Cancro & chaos escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 10
Refém da beleza




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O episódio da atração física tomou-me de assalto, suscitando indagações profundas. A beleza é um aspecto condicionado, não só por nós, mas, por uma cultura para a massa e condicionantes do tempo estudado. Toda a modelagem do que é belo e chamativo é evidente com o passar dos tempos.

(não sou o melhor professor de História, nem da região, nem do mundo)

Na pré-história, a vênus paleolítica (ideal de beleza feminino), segundo achados arqueológicos e dedução, tinha como característica o excesso de gordura, o qual tornava uma mulher chamativa, muito mais por necessidades de sobrevivência, levando em conta que estética não era ponto-mor dos primeiros seres humanos. Já o homem tinha que ser astuto o bastante para sobreviver, havia a necessidade dum símbolo de proteção — o quê depois veio ser chamado vulgarmente de “virilidade”. Infelizmente, ao longo dos séculos se estruturaram também o machismo e a misoginia, com horrendas consequências.

Em 1200 a. C., na Grécia, o padrão de beleza era mais monumental: corpos focados na formação atlética, pelo menos os dos homens; as mulheres não seguiam necessariamente padrões estéticos atléticos.

Na Idade Média, vaidade era símbolo de profano. Preocupação estética demonstrava descumprimento de “leis divinas”.

Então vem o Renascimento, trazendo de volta a valorização anatômica e a retomada de aspectos estéticos da cultura greco-romana. Vênus, semideuses desnudos e ninfas sensuais. As mulheres exibem cabelos acentuados no tamanho, baixas, voluptuosas e sem acanhamento se houver uma barriga pronunciada, remetendo os padrões vigentes na Grécia e na Roma antiga.

Chega a escultura de Davi, de Michelangelo. Padrão de beleza masculina até hoje.

Em 1901 acontece a primeira competição de fisiculturismo.

1920, aspecto andrógino às mulheres. Cabelos diminutos. Seios e quadris sem modulação em vestidos retos.

Chega Hollywood, 1940, a pomposidade delineada toma forma como padrão de beleza. Seios carnudos, quadris largos, sensualidade e cinturas mais finas. Marilyn Monroe morre como símbolo sexual.

O cinema europeu, na década de 60, traz a inauguração dum novo molde, a silhueta da mulher-violão. Enquanto isso, os ingleses pregavam a beleza aos seus moldes: mulheres magricelas, pouco sinuosas, cabelo curtíssimo. Nesse embate, havia uma mescla bipolarizada de beleza geral.

Vale lembrar que são padrões temporais, sem necessariamente abranger todas as pessoas e os seus gostos estéticos. Nunca se esqueça da subjetividade e que essa obra é meramente de ficção, sem compromisso com o real. Certo? Ou... Não?

1970, Mick Jagger e David Bowie são símbolos duma época marcada pela androginia, onde o padrão Davi é contradito por um visão mais unissex dos gestos e roupas.

Em 1980... Músculos para todo o lado. Eventos mundiais de fitness e inúmeros fisiculturistas influenciando diretamente e indiretamente legiões de seguidores dos padrões estéticos. Ginástica em casa, na rua e em qualquer lugar.

Em 1990 foi a era das supermodelos. Algumas altas, pouco curvilíneas e magras; outras delineadas ao máximo, com seios e quadris avantajados.

E assim, vieram ideias fortificadas ao inconsciente coletivo. Ditando o quê deve ser exaltado num homem ou mulher. Há quem esteja imerso em tais conceitos de beleza, enquanto outros preferem seguir seus próprios gostos não apreendidos por alguma ditadura inconsciente de estética. Há inúmeras discussões filosóficas sobre beleza e não é possível negar; o belo não é propriamente quesito físico e estrutural.

Enfim, o quê estava acontecendo mesmo? Ah, sim... Tomei de uma xícara após descer as estreitas escadas. Estávamos apoiados na bancada que circundava parte da cozinha. Silenciosos num primeiro momento. Devo ressaltar: toda a casa emanava uma solitude aprazível à minha alma. Carla tomava o seu café e, oscilantemente, olhava-me. Era possível sentir a avidez que floria o seu interior, ela sentia necessidade de falar, só faltava o famoso “quebrar o gelo”. Findar a tensão.

Logo, auxiliei no ofício:

— Meu nome é Cancro, afinal.

Ela me olhou e mostrou um sorriso feliz. Pobre de mim... Brincadeira, nem tão pobre assim. A verborragia havia chegado.

— Meu irmão disse que você passou por maus bocados... Nós também passamos. Espero que tenha conseguido descansar!  — Levou o seu café à bancada e apoiada sobre um pé, continuou — Ele me pediu para fazer o mínimo de barulho para que você descansasse sem problemas. Me esforcei ao máximo para isso!

Rimos pouco, em consonância. Ela continuou (fiquei me perguntando como ela conseguia falar tão rapidamente e respirar ao mesmo tempo).

— Eu gosto de fazer muita coisa! Fico ouvindo Schubert, Tchaikovsky, Puccini... Houve uma época que eu estava louca por livros e cada semana o Rímel me trazia um livro novo! Comia os livros e ainda fazia questão de escrever resumos... Mesmo sem ninguém para ler... — Uma leve agonia instaurou-se entre os seus dentes, aproveitei.

— Você não saí daqui? — Quase engasguei.

— Rímel diz ser para o meu próprio bem... Mesmo que eu tenha uma vontade imensa, uma que nunca contei para ele, de viver além da Ponte dos Duendes da Morte, onde existe uma colônia naturalista para desenvolvimento pessoal e viver em constante contato com a mãe natureza... Plantando frutas, legumes e vivendo do que o meio ambiente pode nos dar de menos maculado. — Logo entendi toda aquela avidez por falar e discorrer sobre si; ouvintes escassos, pouco contato com a sociedade, isolacionismo forçado — Eu ouço o meu irmão e até entendo a sua postura! Perder a família inteira para um “sei lá o quê” não é o melhor dos acontecimentos! Certa vez, pela janela do banheiro do meu quarto, que deixei aberta sem o Rímel ficar sabendo, entrou uma borboleta. Ela era branca e tinha pontinhos pretos. Uma borboleta-dálmata! — Disse ao arregalar os olhos, relembrando uma euforia; fez-me rir junto dela, retomou —Ela entrou e eu fiquei correndo atrás dela... Até que a perdi pela casa. Fiquei conversando com ela e procurando... Rímel chegou na hora. Tentei disfarçar, mas, o vi com uma borboleta amassada na mão. Morta. Chorei igual uma criança que caiu do berço. Ele não fez por maldade. Eu pelo menos acho que não.

Fiquei com uma emoção sortida após a estória do episódio. Todo aquele impressionismo e sutileza evidenciava em mim um encanto pacífico.

Rímel tinha seus motivos e uma personalidade “duvidosa”. Queria, hipoteticamente, proteger a sua irmã de uma borboleta e deixava um estranho entrar na sua casa e dormir sem restrições.

Carla parecia pensar nalgo e sem muito pestanejar, disse:

— Vamos brincar de esconde-esconde?

Relutei em aceitar apenas por não estar habituado com uma brincadeira em situações adversas como essa. Questionei:

— Seu irmão não vai ficar bravo por eu bisbilhotar a casa em busca de você?

— Ele vai demorar lá fora. A Fabiana fala mais que eu.

Olhei para ela, perscrutei e respondi:

— Eu conto?

Ela acenou positivamente a cabeça após três palmas seguidas. Feliz. Não me pergunte o motivo de aceitar o ato. Acredito que muitas vezes precisamos voltar ao tempo de criança, para lembrar que nem sempre estivemos enlameados e até na pior das infâncias, houve um momento de contemplação, por mais mínimo que seja. Isso ajuda-me a enfeitar a inutilidade ou utilidade da vida.

Ela disse “até logo” e foi-se. Encostei a cabeça na porta da cozinha que dava para o quintal e comecei a contar:

“1”, lembrei-me da minha infância, antes dos meus pais desaparecerem, da escola e dos amigos que nunca tive.

“2”, lembrei-me de quando caí e rachei o queixo; eu chorava e ria da minha idiotice e sanguinolento, levantei do chão da padaria e saí correndo para a próxima brincadeira. Sem pontos, com marcas.

“3”, lembrei-me das leituras de mamãe e quando eu a pegava chorando no quarto. Deitava no peito dela, ouvia os batimentos cardíacos e a dor que ela não queria me contar (e nunca disse).

“4”, lembrei-me do meu pai e os momentos que pareciam infinitos, os quais ficava olhando para o espelho, procurando algum traço de velhice na barba, nos dentes e na alma.

“5”, lembrei-me do meu desejo gigante de conhecer o mundo através da janela do meu quarto, as pessoas que passavam surtiam um efeito esperado: o aumento de uma quase lascívia por querer conhecer seus interiores tão conturbados. Tantas estórias, histórias e segredos maquilados.

“6”, lembrei-me de quando um carro colidiu contra mim na esquina de casa, fugiu, levantei-me sozinho e fui para casa, ralado. Contei as mentiras que geralmente contamos. Quando bati a cabeça no chão, ouvi sussurros e gritos do centro do planeta. “O asfalto conhece os segredos dos atropelados”.

“7”, lembrei-me de um dia que Zumira tropeçou com a comida no refeitório e eu só conseguia rir, nem para ajudar eu era útil.

“8”, lembrei-me do dia que acordei na data do meu quinto aniversário e havia festa, bolo e parabenizações, mas, eu não entendia o motivo. Amnésia ou desconhecimento. Hoje se me perguntar o dia que marco mais um dia de envelhecimento, tenho que rodar sobre meu eixo para rebobinar.

“9”, lembrei-me do meu tom cabisbaixo: sempre o último a ser escolhido nas aulas de educação física; chato clichê.

“10”, lembrei-me de que precisava achar a Carla, enquanto tanta coisa acontecia lá fora, eu estava brincando. Feito uma criança. Onde está o mal nisso?


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