Castelobruxo escrita por Vilela


Capítulo 1
Prólogo




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Raira Feitosa acariciou as penas acinzentadas do dorso da coruja, seus olhos perdidos nos tons de verde da floresta lá fora. A ave soltou um pio baixo, consternada, decerto não estava acostumada àquele clima quente. O calor fizera até mesmo com que a diretora abandonasse o quarto e se debruçasse no balaústre da varanda. Pelo menos ali no alto de Castelobruxo ela conseguia sentir uma brisa fresca na pele negra. Mas apesar do desconforto, não era isso que incomodava Raira naquele momento.

            — Ele já deve estar chegando — disse para a coruja, ainda a acariciando.

            Tivera dó do bicho desde o primeiro momento em que o vira chegar ao castelo, dois dias atrás. Além de ter enfrentado o oceano, a coruja provavelmente tinha sido atacada enquanto sobrevoava a floresta, como todo animal forasteiro que se aventurava por ali. Havia algumas aves carnívoras com o dobro do seu tamanho escondidas em ninhos de galhos secos nos telhados do próprio castelo, Raira podia supor que uma delas quase interceptara a carta de ser entregue. No entanto, a coruja sobrevivera, com machucados graves, mas estava viva. Quando a vira, a diretora imediatamente tratou de cuidar dela. Passou unguentos nas feridas e deu a ela de beber, poções e água. Era uma exímia mantedora.

            Após, pudera ler a carta com o devido sossego. Hector Gusmão, há quanto tempo ela não ouvia falar dele... Desde que se conheceram em um terrível inverno em Portugal, muitos anos atrás. E agora, após esses anos de silêncio, ele estava de volta. Dessa vez sob o selo azul marinho de Beauxbatons. Não era um pedido, ele deixava claro que já estava de partida e que chegaria em breve. A coruja era apena uma tentativa de avisá-la, portanto, talvez ele chegasse antes dela.

            Suspirou novamente. Podia jurar que não era por bons motivos que alguém de Beauxbatons estivesse procurando-a logo agora que assumira a direção de Castelobruxo. Por anos escutara Benedita Dourado reclamar dos pedidos mirabolantes e dos favores impossíveis das escolas europeias, quase sempre envolvendo epidemias ou infestações. A última, um surto de gripe anfíbia, só pudera ser solucionado depois que os melhores venenologistas de Castelobruxo se envolveram no caso. Ainda assim, a maioria dessas coisas era resolvidas sem que precisassem se encontrar pessoalmente. A visita de Hector a deixara pensativa por tempo demais.

            O sol se punha atrás de uma imensa árvore a oeste, à direta da varanda de Raira, quando ela escutou três batidas secas na porta do quarto. Abriu a porta para encontrar Ruben parado no corredor. Ele estava com o costumeiro robe bege solto por sobre as roupas marrons simples, e no rosto uma expressão de extremo descontentamento.

            — Ele chegou à Coromândia agora há pouco — disse num tom grave.

            — Obrigada por me avisar — Raira respondeu, não precisou perguntar de quem falavam.

            Deixou o quarto para trás e desceu as escadarias para o térreo, atravessou o grande jardim interno rapidamente e abriu a porta leste do castelo. Viu o limiar da floresta e a as árvores esculpidas que flanqueavam o início do caminho que serpenteava para dentro do mato. Coromândia era a cidade mais próxima de castelo bruxo, com pouco mais de cem mil habitantes; e apesar de ser completamente trouxa, era por lá que algumas pessoas chegavam ao castelo, onde era possível aparatar ou usar a rede de Flu. Ruben chegou em seguida, ficando ao seu lado. Segurava o cabo da varinha por baixo do robe quando perguntou:

            — O que ele vem fazer aqui?

            — Assuntos de Beauxbatons, acredito.

            — Em pleno recesso?

            Raira virou para olhá-lo: — Foi exatamente isso que pensei. Só posso esperar que seja importante o que ele tem a dizer.

            — Os alunos de intercâmbio...

            — Já estão acertados e chegarão em março. Hector não abandonaria o château por algo tão simples. Tampouco se aventuraria no meio da floresta mais perigosa do mundo. Não, Hector tem algo mais importante do que isso para tratar aqui.

            — Que seja.

            — Não precisa ser tão hostil — Raira voltou a encarar a floresta. — Ele não é má pessoa.

            Minutos mais tarde e um homem alto, magro e carregando uma mala imergiu por entre as árvores esculpidas. Ele encarou-as por um momento, depois caminhou com passos largos todo o caminho até o portão leste, não sorria ou parecia amistoso. Ruben apertou o cabo da varinha e Raira sentiu a tensão que ele emanava. Foi por isso que, quando Hector estava suficientemente próximo, abriu um sorriso e foi ao seu encontro.

            — Meu querido amigo! — disse.

         — Raira — ele disse de volta, não mais que um sussurro. Olhou para Ruben ali parado. Depois olhou para cima, para o formato piramidal do castelo e as pedras pesadas muito juntas. — Recebeste minha carta, suponho.

            — Sim, mas não acho que tenha sido uma boa ideia enviá-la. A coruja provavelmente não vai conseguir fazer a viagem de volta, é sorte que ainda esteja viva!

            Hector vestia um pesado casado preto e a calças tão longas que estavam sujas de terra nas barras. Sua testa estava suada e ele respirava com dificuldade. Percebendo que olhavam para seu estado, ele tirou a varinha de um bolso. Um aceno breve fez seu casaco se desabotoar e deslizar pelo corpo feito água, escorrendo pelo braço direito e entrando pela lateral da mala. As barras da calça enrolaram para cima e podia-se jurar que seus sapatos se tornaram mais limpos.

            — É verão — foi tudo o que disse.

            Os três entraram no castelo, deixando a noite cair por completo lá fora. Raira o conduziu direto para o refeitório. Era a primeira vez que Hector estava em Castelobruxo, e certamente ele ficara encantando com a altura do teto abobadado do térreo. Mas foi ao entrar no refeitório que ele ficara mais surpreso, com todas as paredes e portas de vidro e ferro pintado de branco. De dentro dava a impressão de estarem numa imensa estufa. Antes que Ruben entrasse junto a eles, Raira o pediu para que levasse a mala de Hector a um dos dormitórios dos professores. Ele assim o fez, não sem antes lançar um olhar carrancudo para o visitante.

            Os dois sentaram-se em uma das mesas.

            — O que quer para o jantar? — Raira perguntou.

            — O que tiver é bom. Não como desde esta manhã.

            — Muito bem. Nos surpreenda, por favor — Raira disse para a mesa.

            Hector viu uma carranca se formar no meio do tampo da mesa, de olhos puxados e orelhas pontudas. Ela olhou para os dois e abriu a bocarra, os dentes de madeira se separando para dar lugar a um buraco enorme de onde saltaram dois pratos fumegantes de macarrão. De lá também saíram os talheres, uma garrafa de vinho de laranja e duas taças. Depois soltou um arroto baixo que fez aparecer guardanapos e fechou a boca, voltando a desaparecer na madeira. Raira serviu para ela e para Hector a comida e o vinho.

            — Quantos anos faz?

            — Vinte ou mais.

            — Você envelheceu um pouco, não me leve a mal — ela soltou um pequeno sorrisinho enquanto provava o vinho. — Posso ver todas as suas rugas.

            — Digo o mesmo. Da última vez que te vi eras apenas uma mantedora viajante. E agora... diretora de Castelobruxo.

            — E você professor em Beauxbatons, mesmo tendo dito que jamais ensinaria feitiços.

            Hector sorriu.

            — Não foi minha culpa, Madame Maxime é...

            — É persuasiva, eu entendo.

            Começaram a comer. Ficaram em silêncio durante toda a refeição, apenas o barulho do metal na louça enchendo o refeitório quase deserto. Quando terminaram, Hector viu oportunidade para começar.

            — O motivo de minha visita inesperada. Deves estar curiosa, não?

            — Não muito. Fui avisada de que Castelobruxo seria visitado vez ou outra.          — Não foi por assuntos da escola que vim — Hector pousou a taça vazia. — Foi por questões de segurança. Madame Maxime está aterrorizada, e não é a única... em Hogwarts as coisas vão de mal a pior, em todo o mundo bruxos têm se unido. — Hector olhou intensamente para Raira. —  Ele voltou, Raira. Foi confirmado, não eram apenas ilusões do menino Potter. Voldemort está vivo.

            — Eu não tinha dúvidas.

            — Então deves saber com que urgência venho pedir que nos dê auxílio.

            — Entendo o seu temor, meu caro amigo, e sobretudo o de Madame Maxime. Mas não há muito o que posso fazer. Assuntos de segurança são tratados pelo Parlamento Bruxo, não aqui nessa escola.

            — O Parlamento Bruxo! HA! — Hector recostou na cadeira, balançando a cabeça incrédulo. — Eles não moveriam um dedo por nós.

            Raira assentiu.

            — Ainda assim, está fora das minhas mãos.

            — Eu acho que tu não entendes o perigo que Voldemort oferece agora que ressurgiu.

            — Ah, eu entendo sim — Raira levantou-se da cadeira. — Venha comigo.

            Os dois saíram do refeitório juntos e subiram a escada à esquerda. Continuaram subindo escadas e escadinhas, atravessando passagens e por vezes jardins internos. Passaram em diversos corredores mal iluminados e Raira ia abrindo portas trancadas por magia. Até que enfim chegaram à última escada que subia circular para o teto. Ela abriu o alçapão e os dois imergiram para a noite lá fora.

            — Incendio — Raira murmurou. Quatro archotes, um em cada canto do pequeno terraço se acenderam. Hector arfou assim que percebeu onde estava. — Este é o pátio mortal, a quinta estufa da escola.

            O fogo iluminou a parte mais alta de Castelobruxo. No topo de toda a construção, aquele pátio abrigava todo o tipo de planta, dos pequenos vasos com algo maior do que uma folha crescendo à uma árvore de dois metros de altura. Havia inúmeros buracos no chão de onde da terra aparente subiam galhos, arbustos e folhagens. Aqui e ali as plantas se mexiam, soltavam vapor ou murmuravam um uma língua que eles não podiam entender. Havia uma num canto que tinha cada um dos ramos acorrentados e presos ao chão. Raira caminhou para uma das mesas, a mais perto deles, onde muitos vasos estavam dispostos.

            — Essa é a craectas minarium, — disse a diretora apontando para folhas ovais crescendo de uma terra seca do vaso — a erva-dos-sonhos, como dizem. Um toque em uma das folhas e você entra em um sono tão pesado que jamais será capaz de acordar. Um extrato das folhas é capaz de produzir um efeito parecido com a morte, mas pior. Ela é encontrada praticamente em toda Floresta Amazônica e não existe antídoto conhecido. Aquela ali — ela apontou para uma samambaia rasteiras que balançava seus galhos levemente no ar — é a braçadeira, a planta mais mortal descoberta ano passado. Se eu fosse você eu não chegaria tão perto, ela tem a tendência de estrangular qualquer um que tenha pescoço.

            “Essa, uma das minhas preferidas — Raira agachou no chão ao lado de um vaso — produz um elixir tão forte que por muito tempo foi usada até mesmo pelos trouxas como um alucinógeno, até nós apagarmos qualquer traço dessa planta mágica na comunidade deles. Não seria perigosa, não fosse pelo fato dela possuir a qualquer um que tome do seu suco. Já foi possuído por uma planta, Hector? Você não ia gostar de ter ramos e folhas saltando de todos os orifícios de seu corpo...

            — Onde queres chegar com isto? — O homem não parecia nervoso ou amedrontando, mas levemente confuso.

            — Essas plantas mortais não são nem um por cento do que se encontra nessa floresta, meu amigo. — Raira levantou-se e foi até o limiar do pátio. — A verdade é que não sabemos quase nada das plantas que se escondem aqui, nem dos seus efeitos. Isso não levando em conta os animais mágicos, as centenas de espécies que conhecemos e as mais outras tantas que descobrimos todos os anos, às vezes por acidente. Como o morcego chupador de olhos que moram em tocas no chão. Um de nossos professores mais renomados é cego de um olho por tropeçar na floresta. — Ele se juntou a ela no parapeito, ambos encarando a escuridão da floresta. — Há forças, Hector, sombrias e inimagináveis, mais fortes do que nenhum bruxo jamais conseguirá ser, até mesmo Voldemort, que espreitam nas sombras e saem à noite, vagam pelo chão coberto de folhas e ameaçam nossa segurança todos os dias.

            Os dois se encararam.

            — Todos nós temos nossas próprias batalhas para enfrentar — Raira continuou. — Umas mais ou menos importantes aos seus olhos.

            Ele assentiu: — Raira, eu...

            — Você está preocupado e com razão. Mas nós aqui em Castelobruxo não podemos entrar na sua guerra.

            — Voldemort é uma ameaça para todo o mundo bruxo.

            — Eu sei. E eu espero que ele jamais tenha a ideia de tentar instalar suas ideias na América do Sul. Nós não somos bruxos convencionais, nem lidamos com o costumeiro da Europa. Sem ofensas... Agora venha, você vai ter que tomar um antídoto antes que sufoque com o pólen letal daquelas flores assassinas ali no canto.


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Notas finais do capítulo

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