Dhyosis escrita por Bia Nascimento


Capítulo 2
Capítulo 1 - Alice


Notas iniciais do capítulo

Depois de algum tempo finalmente resolvi levar esse projeto pra frente, divulgando e reescrevendo ele. Logo mais mudaremos o PoV para outra pessoa ♥.
Boa leitura ^-^



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O ambiente se encontrava mais escuro que o habitual, estava anoitecendo e eu conseguia ver o céu estrelado sob a multidão amontoada na janela. Murmúrios se espalhavam em cada cômodo da casa, a tensão e expectativa de cada um era visível. Um grupo havia saído para fazer uma incursão em busca de suprimentos de manhã e deveriam ter voltado há duas horas, mas ninguém tivera sinal algum deles desde que saíram. Normalmente quando incursões demoravam mais que o esperado tinham dois motivos: Ou haviam sido atacados e mortos, ou haviam descoberto algo interessante e logo teríamos novidades.

     Samuel estava no grupo da incursão, era alto e conseguia se manter forte mesmo quando não tínhamos o suficiente para comer, apesar de desajeitado na maioria das vezes. Ele sempre admirara o grupo das incursões, os considerava heróis e agora que finalmente havia completado 18 anos poderia se juntar ao grupo. Aquela era a primeira vez que saíra e aquela demora estava me corroendo por dentro, nunca achei que seria uma boa ideia e não podia perder ele de jeito nenhum. Leo e Mary Ann, dois amigos nossos, estavam ao meu lado igualmente preocupados. Mary Ann ajudava a cuidar das refeições, Leo a organizar e limpar a casa. Ambos haviam fugido de suas tarefas para esperarem agoniadamente nosso amigo, espiando pelas frestas das janelas.

     Cerca de quarenta minutos se passaram, a maioria já havia perdido a esperança e ido dormir, mas eu e meus companheiros permanecemos juntos esperando pela volta do grupo, num cômodo mofado que nunca me pareceu tão claustrofóbico antes. Dona Zefa, líder de todos nós, mãe de Marcos e dona da casa estava nos mandando dormir também, mas conseguiríamos enrolar ela por mais alguns minutos. Cada segundo era uma tortura, eu estava quase perdendo a esperança e vi lágrimas descerem pelo rosto de Leo. Ele era um ano mais novo que eu e pouca coisa mais alto. Assim que o vi chorar, abracei e disse que tudo ficaria bem. Mal fechei a boca e escutamos barulhos vindos do térreo, do portão mais especificamente. Ou estávamos sob ataque ou eles haviam voltado.

     Sem pensar, nós três corremos para lá, mesmo que fosse um ataque não conseguiriam passar pelo portão. Quando chegamos ao primeiro andar um sorriso involuntário se formou em meu rosto: O grupo todo havia voltado, inclusive Samuel. Estavam com ferimentos leves, nada que eu não pudesse cuidar, mas parecia que traziam algo, já que estavam em círculo olhando para algo no chão, inclusive Dona Zefa.

     "Samuel!". Chamei e no mesmo momento ele virou e veio correndo em nossa direção. Estava suado e tinha um cheiro amargo, mas isso não impediu que ele abraçasse cada um de nós e nos contasse brevemente como fora sua primeira incursão. Disse que viu alguns infectados e eram horríveis, só de lembrar já se arrepiava. Falou também que conseguiram suprimentos em um mercado abandonado, mas lá também havia um corpo feminino que parecia estar vivo e sem sinais de infecção, apesar de inconsciente, então o trouxeram e agora estavam decidindo se ela deveria ficar. A surpresa na feição de cada um era evidente, afinal era a primeira vez que isso acontecia e não sabíamos com certeza se estávamos lidando com um recém infectado ou não.

    Leo e Mary Ann foram dormir depois que certifiquei que Sam estava bem, e eu fiquei acordada para cuidar dos ferimentos do grupo. A maioria era apenas alguns cortes superficiais ou arranhões, não fiz muito além de desinfectar. Chegara a vez do Samuel, pedi para que tirasse a camisa para eu ver se tinha algum ferimento maior e me surpreendi com um corte em suas costas. Apesar de não parecer infectado e não estar em carne viva, precisaria de alguns pontos. Olhei para os olhos castanhos e profundos do mais alto e perguntei o que tinha acontecido para ele ter aquele corte. Com um sorriso nos lábios ele disse que enquanto estavam no mercado um armário iria cair em cima de uma garota que estava com eles, ele conseguiu tirar ela de lá, mas o armário acabou o acertando e deixando aquele corte.

     Também sorri ao ouvir a história, sempre achei engraçado como ele se preocupava mais com os outros do que com si mesmo. Peguei a agulha, a linha e então percebi que não teria nada para anestesiar a dor, teria de ser a sangue frio. Quando contei a ele, ele me pediu para cantar enquanto o costurasse, a música iria o acalmar. Calmamente passava a linha pelo corte em sua pele morena enquanto cantava uma melodia suave. Percebi suas mãos cerradas e que vez ou outra ele gemia de dor, mas precisava fechar aquilo pelo bem dele. Terminei de costurá-lo quando a música chegou ao fim e o mandei dormir, precisaria descansar. Ele me agradeceu com um inocente beijo na bochecha enquanto colocava a camisa, escondendo o que se tornaria uma nova cicatriz no futuro.

     Quando ele saiu era vez de cuidar da garota encontrada. Dona Zefa me pedira para higienizá-la e cuidar de seus ferimentos, de manhã o médico da casa tentaria descobrir o que havia de errado com ela. Sua pele era extremamente branca, parecia impossível alguém ter tão pouca melanina em si. A despi para que pudesse lavá-la com alguns panos molhados quando vi que por baixo das roupas a pele alva era completamente maculada. Haviam arranhões, manchas roxas, vermelhas e mesmo alguns ferimentos mais sérios que precisariam ser limpos e tratados. Com paciência a limpei delicadamente, parecia que qualquer movimento mais forte que fizesse a quebraria em mil pedaços. Limpei suas feridas e a cobri com um lençol. Por precaução amarrei suas mãos e pés na maca, ainda não sabíamos se era uma recém infectada e não podíamos arriscar.

     Deixei a recém-chegada na enfermaria improvisada e pouco equipada, sendo observada por nada além das paredes de tinta azul gasta e finalmente me deitei, exausta pelo dia que tive. O dormitório abarrotado de gente sequer tinha um colchão vago para mim, então tive que me acomodar em uma rede que ficava estendida para noites como aquela. Provavelmente já tinham se passado mais de duas horas desde que todos tinham ido dormir, mas apesar do cansaço que sentia em cada centímetro do meu corpo minha mente se recusava a descansar e me deixar dormir. Não deveria me importar tanto com a menina, ela devia estar desnutrida e por isso desmaiara, seu corpo era pequeno, frágil e extremamente magro, era a causa mais provável, mas ainda assim não conseguia deixar de me preocupar com as consequências que ela traria para o acampamento, não encontrávamos sobreviventes a meses, sequer tínhamos onde acomodá-la. Imersa em meus questionamentos adormeci sem perceber, e pela primeira vez em anos não sonhei com nada.

     Quando acordei percebi que o quarto estava vazio e a casa movimentada, pessoas indo de um lado ao outro, executando suas tarefas. Deduzi que pelo esforço do dia anterior me deixaram dormir até mais tarde, sentia o cheiro de comida vindo da cozinha, provavelmente nosso almoço. Rapidamente sai do pequeno quarto, indo para a enfermaria improvisada onde a visitante inesperada deveria estar. A encontrei praticamente da mesma forma que a deixei, mas com tubos improvisados presos em seus dois braços e Juan - que costumava ser médico antes da calamidade - mexendo em alguns papéis enquanto a olhava.

     "O que aconteceu com ela?" - Perguntei curiosa.

     "Ah, Alice, já acordou? Você fez um ótimo trabalho com ela, aqueles ferimentos todos devem ter desencadeado alguma infecção que, juntamente com exaustão e fome provavelmente a deixaram nesse estado de quase coma, com seus cuidados ela deve melhorar logo". Ele respondeu pacientemente.

     "Acha que ela foi infectada?"

     "Bem, só descobriremos isso com o tempo, mas até agora ela não tem demonstrado nenhum sinal da infecção. Ainda assim, seja cautelosa enquanto estiver com ela."

     "Irei ser, não se preocupe. Ela está bem e parece que não vou ter muito trabalho aqui hoje.” Observei, vendo o cômodo vazio, exceto por nós três. "Vou ver se precisam da minha ajuda em outro lugar, afinal todos devem estar ocupados."

     "Ah sim, claro, também irei fazer minhas obrigações."   Juan disse, saindo da enfermaria.

     Antes de também me retirar observei a garota a minha frente. Seu corpo era pequeno e magro, mas bonito, e pela primeira vez notara seus cabelos negros como uma noite de lua nova. Ela era como a Branca de Neve das histórias que costumava ouvir na infância. Por uma fração de segundo pensei ter visto seus dedos se contraírem e esperei para ver se o movimento se repetiria, mas nada aconteceu nos minutos seguintes, o que me fez crer que eu deveria ter imaginado depois de tanto tempo a observando.

     Me aproximei da cozinha, onde Mary Ann cozinhava enquanto Sam e Leo conversavam. O cheiro ficava mais forte a cada passo, até que ouvi meu estômago roncar, não havia percebido o quão faminta eu estava até aquele momento. Eles conversavam animadamente sobre o Festival, um evento que fazíamos sempre que conseguíamos grandes quantidades de suprimentos nas incursões, onde passávamos a noite juntos cantando, comendo e nos divertindo. Era a maneira que Dona Zefa encontrara de nos fazer sempre lembrar que éramos uma família e apesar de tudo continuávamos sendo humanos. Humanos frágeis, limitados e que precisam se divertir vez ou outra. A sensação de participar de um Festival era incrível, sentíamos a energia humana que emanava de cada um de nós e parecia que todo cansaço e tristeza se esvaíam, dando espaço a um pouquinho de esperança em meio ao caos. Era praticamente uma festa da colheita.

     Sem delongas adentrei também na conversa e por alguns minutos esqueci tudo, esqueci a doença, os infectados, os problemas. Tudo o que tinha era a companhia das melhores pessoas que já tinha conhecido. A conversa fora interrompida por Mary Ann anunciando ter terminado o almoço. Rapidamente peguei um prato gasto com um garfo torto e fui para a fila da comida. O cheiro havia espalhado por toda cozinha, que agora estava abarrotada de gente, e parecia ser carne que conseguiram na nova incursão. Todos estava animados com o almoço do dia, fazia pelo menos um ano que não comíamos carne e semanas que não conseguíamos encontrar comida, o que resultou em dias passando fome, comendo meia colher de arroz por dia apenas para que não caíssemos de fome, mas não o suficiente para impedir os vários casos de desmaios e anemia que vieram disso, além de termos perdido alguns companheiros. Eram tempos difíceis que moldaram todo o casarão. Durante algum tempo conseguimos nos manter saudáveis, mas conforme as crises chegavam e sequer tínhamos o que comer, a grande maioria de nós não passava de grandes sacos de ossos, esfarrapados, magros demais, alguns com ossos a mostra e que, frequentemente chegavam na enfermaria com alguma doença relativa à falta de nossos alimentos.

Ao chegar minha vez recebi uma pequena colher de arroz e um pedaço minúsculo de carne, mas ainda assim estava feliz, aquela era praticamente uma refeição farta em relação aos últimos dias.

        O resto do dia foi como todos os outros, algumas tarefas, mas no geral o tédio de não se poder fazer nada. As vezes em momentos assim eu ensinava as crianças a ler e a escrever, mas elas corriam euforicamente pela casa e não iriam parar para me ouvir. Estava procurando por algo para fazer quando vi uma pequena aglomeração se dirigindo a algum lugar. Ao me aproximar ouvi alguém tossir, não normalmente, mas de forma incessante, com raras pausas e respirações profundas, como se não conseguisse respirar. Era Paulo, um antigo sobrevivente que se refugiou na casa poucos dias depois de mim. Ele tinha asma e mais alguns problemas respiratórios, com certeza estava tendo alguma complicação mais grave. Quando consegui chegar até ele o doutor deu o veredicto: Em algumas horas seus pulmões iam se fechar e ele morreria, a menos que tomasse determinada medicação que não havia na casa. Teria que ser feita uma incursão de emergência. E Samuel estava se voluntariando a ir.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, estou sempre aberta a críticas e elogios ^-^



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