitação. E sabia que Tatiana seria perfeitamente capaz de separar as coisas e que não sentiria ciúmes. Logo que chegou à pensão, foi ver Tati. Graças a uma infusão preparada por Daniel, ela já parecia estar um pouco melhor, e Ed, mais tranqüilo, pôde ir para seu quarto.

            Dois dias depois, um sábado, ele foi até a oficina de Winry, sozinho. O lugar era relativamente grande, maior do que a antiga oficina de Rizenbul, e muito mais bagunçado. Ele a encontrou nos fundos, o cabelo preso para trás por uma bandana preta, uma chave de fenda entre os dentes e uma complexa prótese semi-montada à sua frente.

–Lugarzinho legal esse aqui, hein? – ele disse alto para que sua voz se sobrepusesse ao barulho de metal tilintando e máquinas ligadas – Você trabalha aqui todos os dias?

–Olá para você também, Ed – ela o cumprimentou, tirando a chave da boca e limpando as mãos sujas de graxa num trapo que estava ali por perto – Pensei que você não vinha, sabia?

–E qual foi a última vez que eu perdi um compromisso com você?

–Quer que eu enumere todas ou só as dez mais recentes?

            Os dois riram. Ele, então, começou a contar sobre a sua vida em Londres. Winry, a princípio, fez muitas perguntas, mas depois ela deixou que apenas Ed falasse. Ele contava tudo: como era Londres, as cidades pelas quais passou, como descobriu o doutor Strathmore e, por conseqüência, teve um encontro com Envy... e falou também sobre Tatiana, bem menos do que gostaria, mas o suficiente para não criar atritos. Assim que ele terminou, ela parou, abismada, e disse:

–Então ele cruzou a Porta com você? Esses caras, os homúnculos, continuaram causando problemas até lá em... como se chama, mesmo?

–Londres – respondeu Ed – Mas foi só nos meus últimos meses por lá. Antes, acho que ele não tinha me encontrado. Além do mais, ele estava estranho... fraco, entende? Sem alquimia, se ele estivesse forte como estava aqui, eu não teria a menor chance.

–E o que aconteceu com ele? Você contou que ele também voltou com vocês... – agora Winry estava realmente interessada no resto da história.

–Eu não sei ao certo – respondeu o alquimista, com franqueza – Quando chegamos, tudo o que a gente encontrou foi um rastro de sangue. Talvez ele tenha morrido com a travessia, a estrutura das moléculas dele já estava enfraquecida, e talvez a Porta o tenha feito entrar em colapso total. Mas ele é um homúnculo, e um dos mais sanguinários da espécie, se quer saber. Tento acreditar que Envy morreu, mas não podemos baixar a guarda sem ter certeza absoluta.

–E como está a prótese? – então, ela caiu no assunto que Ed tentava evitar – Essa luva estúpida não esconde nada, então tire-a e me deixe ver como ela está.

–Ah, qual é, Winry, você não acha que... – ele começou a retrucar, mas ela puxou o braço direito dele com força e arrancou a luva de seda cor-de-pele. Ao ver a prótese mecânica, arregalou os olhos, enquanto movia cada um dos dedos com delicadeza.

–É um milagre que você não tenha inutilizado-a totalmente! – ela o encarou, furiosa com o “atentado” que uma das suas melhores criações havia sofrido – Como você conseguiu estragá-la desse jeito?

–Eu tinha que ajustá-la sozinho, Winry! – o rapaz se aborreceu – Se eu pedisse para alguém entendido em mecânica consertá-la para mim, iria despertar suspeita. Do outro lado da Porta, não temos esse tipo de coisa, e eu precisava tentar ser discreto.

–A verdade é que você vai precisar trocar a prótese inteira, refazer a base conectada aos nervos, tudo, e isso vai ser complicado – ela examinava o braço dele com um olho clínico – Mas, se quiser, tenho uma novidade que talvez te interesse.

            Ela tirou de baixo de um monte de lixo uma prótese, que era totalmente diferente do que aquelas que a garota geralmente montava. Ela não era metálica, ao invés disso estava revestida por uma camada que se assemelhava muito a pele humana, na aparência e na textura. Ele a tocou, com cuidado, e percebeu que era idêntica à pele normal, ao toque. Assim que a tocou, a prótese fechou os dedos instintivamente. Ele sorriu, fascinado, e disse:

–Uau! Então era com isso que você estava brincando enquanto eu estava fora?

–Depois de quebrar muito a cabeça, finalmente descobri uma maneira de resolver um problema do qual todos os usuários de próteses reclamavam – ela parecia fazer uma propaganda sobre seu mais novo invento – Descobri uma maneira de torná-la tátil, ou seja, dá para sentir temperatura, textura, dureza... Enfim, consegui fazer uma prótese mecânica sentir, e por isso ela reagiu quando você a tocou. Isso não é o máximo?

–Eu vou querer uma dessas para mim! – concordou o alquimista, imediatamente – Quanto é?

–Por enquanto é experimental, o que quer dizer que, se você se oferecer para ser minha cobaia, faço todo o serviço de graça – respondeu ela – Não se preocupe, já testei em algumas pessoas e todas saíram muito satisfeitas. O único problema é a aplicação.

–O que tem a aplicação?

–Ela é muito mais dolorosa do que a aplicação de uma prótese normal, porque há mais nervos que precisam ser conectados. Uma das pessoas em quem eu testei a prótese acabou passando muito mal durante a aplicação.

–Não é o meu caso. Já estou acostumado a esse tipo de coisa.

–Tudo bem, vamos tentar. Semana que vem está bom para você?

–Está ótimo. Então, conte sobre as coisas aqui de Amestris...

            Ela começou a contar tudo o que aconteceu desde que ele partiu. Contou que o governo havia se tornado Parlamentar, falou da reconstrução de Liori e de Ishbal, que agora se tornavam cidades prósperas outra vez. Falou, também, que o país agora estava em paz, e que era raro ouvir a expressão “cão do exército”, mas desde que a Black Rose apareceu, tudo parecia querer voltar ao caos que era na época do marechal King Bradley.

            Eles passaram horas conversando e rindo, falando de tudo o que lhes acontecera naqueles anos de separação. Ed evitava fazer perguntas sobre o irmão, como se quisesse descobrir tudo o que acontecera com ele por si só, mas Winry adiantou que ele era novamente humano, de carne e osso, o que fez com que o alquimista de aço se enchesse de alegria. Já era tarde quando ele resolveu ir embora, sentindo-se mais leve do que nunca.

            Ele esperaria até o irmão voltar, e então o encontraria pessoalmente. Agora, seu coração estava preenchido por ansiedade. Como ele estaria? Pelos seus cálculos, Alphonse tinha 18 anos, e devia estar um rapaz alto e forte. “Provavelmente muito mais alto que eu”, ele riu, pensando em como seria engraçado revê-lo depois de tanto tempo. Agora estava tudo bem, afinal. Parecia que, enfim, tinha encontrado o caminho para a paz. Tinha uma namorada, estava prestes a rever todos os seus amigos, e veria de novo o seu irmão, o seu maior desejo durante todo aquele tempo. E, provavelmente, já o veria com uma prótese nova, muito melhor que a anterior.

            “Uma semana...”, ele não deixava de pensar e de sorrir, enquanto voltava para casa. “Só uma semana. E, assim que estiver com minha prótese nova, vou direto encontrar o Al!”.

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            Ed se lembrava claramente de como era doloroso o processo de colocação de uma prótese mecânica, mas o que estava passando superava tudo o que já havia sentido. De acordo com Winry, era impossível anestesiá-lo. Ela e um assistente fizeram a cirurgia que arrancou a prótese antiga e colocou a nova. O rapaz gritava, sem poder se conter, e o suor escorria da sua testa.

–Calma, Ed, calma! – ela tentava contê-lo, mas os espasmos de dor, violentos e involuntários, eram fortes demais – Está acabando, está acabando.

–Você disse isso há uma hora! – retrucou ele, rouco, mordendo com força o lábio.

–Estou fazendo o que eu posso – ela ficava consternada com o estado do amigo, cada vez mais pálido e tremendo mais – Agüente só mais um pouquinho, e tente não desmaiar.

            Ele acenou afirmativamente com a cabeça, enquanto ela atava outro nervo sensorial à nova prótese. A cada nervo conectado, ele apertava os olhos e mordia com força o lábio inferior. Já estava exausto, e não podia mais gritar. Na sua boca, havia gosto de sangue, vindo do lábio já cortado pela força que Ed aplicava nele com os dentes.

–Só mais um pouquinho... – ela o encorajava sempre – Só mais um pouquinho... Esse é o último... Pronto, terminei – ela conectou o último nervo, e Edward suspirou de cansaço e alívio. Os últimos procedimentos, perto do que havia acontecido antes, eram um refresco, e enfim, ela terminou.

–Acho que agora eu mereço um doce, não é? – ele sorriu, fracamente, o rosto mortalmente pálido.

–É claro que sim, você foi meu paciente mais corajoso – ela também sorriu, em resposta – Agora descanse. A grande maioria das pessoas desmaia, mas você foi muito forte.

–É que eu já tenho experiência com próteses e com dor – os olhos dele se fechavam sozinhos – Eu quero dormir um pouco...

            Ele dormiu durante horas. Quando acordou, sentiu o ombro direito formigando muito. Ainda estava dolorido, mas nada que se comparasse ao que havia passado antes. Sentou-se com dificuldade, e depois tentou se levantar, mas percebeu que uma de suas pernas estava faltando e acabou caindo. Winry estava sentada na sua frente, e deu uma risadinha discreta, ao que ele respondeu, raivoso:

–Que brincadeira de mau gosto é essa, hein?

–Enquanto você dormia, examinei sua perna. Por sorte, ela está bem melhor que o braço, por isso você só precisará de uma prótese nova, mas a base dela não precisará ser trocada. Eu estava terminando de montá-la, sabe? Aqui está, é só colocar. E – dessa vez ela sorriu – seu braço novo também está pronto.

–Posso experimentá-los? – ele perguntou, levantando-se com a ajuda de Winry.

–É claro que sim! São todos seus!

            Com a ajuda dela, ele colocou sua perna de volta no lugar. A prótese do braço, porém, exigiu um pouco mais de cuidado. Ela tentou colocá-la com o máximo de delicadeza que conseguiu, mas mesmo assim parecia que uma faca estava sendo enfiada em seu braço. Assim que terminou, porém, ele tentou movê-la, lentamente, até tocar o balcão de metal em que Winry trabalhava. E ele o sentiu, liso, frio, com alguns riscos provenientes do choque de metal sobre eles. Boquiaberto, continuou passando as pontas dos dedos pelo balcão, até encontrar uma lixa, e senti-la áspera e grossa. Depois, tocou um pedaço de pano velho, e o sentiu macio e levemente engordurado por graxa.

–Isso é fantástico... – maravilhado, ele apenas sussurrou – Totalmente fantástico...

–Que bom que você gostou! – ela sorriu, satisfeita – Vai ficar meio dolorida por alguns dias, mas logo passará. E não se esqueça de que essa prótese é diferente e você não poderá ficar transmutando-a a torto e direito, como fazia com a antiga.

–Não vou precisar ficar transmutando a prótese a torto e direito como antes, Winry – ele observava a nova mão, enquanto movia os dedos – Agora quero levar uma vida calma e sossegada.

–Você? Uma vida calma e sossegada? Não me faça rir! – debochou a outra – Além do mais, o seu querido irmãozinho está cada vez mais parecido com você.

–Isso é bom, significa que ele está inteligente, engraçado e superinteressante. Isso, é claro, sem mencionar que ele deve estar tão bonito quanto eu.

–É sério, Ed, o Al não é mais o mesmo. Ele está...

–Por favor, Wi, não diga nada. Quero saber como ele está por conta própria. Agora preciso ir, na certa Tati está arrancando os cabelos por minha causa.

            Quando ele mencionou a namorada, os olhos de Winry se estreitaram, mas ela não disse nada. Ed se despediu cordialmente, mas mesmo depois que saiu não conseguiu tirar da cabeça o comportamento da amiga. Por quê, sempre que mencionava a namorada, a outra ficava tão estranha? No passado, talvez, ele e Winry pudessem ter tido alguma coisa, mas nunca aconteceu. Talvez o destino não quisesse que fosse assim, ou talvez a oportunidade nunca tenha aparecido. Era difícil saber.

            O que mais o intrigava, porém, não era nem o comportamento dela. Ele também estava se sentindo estranho. Não que questionasse os seus sentimentos por Tatiana, eles eram sólidos e profundos e estavam acima de qualquer coisa, mas desde que a reencontrara, outro tipo de emoção começava a tomar conta dele. Voltou para a pousada o mais rápido que podia, apesar de o braço ainda incomodar e formigar um pouco, e só ficou mais aliviado quando reviu Tatiana, que esperava na entrada. Ela ficou por muito tempo fazendo perguntas sobre a prótese nova, se estava doendo, como funcionava, e não ficou feliz até tocá-la em todos os pontos possíveis.

            Eles conversavam calmamente quando Ed bateu os olhos num jornal deixado sobre uma poltrona. Quando leu a manchete, ficou lívido, e apanhou o jornal, trêmulo.

            BLACK ROSE ATACA EM AQUROYA

            Ex-ladra Psiren é encontrada morta, o que intriga os investigadores

            Na manhã de hoje, Clara Kervokian, conhecida há alguns anos atrás como Psiren, foi encontrada morta, três dias antes de sua transferência para a prisão da Cidade do Sul. Os diretores da Prisão de Aquroya não sabem explicar o que aconteceu, pois não há qualquer indicação de que uma das presas tenha cometido o assassinato.

            Apesar de não haver nenhuma posição oficial a respeito, acredita-se que o crime foi cometido pela Black Rose, mais uma vez. Fontes indicam que ela prestou depoimento para as investigações a respeito da organização, o que poderia ser apontado como um motivo para o crime. Outro fato que merece atenção é o de que, desde a passagem da investigação pela cidade, foram registrados três assassinatos violentos, realizados com requintes de crueldade. Um dos corpos, pertencente a um rapaz entre dezessete e dezoito anos, com cabelos louro-escuros e olhos castanho-claros, ainda não foi identificado. Se você tem algum parente ou amigo desaparecido cuja aparência seja compatível com a descrição acima, entre em contato com a delegacia de polícia ou o quartel do exército mais próximo.

            Por alguns instantes, Ed sentiu seu coração parar de bater. De repente, sua mente se encheu de pensamentos macabros e sombrios. Ele quase podia ver o seu irmão mutilado, morto sobre uma maca. Ficou apenas parado, o jornal balançando molemente na sua mão, o rosto paralisado numa expressão de pavor e choque. Foi preciso que Tatiana o sacudisse com violência para que ele voltasse à realidade, e ela o fez encará-la, enquanto dizia, séria:

–Olhe, eu sei que o choque pode ser grande, mas você precisa tentar pensar com clareza.

–E se for o meu irmão, Tati? – gaguejou ele, quase sem voz -  A descrição bate, a idade bate, tudo bate! E ele estava em Aquroya, se bem o conheço talvez tenha tentado fazer alguma besteira e... e...

–Você não o vê há cinco anos, Ed! – ela o cortou na mesma hora – As pessoas mudam muito nesse tempo. Vamos acreditar que não é ele.

–Eu preciso ter certeza, Tatiana...

–Então nós iremos até lá no primeiro trem e vamos acabar com essa dúvida de uma vez por todas.

            Ele a observou longamente, e se lembrou do que mais o encantava em Tatiana. Ela sabia ser firme sem perder a delicadeza, e os olhos, sempre doces, demonstravam uma enorme força de caráter. Ela estava lidando com aquela situação absurda de um jeito surpreendente, com segurança e coragem, e ele tinha que tentar fazer o mesmo, independente do que acontecesse.

–Está bem – por fim, ele acenou com a cabeça – Vamos para Aquroya amanhã mesmo. Se não for ele, é provável que ele ainda esteja lá, e se estiver, vamos encontrá-lo.

–É assim que se fala – ela sorriu, complacente – Algo me diz que não é o seu irmão, e que vamos encontrá-lo muito em breve. Acredita em mim, não acredita?

–Como eu poderia não acreditar? – ele forçou um sorriso amarelo – É melhor eu ir dormir, amanhã teremos que acordar bem cedo e...

            Mas a frase morreu nos lábios dele no momento em que ela o beijou de supetão. No mesmo momento, ele correspondeu ao beijo, involuntariamente, e sentiu-se a pessoa mais importante do mundo. Nesse momento, teve certeza de que o que sentia por Tatiana era amor, ou algo muito próximo, algo que o fazia ser capaz de tudo por ela. Ela lhe dava coragem, lhe dava força, e aquilo era exatamente o que ele mais necessitava.

            “Aquroya...”, ele pensou, quando se separaram e ele observou novamente a manchete no jornal. “Sei que você está aí, Alphonse, e de uma forma ou de outra vou descobrir onde e como você está. Só espero não ter chegado tarde demais...”


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