Amnésia escrita por Ana Coluto


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Pessoal, comentem!

As atualizações da fic serão semanais, provavelmente no domingo!

Preciso de feedback para postar!

Tenho um blog e uma página no face, essa história passará por uma revisão rígida e será postada no blog!

Beijos de Luz!



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CAPÍTULO I

A chuva fria escorria pelo rosto inchado de Maria enquanto uma senhora de cabelos grisalhos se aproximava do caixão com um lenço fortemente apertado entre os dedos. Ela murmurou alguma coisa nos ouvidos pálidos de dona Luci e inutilmente tentou secas os olhos com o pequeno tecido amarrotado em suas mãos.

Enquanto a carreata de amigos, parentes e curiosos avança em direção ao corpo pálido e sem vida de sua avó Maria sentia os sapatos sendo inundados por água e terra. Conseguia sentir o cheiro aconchegante da chuva misturado com a ansiedade que de estar em um cemitério enterrando um ente querido.

Ela ouvia os galhos de árvore balançando ao fundo, sendo a trilha sonora deprimente para aquele momento ímpar em sua vida. Ela não conseguia movimentar o corpo com naturalidade e não por consequência do acidente que sofrera meses atrás, mas sim com medo de ler na lápide que se erguia atrás de si o nome da pessoa que mais amara e admirara na sua vida: seu pai.

Uma culpa que carregaria para o resto da vida.

Ainda não bastasse toda loucura que sua vida se tornará após levantar do coma e receber alta havia chegado a parte do fingimento: alegar que estava bem, que se lembrava daquele membro da comunidade que na verdade ela não tinha noção de quem poderia ser, fingir que sua cabeça não doía quando seus amigos tentavam alegrá-la com as músicas do momento, repetir para seus parentes que estava preparada para voltar a sua rotina, sorrir para todos, abraçar desconhecidos. A pior parte talvez fosse saber que não era a única que estava fingindo, seus parentes fingiam estar lidando bem com a situação, os amigos fingiam não ter seguido em frente sem ela e os curiosos e fofoqueiros tentavam disfarçar quando ela passava pela frente de suas casas.

Para aqueles que assistiam sua imobilidade, chegando a pensar que poderia ser uma estátua patrono dos falecidos da família, não sabendo que tipo de pensando atordoava aquela cabeça que já sofrera diversos impactos durante seus vinte e dois anos de existência e sem conseguir imaginar como é pesado o fardo de ter matado um familiar, foram surpreendidos quando um soluço brotou de sua garganta fazendo com que se curvasse para reprimir o choro.

Quando suas mãos tocaram a terra molhada sentiu que mais soluços estavam por vir, mas sentiu também os olhos curiosos dos convidados pesando sobre suas costas. Uma senhora que havia sentado devido ao desespero de perder uma de suas amigas mais queridas da antiga equipe de costura se levantou para ter uma visão mais privilegiada. Outros faziam anotação mental da cena para que pudessem comentar na privacidade de suas casas. Mas o coração das pessoas que realmente se importavam pesou. Pesou porque sabiam que estavam diante de uma vida que seria delicada dali para frente, pesou porque dentro de si existia um dos mais belos sentimentos que um humano poderia sentir: empatia. Aquela menina não precisava da curiosidade alheia, mas sim da compreensão e um pouco de espaço.

Dentre os presentes um rapaz moreno que observava ao longe abaixou a cabeça e, mesmo contra seus instintos mais íntimos, não se moveu para mostrar a ternura que brotava em seu coração. Consciente que nada poderia fazer por aquela menina e sabendo que sua última homenagem à dona Luci já havia sido prestada, baixou a cabeça e seguiu em direção à saída.

Um senhor de meia idade segurando um guarda chuva se aproximou da garota que estava curvada enquanto os outros expectadores faziam cochicho entre si, e se ajoelhou ao seu lado sem se importar com a calça social que estava limpa.

—Venha minha menina – sussurrou enquanto amparava sua sobrinha. – Vamos para casa.

A garota não tentou resistir e andou com o tio em direção ao estacionamento, sem olhar para trás ao ouvir o primeiro punhado de terra ser jogado sobre o caixão.

Ela estava deitada no sofá olhando uma rachadura no teto que sempre estivera ali. Era comum na sua adolescência ficar observando aquele risco fino serpentear  e formar desenhos que ela nunca tentara decifrar. Gostava da ideia de que todas os pequenos riscos e trincados existentes pela casa, eram pequenos segredos escondidos e escritos em um língua distante (talvez até morta) que a construção sempre manteria. Ficava imaginando quantas histórias de felicidade já haviam sido presenciadas por aquelas paredes brancas e levemente descascadas e situações constrangedoras. Se as paredes falassem, qual seria o segredo que murmurariam?

Foi tirada do seu estado meditativo ao ouvir os passos pesados do tio se aproximando. Ele sentou do outro lado do sofá que Maria repousava. Ela esticou os pés sobre o colo dele e sentiu o contato quente da xícara de chá que ele carregava sobre a pele da perna.

Olhando para o semblante de Everson ela conseguia discernir um pouco os traços do próprio pai. Ele tinha um cabelo liso que aparentava os primeiros grisalhos penteados para trás, com duas entradas das laterais que o diferenciavam do finado irmão que era completamente careca. Os olhos carregavam uma serenidade continua e as pálpebras caídas reforçavam a ideia de tranquilidade. Algo bem diferente dos olhos do pai de Maria, Anderson. Sempre que mirava aqueles olhos pretos incandescentes e ativos, a garota se lembrava das várias broncas que levara na adolescência e do fulgor quando algo o incomodava. Do mesmo modo como seu pai demonstrava sua contrariedade em alguma situação somente pelos olhos, sua felicidade irradiava como o primeiro raio de sol da manhã que era capaz de derreter o coração mais frio.

Outra diferença marcante entre os irmãos: Everson sempre vestia alguma roupa discreta, sem chamar a atenção para si e tendo como único acessório um colar que sua esposa comprara para ele numa excursão religiosa que sempre frequentava. Durante a vida de Anderson ele havia sido o que mais se destacava da família e as tatuagens que ele havia feito em sua juventude o faziam ser um senhor de meia idade bastante exótico no meio que frequentava, era desgarrado de qualquer crença ou religião e nunca ensinara nenhuma religiosidade às filhas.

Então Maria se lembrou de sua primeira apresentação no ensino infantil, seu pai causara uma bela impressão com uma tatuagem de caveira na parte de trás do crânio e como as mães não queriam mais deixar que suas filhas estudassem com um homem que poderia ter contraído alguma doença  por ter feito aquela anomalia no corpo.

Maria começou a ser excluída por suas coleguinhas que a chamavam de “filha do inimigo”.

Essa lembrança a fez ofegar no sofá.

Filha, disse seu pai após ela ter tido uma crise de choro no jantar, eu fiz as minhas escolhas no passado e lido com elas até hoje. E sou feliz por isso. Um dia você vai crescer e também terá que aprender a conviver com suas escolhas. E as pessoas que você ama também terão que aprender com isso”

Sentiu um desespero enorme. Saber que as lembranças de sua infância estavam preservadas a fez sentir uma calor aconchegante no peito. Sentou e encarou o tio.

—O que aconteceu aquela noite, tio? – perguntou enquanto pegava a caneca da mão dele.

Sentiu a mão dele apertar seu tornozelo.

As pessoas estavam evitando falar sobre a situação com ela. Após ficar quatro meses em coma, sentia que alguma verdade estava sendo escondida dela e que se não insistisse ninguém nunca iria contar. Mas tinha medo, não podia negar. A culpa de ter sido responsável pelo acidente de carro que matou seu pai e deixou sérios danos psicológicos em sua irmã mais nova a atormentava a noite. Sentia vergonha do que poderia ter acontecido a ponto de leva-la a fazer tamanho erro e no silêncio da noite, quando sua mãe já estava dormindo, sufocava soluços furiosos que faziam todo seu corpo tremer descontroladamente. Internamente ela agradecia por não se lembrar do evento que destruiu a sua família.

Primeira grande consequência: a morte de seu pai. Havia morrido na hora da colisão, após o carro rodopiar na pista molhada e bater contra um muro de uma casa. Sua irmã havia desenvolvido um trauma que ela não entendia direito, que a fez perder a completa vontade de conversar e interagir transformando-se num vegetal. E a situação piorava se Maria se aproximava: a menina parecia empalidecer cada vez mais e encarar o chão com um medo escancarado.

Sua mãe havia ficado sem rumo com todos os membros da família numa situação tão frágil, seu rendimento no trabalho havia caído e seu chefe entendendo sua situação se disponibilizou a dar um afastamento para que pudesse colocar sua vida nos trilhos novamente. Isso fez com que ela começasse a se sentir desconfortável dentro da própria casa, pois se tornou um ambiente sombrio e sem vida. Foi Everson que a ajudou com a papelada do plano funerário, para acionar a pensão que a filha menor de idade ainda tinha direito e que ajudava com a parte burocrática do internamento de Maria devido seu estado de coma.

E por fim sua vó, que não tinha suportado perder o filho mais novo e começou a entrar num estado de depressão profundo acarretando sua morte.

Ela suspirou e levou os lábios  a caneca, mas travou quando sentiu o vapor entrar pela narina.  O cheiro de maracujá e hortelã acionou alguma coisa em seu cérebro e sentiu como se um bater de asas atravessasse suas memórias e sentiu alguma memória revirar no seu subconsciente, mas perdeu o momento.

Sentiu uma ânsia e sua garganta fechar.

Aparentemente o momento passou despercebido pelo seu tio.

 -Eu não entendi até agora, Maria. – ele suspirou coçando o cabelo com ar de cansado. – Mas você estava muito nervosa no dia, gritou comigo e com a sua mãe. – ele suspirou novamente como se não gostasse de lembra do que havia acontecido.  – Seu pai chegou com o carro e você já saiu gritando da casa e sentou no lugar do motorista, ele sabia que tinha alguma coisa errada e pulou no banco do passageiro para ficar ao seu lado. A Clarinha não tinha nem tirado o cinto de segurança ainda.

Os olhos dele ficaram úmidos e ele balançou a cabeça para afastar as lembranças e encarou Maria.

—Alguma coisa havia te irritado aquele dia. – ele declarou – Mas não se sinta culpada, ninguém pode prever uma fatalidade.

Maria confirmou com a cabeça mesmo sem acreditar naquela sentença em que ele tentava amenizar a sua situação. Como seu pai havia dito há muito tempo atrás, ela teria que aprender a lidar com um ato insensato que havia cometido.

—Tudo bem – disse para se livrar daquele silêncio. – Vou ir dormir tio, estou com o corpo todo dolorido. Esse chá vai ficar mil vezes melhor se eu tomar embaixo da coberta.

Ele sorriu e trocaram mais algumas palavras amenas de boa noite. Maria não sabia como agradecer a todo aquela atenção que o seu tio Everson e sua esposa estavam dando para ela e sua família. Ambos faziam escala para ir lá e conversar com todos, dar conselhos sobre algumas coisas e fazer a doações de roupar de Anderson. Sua tia, como membro da igreja, procurava manter a fé viva naquela casa através dos grupos de orações que levava e almoços repentinos.

—Boa noite tio. – Maria levantou do sofá e se inclinou para beijar a face do tio como fazia na infância.

Ao se aproximar de Everson sentiu o hálito dele de chá de abacaxi, o favorito dele, e sentiu o estômago embrulhar novamente. Definitivamente, não importa o quão legal uma pessoa seja sempre terá uma coisinha que te incomoda em relação a ela.

Enquanto se preparava para dormir Maria sentia um aperto dentro do seu coração e as lágrimas corriam livremente por seu rosto. A respiração estava pesada e por vezes tinha que parar o que estava fazendo porque sentia o coração ia arrebentar de tanta pressão que sentia nele.

O médico dizia que era crise de ansiedade que ela estava desenvolvendo e que conforme o tratamento evoluísse ela iria reagir de uma forma melhor, até que um dia ela não sentiria mais isso e voltaria a ter a mesma qualidade de vida de antes.

No quarto não havia porta retratos, apesar de existir pregos na parede aonde eles costumavam ficar antes. Sua mãe havia empilhado tudo em uma caixa de madeira para que ela pudesse sentar um dia com Maria, e explicar cada coisa que ela não lembrasse em relação aos momentos que haviam sido registrados e caso também ela não reconhecesse as pessoas.

A memória de Maria havia sido atingida de um modo estranho, parecia que sua mente havia sido programada para esquecer pontos específicos de sua vida, mas sem comprometer o restante das lembranças. E uma desses pontos foi a causa do acidente.

Após  ter trocado de roupa e esticado as cobertas na cama ela foi para o banheiro que era anexo ao seu quarto. Pegou a caneca de xicara de cima do balcão e sentiu que o líquido já estava frio. Se encarou no espelho.

Apesar do medo, sabia que precisava fazer aquilo.

Se só sentir o cheiro do chá havia feito com que uma breve lembrança saltasse dentro de si, talvez ao ingeri-lo ela pudesse ter algo mais concreto.

O gosto de chá em si não era ruim, na verdade se lembrou da sua infância. Porém algo se remexeu dentro dela e a sensação de mal estar voltou. Sentiu uma pressão no ouvido, como se estivesse numa estrada na serra e atmosfera estivesse mudando de lugar.

Houve um instante de silêncio em que nada aconteceu.

Então ouviu um som agourento, que fez com que seus pelos arrepiassem e um desconforto subisse pela espinha, sentiu os braços travarem e não sentia mais a xicara em seus dedos e sim um volante de carro que parecia ter vida própria enquanto rodava pela pista. Seus olhos foram atingidos por uma luz forte e branca que a cegou momentaneamente fazendo seu coração acelerar. Enquanto sentia o chão vindo em direção a seu rosto ela ouviu um som mais assombroso que a buzina do caminhão que anunciava o fim da sua felicidade: a voz de seu pai gritando seu nome pela última vez.


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