Cancro & chaos escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 17
Sobre raios e intelectualidade




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Algo que acho incrível baseia-se na velocidade dos acontecimentos! É fabuloso e até desesperador em alguns momentos como tudo pode mudar da água para o vinho, do amor para o ódio, num piscar de olhos, numa fração de segundos. Mudanças repentinas e bruscas, rajadas que vêm sem avisar.

Lembro-me como se fosse hoje, quando eu estava na pré-escola e um dos colegas de classe estava faltando bastante e a professora apoiou-se na sua mesinha e disse para sala com velocidade, como quem quer aplicar rapidamente uma injeção para que a dor não pareça longa e excruciante. Sinceramente, não senti muito naquele momento, apenas um susto com mera equivalência, afinal, como já afirmei aqui, infelizmente, amigos não foram um luxo meu. Talvez por pensar demais. Enfim, a professora disse algo com: “O Castanha foi atingido por um raio e está no hospital num estado grave!”.

Estranho, não? No parquinho daquela escolinha privada ele corria serelepe, tacava o rebuliço correndo atrás das meninas e brincando de pega-pega com os meninos, até que ele simplesmente não vai para a escola, conta uma, duas, três faltas e você descobre que certo dia tudo estava bem e no outro, na hora errada e no lugar errado, vem um raio certeiro e o atinge, como se ele fosse um saco de batatas pequeno.

É de um humor sem graça. Não sei o quê define onde um raio cairá e porque na cabeça de uma pessoa, mas, raios tem um jeito estranho de agir, quem sabe acham que os seres humanos apreciam surpresas. Você aprecia?

Acredito que há uma brecha chamativa para que eu conte um pouco sobre o meu período na pré-escola, antes do sumiço néscio dos meus pais. Confesso que demorei contar essa parte da minha vida por uma causa capital: é chata e sem sentido, mas, eu percebi que feito este livro, não precisa fazer sentido, portanto, dane-se, aqui contarei.

Meus pais me deixavam na escola pela manhã e me buscavam na hora do almoço. Tínhamos as melhores conversas no carro. Conversávamos sobre amor, riscos desconhecidos dentro do automóvel, agroglifos, ufologia, filosofia e até música clássica.

Chegar no colégio e ser entregue para a mulher que cuidava das crianças não fazia parte das melhores sensações. Eu fingia um sorriso e me esforçava para não me despedir dos meus pais, para que percebessem meu desânimo, porém, sempre no último segundo, eu me virava e acenava com um sorriso falso, para que não se sentissem mal.

Sinceramente, o motivo da minha falta de vigor, a maldita astenia, vinha de um tédio incomensurável que vinha brincar com os meus botões. Lá estava eu, forçosamente repetindo as vogais, enquanto esperava ansiosamente para ouvir a leitura de mamãe e terminar a minha leitura de Moby Dick.  Sim, você deve estar pensando o motivo da minha demora sobre notificar você sobre essa hipotética criança prodígio que eu fui... Mas, se eu contasse no começo do livro, pareceria muita egolatria da minha parte e não sou nenhum ensimesmado, apenas aprecio os meus momentos.

Aprender a repetir pode ser fonte de chatices azucrinantes.

Lembra-se quando Carla contou-me sobre o seu gosto na música clássica? Quase complementei citando Liszt, Mahler e Paganini, no entanto, às vezes, temos que engolir a nossa intelectualidade para que não pareça presunção e acoe olhares e conversas que podem se substanciar na simplicidade e ser, ao mesmo tempo, profundas como um calibre de Magnum.

Na época que fiquei junto com a Zumira, houve alguns momentos de delinquência — engraçado como somos cheios de confissões — nos dias que ela sumia, eu entrava escondido no quarto dela e na terceira gaveta da cômoda esverdeada, que era fechada com chave, mas sempre estava aberta, havia livros sortidos que mudavam conforme o mês... Um segredo: havia altas restrições de leitura e de qualquer mercadoria que entrava no Ninho, se eu pudesse dizer, os livros que vovó guardava ali não eram os mais “adequados” para toda aquela moral pregada.

No dia que descobri o sofrimento da minha vó, pensei em várias coisas, até cheguei a um pensamento que me dizia que a Zumira permitia, sagazmente, que eu tomasse daqueles livros para leitura e sempre trocava-os para eu não caísse na monotonia e fosse procurar por ela, como fiz no meu dia de veneta.

Vovó tinha livros eróticos que fariam alguns atuais parecem literatura infantil. Tinha os Bukowski’s da vida. Aprofundava seu pensamento nalgum livro de Victor Hugo ou quem sabe Tolstói. Tinha a sua magia em me fazer chorar com livros que não se tornaram nenhum best-seller, mas, de profundidades inenarráveis em termos ultracósmicos. Havia Clarice e Drummond. Sinto saudades da Zumira, mesmo que eu tenha dificuldades em desvencilhar a figura dessa mulher da figura do confinamento que vivi no Ninho.

A mulher que me ensinava durante o período que fiquei no abrigo, junto da minha avó, tinha seus encantos tímidos quando punha filosofia nas suas frases e eu ficava excitado por mais.

Ah, eu não deveria estar contando tudo isso, leitor, mas, fazer o quê? Uma hora ou em outra, não queremos morrer com todos os nossos segredos.

No período escolar, tive minha paixão acanhada, aquela atração pueril e inocente. Não chegava à par de nenhum romance que eu havia lido, mas, tinha sua própria magia, focada no meu conto hermético de escrever cartas que jamais mostrarei a alguém. Esqueci onde as pus e se ao menos me lembrar, são tantos trechos icônicos de um garotinho piegas e sem saber, extremamente romântico para o seu tempo e para a sua idade.

Ela se chamava Estapafúrdia. Eu sei! Eu sei! Mais um nome estranho para a lista. Sinto vontade de rir, por lembrar o meu isolamento na sala e toda insignificância que eu dava a minha leccionadora. Preferia desenhar bonecos disformes no caderno ou reescrever trechos camonianos para o meu amor que eu achava inválido. Inválido por causa do meu amor hermético, ficava me questionando: “como alguém pode se apaixonar pelo desconhecido?”. E lá estava eu, mais uma vez, amando o desconhecido, não da mesma maneira e nem na mesma intensidade. As estrelas e a Estapafúrdia. Infelizmente, vamos crescendo e além das coisas que crescem conosco, outras ficam esquecidas... Meu amor ao céu foi reduzido com os remédios. Não sei se é bom ou ruim, quando nos acostumamos a viver sem algo, consequentemente, percebendo que há possibilidade de viver sem alguma peça que você achava chave na sua vida. Contar as estrelas, por exemplo... Ofício de menino.

Posso afirmar, com certa exatidão pouquissimamente oblíqua, que quando crescemos e envelhecemos, nosso olhar se volta ao macro e começamos a banalizar o micro, as nuances e o quê é captado com foco e passos mais lentos.

Um dia na escola, quando as crianças brincavam de cobra cega, fiquei sentado num banco, balançando as pernas no ar e olhando para os meus dedos que estavam com as peles arrancadas, por mania. Sem saber bem o motivo, olhei para baixo do banco e vi uma aranha tecendo uma teia entorno de algum inseto capturado e achei a cena fantástica e inigualável. Inicialmente veio uma vontade de mostrar aquilo para alguém... Para quem? Nem meus pais estavam ali. Então, fiquei observando com a cabeça entre as pernas. Quando ela terminou, fiz posição de indiozinho, cruzei as pernas e pensei consciencioso: “Será que quando eu crescer e for como a minha professora e os meus pais, terei tempo para parar e enxergar um pássaro voando, uma aranha tecendo teia ou uma pequenina formiga andando pelo azulejo? Espero que a vida não me tire o brilho”.

Ah, ainda sou eu? Aquele. Deixe lá, não é? Ou, volte? Não sei, não sei mesmo.

Sobre a menina-paixonite, enfim, amor platônico. Ela nunca soube e nunca saberá. Temos vivências, pensamentos e desejos que achamos tão insignificantes que nem percebemos que só habitam o nosso mundo particular, pois, não permitimos importância para que alce voo no espaço designado para o quê corremos atrás, em busca ou caça.

Por fim, esse capítulo foi mais para dizer que conforme chegamos no fim deste livro, espero que você tenha em mente que a superficialidade dos fatos e pessoas persistirão, nesse aspecto raso e esquecível, enquanto não darmos a devida atenção e compreendermos que qualquer vida é maior do que podemos imaginar. Esteja em aberto, talvez você perca menos.


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