Amando escrita por My Dark Side


Capítulo 1
E a chuva cai


Notas iniciais do capítulo

Senhoras e senhores, por favor entrem.
Venham se proteger da chuva de verão, ela acabará em algumas horas no máximo, enquanto esperam poderão apreciar uma bebida quente e a declamação de uma de nossas clientes.
As palavras se tornam mais doces ao ouvir as gotas que caem dos céus, por favor apreciem com calma e não se apressem. Tem todo o tempo do mundo.
Senhorita Julia, seu lugar é a frente, esperamos que goste da obra, ela foi escrita inspirada em sua pessoa.

(Som de fundo: https://youtu.be/5NhLg1F9pMo)



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A água escorria do meio fio para a rua, seguindo seu curso para o esgoto como uma pequena corredeira. Crianças riam pulando de poça em poça enquanto eram puxadas pelos pais, a chuva caía. Caía. E caía.

Era uma simples chuva de verão, com suas trovoadas brandas ao longe e ocasionais relâmpagos que riscavam o céu escuro, aquele mesmo que pela manhã estava de um azul limpo invejável. As gotas ricocheteavam no vidro, algumas corriam para baixo, caindo nas jardineiras, caindo dos telhados. Janelas eram abertas, janelas eram fechadas; alguns eram gatos e outros queriam sentir o cheiro das plantas molhadas. Aquele cheirinho verde que se intensificava nestes momentos de frescor, onde o frio aparecia para acalmar a estação do sol. O som da chuva embalava alguns, assustava outros.

Piscou saindo se seu devaneio, gotas d’água pendiam em seus cílios e nublavam sua visão. Seu cabelo estava úmido e suas costas começavam a encharcar, não deveria divagar em uma área descoberta. Não com esse tempo. Desencostou-se da parede de tijolos e desceu a rua, abraçando o próprio corpo tentando manter um pouco de calor nele, ainda que implorara para refrescar-se nos últimos dias. Seu casaco grudava na pele, suas mechas emaranhavam, sua respiração chegou a sair em vapor.

Uma bebida quente seria bem-vinda. Inconscientemente olhou para o lado, talvez fosse propositalmente de acordo com o destino, mas tal ação fez seu coração ser repuxado. Uma dor emocional que jurava ter desaparecido retornou para atormentar. A filha da juventude selava seus lábios aos do namorado com amor, ela segurava entre as mãos uma caneca fumegante que supôs ser chocolate quente, enquanto a dele provavelmente conteria um café com leite. Mordeu os lábios e por mais que quisesse desviar os olhos não conseguiu fazê-lo, a imagem da alegria de seu antigo amor era hipnotizante. Ela estava radiante, iluminando o dia fechado pela tempestade. Suas manias, seus trejeitos, a maneira como seu cabelo enrolava e seus olhos cor de amêndoa brilhavam quando ouvia algo engraçado, como ela levantava o queixo e afirmava pertencer a casa dos audaciosos. Seus gostos literários e suas ideias, seu mundo único e instigante.

Como doía.

Lembrou-se de como ela falou o nome lentamente para entender, da pronúncia, o sorriso cativante. O nome Júlia nunca soara tão lindo aos seus ouvidos. Lembrava-se de ter-se feito de confusa algumas vezes para poder ouvir novamente, apreciando os fonemas suaves e encantadores. Disse à mãe que foi amor à primeira sílaba, iludiu-se por meses afinco, imaginando, sonhando sem nunca avançar. Tanto é que quando soube do namoro pode sentir seu coração partir, rachando e desmanchando no chão de seu quarto naquela noite do pijama. Naquela noite também chovia, mas era a chuva congelante de inverno, aquela que anunciava a chegada de uma frente fria, trazendo calafrios e luvas. Até hoje conseguia encontrar cacos no piso quando entrava no quarto, eles estavam nas fotos, nas mensagens da madrugada, nos diálogos mais simplórios do dia a dia.

Como uma boneca de cerâmica segurou as rachaduras para se manter erguida, em pé e comemorar o romance alheio. Tudo isso enquanto sangrava sob a máscara imutável. Sorrindo e morrendo. Gargalhando de sua infelicidade.

Mais uma vez piscou, desta vez afastando não somente as gotas, mas também as lágrimas que vieram dizer “Olá”. Um soluço chegou aos lábios rosados, caminhou apressadamente para longe do café, dando as costas ao amor jamais recíproco. Seu sapato afundou na água quando atravessou a rua, sua meia molhou e fez as bolhas do dia anterior arderem; diminuiu o passo após duas cruzadas, estava quase em seu destino final, porém, sua ferradura estava de cabeça para baixo. Foi levantar os olhos para observar o sinaleiro, procurar por carros esperando sua vez na travessia. Entre as oscilações do limpador de para-brisa viu um casal jovem, o brilho certeiro do relâmpago refletiu na aliança do passageiro.

Seu outro amor perdido.

Deixou o vento empurra-la alguns passos para trás até bater com as costas no poste, como um soco no estômago sentiu-se enjoada. Ele estava lá, na sua frente e nada poderia fazer. Perdera-o antes mesmo de se formar, por que deveria ter a mente em tão boa forma ao ponto de lembrar das carícias e dos beijos de cumprimento. Daqueles doces presentes de aniversário, fosse de namoro, primeiro beijo, encontro, ele lembrava todos e fazia questão de lhe dar um mimo. Ocasionalmente chegava com algo mais elaborado, mais chique e envolvente, o buquê de rosas, o jantar em seu restaurante favorito, o chocolate recém lançado.

Abraçou-se para impedir as rachaduras de se espalharem e atingirem todo seu corpo, tentou conter o grito que se formava na garganta, o choro que faria harmonia com raios e trovões. Impedir o naufrágio iminente.

Não conseguiria. Não após vê-los. Os dois, felizes, juntamente com aqueles que amavam.

As pernas falharam, contudo não caiu. Ainda não. Esperaria o carro desaparecer na névoa para então desabar e martirizar suas quimeras. Os três anos de namoro traziam a possibilidade de um pedido de casamento, era seu desejo, sua simpatia: se completarmos três anos, casaremos. Nunca dissera em voz alta, fora apenas para si e para as gotas da chuva de primavera — a estação dos apaixonados. As flores riam de seu sorriso bobo e ingênuo, elas sabiam de tudo, sempre foram um bando de fofoqueiras. E deixaram escapar para a infeliz naquele dia especial um local, o delírio da preparação romântica a levou esperançosa, mas não encontrou nada. Nada além de uma faca diretamente em seu peito.

Seu anjo beijava outro, amava outro. Casar-se-ia com outro. Não suportou a visão, muito menos o confronto com a realidade horas depois. Havia se entregado de corpo e alma para o cafajeste, ao adeus enfiou seu coração nas mãos trêmulas dele e rebelou-se, abandonando aquela parte de si mesma para sempre. A linha, no entanto, ainda os ligava. Segurando e puxando para lembra-la de que suas tentativas com Afrodite resultariam em tragédias, em lágrimas. As flechas de Eros apenas contribuíam para o aumentar do quebra cabeça, antes uma única peça, hoje já se via como um de milhares.

Amassou sua blusa, agarrando firmemente o tecido sobre o coração. Talvez trouxesse uma utopia para o amanhã, se mantivesse o aperto acordaria inteira. Caminhou com o triplo de seu peso, arrastou-se pelo quarteirão seguinte; na esquina, não conseguia mais segurar, sua mente fragmentava e seus membros tremiam, a chave do apartamento estava instável em seus dedos e quase foi derrubada, fechar a porta foi sua última ação sã. Afogou-se.

Suas pernas não mais suportavam o peso, seu corpo foi de encontro ao chão, suas mãos agarravam o peito ferozmente, as unhas chegando a arranhar a pele. Encolheu-se em posição fetal enquanto a sua mente era alagada. Os trovões tornaram-se ameaçadores aos seus ouvidos e os raios eram seres querendo pegá-la. Engasgou-se com o choro, as lágrimas escorrendo e conflitavam com as contrações do peito, não estava mais no controle do corpo, não conseguia se controlar. Respirava pela boca, rapidamente, tão rápido que nem sentia que o fazia. O corredor parecia estar sendo compresso, a escuridão e o barulho intensificavam ainda mais a sensação. Estava estrangulando no pânico, na dor, no medo. Em sua própria alma.

Estava numa teia de aranha, grudada e não podia se mexer, sentia os passos do predador em sua direção pronto para tirar-lhe a vida ínfima que restava em seu corpo débil. A noção da realidade se perdia com o pouco oxigênio que chegava aos seus pulmões, a pequena chama da esperança estava por um fio, uma brisa poderia apaga-la e quando o fizesse, seria o fim.

Alguém tocava em sua cabeça, a voz estava alterada e era conhecida, mas não conseguia identificar, muito menos responder. Estremeceu da ponta dos pés à cabeça gritando. Pavor. Tentou se afastar da mão em sua cintura, enfiar-se num buraco e sumir do mundo. Queria desaparecer. Tinha algo em seu peito, algo a impedindo de respirar.

— Comigo. — sua mão tocou outro tecido, um mais áspero e com botões. — Inspire. — sentiu a mão subir. — Expire. — abaixou.

Não conseguia, não conseguia. Não iria conseguir. Era tanta dor, tanta dor...

— O que você está vendo? — piscou repetidas vezes e conseguiu ver cores.

— Roxo... Branco... Dourado, marrom... — sussurrou, os olhos se movendo de um lado ou outro. — Verde.

— O que é branco?

— A parede. — respondeu, foi incentivada a continuar. — A calça é roxa, a... pulseira é dourada... A mesa é marrom... — apertou os olhos tentando afastar os trovões. — A blusa é verde. — choramingou.

— Como é a camisa? — estava com a voz rouca de sono, ela percebeu, as mãos dele eram quentes comparadas a sua.

— Ela... — afrouxou os dedos do tecido. — Botões. Três botões fechados. Manga curta.

— Isso mesmo, continua. Como é a pulseira?

— Tem pingentes. Um urso, um coração, um biscoito. — sua mente estava ficando mais clara. — A calça tem uma cordinha branca e está com um furo no joelho.

— Muito bem. Consegue se mexer? — acariciou sua cabeça, assentiu, apoiou as mãos no piso e ergueu o tronco.

— Obrigada. — agradeceu pressionando as têmporas com a ponta dos dedos enquanto se escorava na parede. — Desculpe por te acordar.

— Não faz mal. — beijou sua testa. — Vamos trocar de roupa antes que você fique doente, amora.

Riu baixinho, se levantou, a chuva deixou rastros pelo corredor assim como deixara na sua vida. Sua vida era feita de gotas, raios e trovões. Por vezes os amava, por vezes os odiava.

Era a chuva.

***

Ainda faltam os chuviscos de outono. Aqueles que amam, cuidam, se preocupam. Aqueles que ajudam as folhas a irem ao chão, criando o tapete de cores. Sob os quais teve seu primeiro beijo com aquela pessoa. Aquela pessoa que reconstruía pouco a pouco o que havia se quebrado, cuidando e protegendo, indo devagar. Lentamente para conquistar a confiança e acender as velas. A estação frágil lhe trouxe o “para sempre”.


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Notas finais do capítulo

O texto está sujeito a diversas interpretações, espero que tenham gostado.
Agradecemos a presença de todos e espero encontrá-los futuramente.



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