Bells of Notre-Dame escrita por Elvish Song


Capítulo 21
A Loucura do Juiz


Notas iniciais do capítulo

Olááááá! Aqui venho com mais um capítulo para vocês! Queriam saber o que ocorreria depois do encontro entre Esmeralda e Frollo? Aqui está!



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— Ora, ora, cigana... O que faz andando sozinha por aqui? – seu tom era macio e perigoso como o deslizar de uma cobra – Uma mulher sozinha está exposta a muitos perigos.

— Não sou indefesa, meritíssimo – respondeu ela, sem se deixar intimidar, escapando ao toque desagradável; Frollo podia ser uma ameaça quando tinha seus soldados a seu serviço, mas um homem de quase sessenta anos e desacompanhado não poderia de fato machucar a moça. Enquanto não houvesse sinais de militares nas redondezas, poderia lidar sozinha com a situação. Mesmo por que... Que escolha tinha?

— Eu apostaria qualquer coisa nisso – ele juntou os dedos das duas mãos diante do corpo, num gesto que fez a moça estremecer discretamente - Andou se defendendo de alguém, por acaso?

— Não tenho precisado, nos últimos anos. A maioria sabe por um simples olhar que deve ficar longe de mim. – ela tentou se virar e sair de perto dele, mas as mãos do ancião se fecharam em seus braços e a viraram para si, obrigando-a a encará-lo. Havia uma força inesperada naqueles dedos finos!

— Não me dê as costas, cigana!

— POR QUÊ?! – Ela explodiu, furiosa, surpreendendo o sacerdote com tanta altivez e raiva – Por que me persegue deste modo?! O que eu lhe fiz?! Não cometi crime algum... Por que me vigia assim?! Se realmente tivesse provas de que sou uma bruxa, eu já estaria morta, portanto sabemos que não é o caso! Então, seja sincero por uma vez em sua vida miserável: POR QUE ME PERSEGUE?!

Claudius Frollo baixou o rosto e soltou os braços da cigana, o rosto mais jovem do que se podia esperar subitamente tomado por amargor, vergonha e derrota ao responder:

— Amaldiçoo o dia em que entrou em minha vida, mulher... Com sua dança perversa e libidinosa, enfeitiçou meus olhos e os de meu pupilo. Tirou-me meu afilhado – ela não discutiu: o homem não a ouviria, independentemente do que falasse, mas queria ouvir a verdade, por mais que já suspeitasse – condenou minha alma ao Inferno. – ele ergueu seus perturbados e perturbadores olhos castanhos – desde o dia em que dançou no Festival, eu a desejo ardentemente em cada momento de meu dia. – Suas mãos pairaram no ar a alguma distância dela, como se o desejo de tocá-la e o medo de fazê-lo se misturassem. A cigana deu um passo atrás, com ódio nos olhos verdes:

— Isso é asqueroso! – seu rosto era puro asco - Você é asqueroso! Está me perseguindo e acusando de BRUXARIA simplesmente porque não consegue refrear seus desejos perversos? – deu mais um passo atrás – fique longe de mim, velho transviado!

— Esmeralda, não me rejeite! – o tom dele era quase de súplica. Não a chamou de cigana, bruxa ou qualquer outro nome... Apenas Esmeralda. – por favor... Estou sufocando! Por sua vontade ou não, você me hipnotizou, me enfeitiçou! Acha que eu desejava isso? Que eu queria me sentir atraído por uma mulher pagã, cheia de vícios e pecados?! Sempre fui devoto da Igreja, um homem santo! Até você aparecer em minha vida! – ele se agigantou diante dela ao se aproximar – como pode ter despertado algo tão indigno em mim, se não por feitiçaria? Como pôde me corromper desta forma, se não pela mão do Diabo?!

— A indignidade e a corrupção não podem ser impostas, juiz – ela praticamente cuspiu aquelas palavras, resistindo com todas as suas forças ao ensejo de usar o punhal na garganta do velho – estão em nós, e afloram quando permitimos. – ela meneou a cabeça, incrédula – Não percebe o absurdo de suas palavras? Olhe para mim! Sou jovem e bonita, poderia ter o homem que quisesse! Mesmo se eu soubesse como ou desejasse enfeitiçar alguém, por que faria isso com um velho amargo e cruel, que odeia minha gente?! Por que torturaria a mim mesma enfeitiçando alguém tão desprezível?! – ela torceu o rosto em asco e revolta – você me dá nojo. – virou-se e ia partindo, quando a voz dele lhe chegou outra vez:

— Acha que pode fugir para sempre? Que tem algum lugar para correr? – ele tinha o rosto furioso quando ela se voltou para confrontá-lo – o inverno prenderá sua raça aqui até a primavera. Não tem onde se esconder. Aonde quer que vá, eu vou encontra-la.

— E fará o que? – ela abriu os braços, desafiadora – não cometi crime algum. Não pode me prender. Não há qualquer testemunha para me acusar e corroborar sua história absurda!

— Não há? – ele sorriu com crueldade – você não pode fugir para sempre, Esmeralda. Em algum momento cometerá um delito: roubará algo, lerá a sorte no lugar errado, venderá poções... Matará alguém, para se defender. - Algo no olhar dela devia tê-la traído, pois o sorriso de Claudius aumentou – foi você, não é? Você envenenou o Capitão Phoebus.

— Não tem provas de que fui eu, tem? – afastou-se mais um passo – esqueça-me, juiz! Não pode me prender por simplesmente estar nas ruas! – ela decidiu encerrar a conversa e voltar para a Catedral. Mas Frollo deu a cartada final:

— Talvez eu não possa condená-la, Esmeralda. Mas existe alguém com mais crimes do que você. A pessoa que você e eu sabemos ter dado fim à vida do Capitão. – ela estremeceu, em pânico pela sorte de Aaron – sabemos que ele é um assassino e, cedo ou tarde, matará de novo. Não pode evitar, pois a natureza dele. E você não poderá se impedir de assumir a culpa, porque é a sua natureza. Então, cedo ou tarde você estará em minhas mãos... E o que farei com você dependerá inteiramente do que decidirá fazer, agora.

— Condenaria seu afilhado, apenas para me atingir? – ela se horrorizou – você é um monstro!

— É nisso que este maldito e insano desejo está me tornando, cigana... Um monstro em corpo de homem. E só você pode me salvar deste feitiço!

— Então, é minha honra em troca de minha vida, e da de Aaron? – perguntou ela, irônica.

— Não. Não sua honra, pois gente como você não tem nenhuma. Apenas seu corpo.

— Você me dá pena. – ela riu, mais de nervosismo e desprezo do que de divertimento, mas não se permitiu parecer amedrontada ao imprimir um veneno refinado na própria voz – tem ideia do quão patético soa? Está me ameaçando porque eu o rejeito! Isso é... É baixo e vil demais, até mesmo para você! – mais uma vez tentou partir, sentiu as mãos dele segurarem seus cabelos, e reagiu do único modo que podia: desembainhando a faca e pressionando-a contra o rosto de seu agressor, que sorriu de modo doentio:

— Vamos! FAÇA! Dê-me um motivo, Esmeralda! Faça o que seu coração deseja, e me mate! Fira-me! FAÇA! – segurou o pulso da moça e tentou fazê-la cortá-lo, mas ela entendeu de imediato que, se o fizesse, seria sua sentença de aprisionamento e, consequentemente, morte. Sim, morte, pois estava ciente de que o sacerdote não lhe permitiria outro final senão uma morte lenta e dolorosa nas chamas da fogueira. Impossibilitada de reagir, debateu-se para escapar às mãos que apertavam como grilhões e correu; correu para a Catedral, onde subiu as escadas da Torre Sul sem sequer ligar para os que a viram. Seu corpo todo tremia de ódio, raiva e medo, especialmente por ter ouvido as últimas palavras do sacerdote:

— Não há para onde fugir, Esmeralda. Você e seu povo não têm como escapar de mim. Estão presos como ratos numa armadilha! – a última frase ecoaria na mente da jovem por todos os dias que se seguiriam – Você será minha, ou arderá na Terra e no Inferno.

Em sua fuga, não percebeu que o punhal cigano caíra ao chão e fora recolhido pelo juiz.

*

— Esmeralda! – Gringoire escorregou por uma corda até o chão ao ver a cigana subir aos tropeços os degraus da torre, cair ao galgar o último deles e permanecer no chão, encolhida, chorando em soluços que sacudiam seu corpo franzino. O sineiro a abraçou ternamente e a ergueu – calma, calma. Estou aqui, está tudo bem... – ele sentia pontadas de desespero ao ver as lágrimas abundantes escorrerem pelo rosto moreno, e a levantou no colo – venha cá, está tudo bem. Você está a salvo. Vai ficar tudo bem...

— G-Grin... Goire – soluçou ela, seu sotaque espanhol tão acentuado pelas emoções que mal se podia compreender o que dizia – Abrace-me. Por favor, abrace-me – ela se agarrava a ele como uma criança apavorada – estou com tanto medo!

— Calma, Esmeralda – ele não parou para pensar na impropriedade da situação ao se sentar com a menina em seu colo, abraçando-a e embalando-a como se fosse uma criança – estou aqui, ninguém lhe fará mal. – com dedos leves acariciava os cabelos negros, falando baixinho e acalentando-a. Não conhecia muitas músicas que não fossem de adoração, mas escolheu uma cuja melodia lhe parecia calma e apenas cantarolou, sem letra, como sua mãe fazia consigo quando era pequeno e tinha pesadelos.

Pareceu funcionar, pois os soluços da cigana se abrandaram, e ela finalmente parou de chorar. Um pouco constrangida por perder de tal modo o controle, saiu devagar do colo do amigo e murmurou:

— Obrigada, Gringoire... Desculpe-me, mas estava tão... Apavorada!

— Não se desculpe, menina... – ele secou a última lágrima dela com o polegar - Agora, o que aconteceu? O que a deixou tão terrorizada?

Ela se encolheu no banco, abraçada aos próprios joelhos, e contou resumidamente o que acontecera na rua, finalizando então:

— Gringoire – seus olhos verdes encontraram os do amigo – precisamos proteger Aaron.

—Agora estou confuso: Frollo a ameaça, e é a Aaron que precisamos proteger? Compreendo seu altruísmo, mas creio que não percebeu quem está realmente em perigo, aqui.

— Não há salvação para mim, Gringoire... Posso apenas me ocultar e refugiar como tenho feito, rezando para que seja o suficiente para me manter a salvo – o gosto amargo de bile se fez sentir em sua garganta quando o fantasma da sensação de mãos duras arrastando-a para o Palácio da Justiça a acometeu. Céus, que fosse um temor, e não uma premonição! - Mas não posso deixar Aaron ser atingido por minha causa.

— Esmeralda... – Gringoire esfregou a testa com uma das mãos – realmente acha que existe alguma possibilidade de proteger Aaron? Se algo lhe acontecer, não haverá exército forte o bastante para impedi-lo de destruir até mesmo a Bastilha, se fosse necessário.

— Eu sei que ele não se deixaria parar... Mas isso vai mata-lo. – ela engoliu as lágrimas – preciso afastar-me dele, para seu próprio bem.

— Afastar-se dele, garota? – o sineiro meneou a cabeça – ele iria atrás de você. E, se achasse que você o abandonou, tiraria a própria vida.

— O QUÊ?!

— Acho que não compreende o que era a vida dele, antes de conhecê-la: Aaron saiu do inferno e experimentou o paraíso. Você é tudo que o inspira, motiva e alegra. – Ele bateu as mãos nos joelhos – Eu não deveria, mas vou lhe mostrar uma coisa – ele se levantou – precisa subir em minhas costas: não consigo escalar e segurá-la nos braços ao mesmo tempo.

Mesmo um pouco envergonhada, a cigana subiu nas costas do amigo, que começou a subir pelos pilares de madeira do campanário. De olhos bem apertados, para não ver a distância que os separava do chão, ela perguntou:

— Qual é o problema que você e Aaron têm em se manter no chão? Precisam escalar as coisas como esquilos?

— Sim – riu-se o homem loiro – afinal, quanto mais alto, mais longe de outras pessoas.

— Devo considerar uma honra, então, ser transportada longe do chão? – ela tentava brincar, mas ainda se agarrava com medo a ele. Foi um alívio ouvi-lo dizer que poderia descer.

Estavam no alto de uma plataforma de madeira, e a cigana tentou não olhar pela borda, nauseada ao ver o chão tão abaixo de si. Porém, o sineiro pegou sua mão e a puxou para junto de uma parede de pedra, e os olhos cor de grama se arregalaram: a parede se cobria de desenhos e pinturas cujo tema era... Ela! A cigana nas mais diferentes ações, trajes e ângulos, brincando com sua cabra, dormindo, dançando, com expressão zangada, alegre, pensativa... Ela estendeu a mão trêmula e tocou alguns dos papéis.

— Isso... Eu não pensei que...

— Que ele estivesse a tal ponto apaixonado por você? – Gringoire puxou-a para outra seção da parede, onde havia retratos de kampínas em caravana, ciganos montados em belos cavalos, viajando... E uma das carroças era conduzida pelo próprio Aaron, tendo Esmeralda ao seu lado. Céus! – Ele está disposto a tentar uma vida com você, Esmeralda. Ele a ama, total e incondicionalmente; quer deixar para trás tudo o que conhece, porque não suporta a ideia de voltar a viver como o fazia, antes de certa cigana entrar em sua vida. – ele apoiou um braço na parede, com um sorriso sonhador – ele nunca foi tão feliz... Não tire isso dele.

A moça compreendeu o que o sineiro queria dizer, e anuiu. Sentando-se no chão da plataforma, então, perguntou:

— Mas como faremos para protegê-lo? Frollo...

— Menina, Frollo está jogando com você como um gato brinca com um camundongo. – o moço foi direto e sincero – Aaron não é tolo de se deixar pegar, e Frollo sabe disso. Mas sabe que você ama o rapaz de todo o coração, e está jogando com suas emoções para leva-la a se afastar de Aaron, que pode protegê-la.

— Como ele pode me proteger? Tudo o que conseguirá é ser morto, se atacar alguém que tente me prender.

— Ele é seu álibi, Esmeralda! – explicou o seminarista – suponhamos que, em um caso extremo, ele não a conseguisse manter fora do caminho dos guardas, e você acabasse presa: o testemunho dele pode inocentar você. E isso em um caso extremo! Porque o que ele realmente faz é garantir que você não esteja no lugar errado, na hora errada. – ele segurou o rosto de Esmeralda – não entre em pânico. Afastar-se dele, fugir... É exatamente o que Frollo quer que você faça. Porque o medo a levará a cometer um erro. O medo sempre nos deixa vulneráveis, predispostos a atitudes precipitadas. E sozinha... Tem ideia do quão fácil seria forjar uma cena? Apenas ordenar que um soldado a atacasse e, quando se defendesse, você seria presa. Simples assim.

— Mas isso pode acontecer mesmo agora...

— Claudius vai hesitar, enquanto souber que Aaron poderá intervir. Louco ou não, não quer matar o homem a quem viu crescer desde bebê. Não dê a seu perseguidor o que ele quer: não caia neste truque.

A cigana se sentou no chão, mentalmente esgotada: sentia-se uma mosca voando num espaço rodeado por teias de aranha. Tentava não tocar nos fios, mas sentia com toda a firmeza de sua intuição que, cedo ou tarde, acabaria emaranhada nas tramas de Claudius... Uma aranha aguardando sua presa. Para fugir de seu próprio medo, encarou o amigo: era evidente o quanto ele se preocupava com ela e, mais ainda, com Aaron. O homem fitava longamente cada desenho com ar sonhador, suspirando, como se imaginasse algo maravilhoso e distante. Finalmente, a cigana perguntou:

— Desde quando, Gringoire?

— Desde quando o quê? – ele não entendeu de imediato o que ela perguntava.

— Desde quando está apaixonado por Aaron? – ela perguntou aquilo sem tom de acusação ou desprezo; perguntava como se indagasse quem era sua mãe, ou algo do tipo.

Gringoire ficou tenso, os músculos fortemente contraídos, a postura mais ereta que de costume, mandíbulas travadas. Sua primeira intenção foi negar, mas, ao se virar para a moça e fitar os olhos gentis que podiam ver profundamente em sua alma, não conseguiu se defender; os ombros penderam, assim como a cabeça. Com vergonha ele enfim admitiu:

— Anos. Desde que me tornei sineiro, e ele me ensinou o truque da cera. – ele fitou a jovem com surpresa – não parece me julgar por isso.

— Não seria melhor do que as pessoas que me julgam pela minha cor e raça, se o julgasse por amar de um modo que um mundo hipócrita declarou inadequado. Você o ama. É só o que importa, não é?

— Você é a primeira pessoa a não abominar algo tão... Impuro. – o loiro parecia verdadeiramente envergonhado, e deu um sorriso constrangido – creio que agora já sabe por que me isolo do mundo. Não seria bom, se descobrissem a respeito, pois eu seria torturado e executado ou, no mínimo, trancafiado para o resto da vida.

— Olhe só! Somos iguais! – riu a moça, levantando-se e indo se sentar ao lado do amigo, suas mãos morenas e pequenas acariciando o rosto cor de marfim do sineiro – não tenha vergonha, Gringoire. Amor é um sentimento nobre.

— Mas nem mesmo Aaron me aceitaria sequer como amigo, se soubesse, aceitaria? – ele sorriu e fitou os desenhos, aquarelas e pinturas – você foi a melhor coisa que aconteceu em nossas vidas, garota.

— Por quê?! – perguntou ela, confusa. Como o homem apaixonado por seu amante podia considera-la uma bênção, em vez de um obstáculo?

— Porque amo Aaron o bastante para não ser egoísta. Você o salvou de si mesmo, de um jeito que eu jamais poderia fazer; tudo o que quero é vê-lo feliz, mesmo e talvez principalmente se isso significar afastá-lo desta cidade. – ele segurou a mão da jovem – obrigado, Esmeralda. Por salvá-lo, por amá-lo, por lhe dar esperanças... E também por aceitar o que sou.

— Você é meu amigo. – respondeu a menina, beijando o rosto do sineiro – e ama Aaron. Temos mais coisas em comum do que pensávamos, afinal. – e com um suspiro  - mas entendo seu medo. Sei o que aguarda qualquer um que se atreva a ser diferente e... Eu juro que não contarei a Aaron, ou qualquer outra pessoa. Seu segredo está a salvo.

— Obrigado, menina. – o sineiro a abraçou carinhosamente – você é uma joia rara, como seu nome diz. – ele segurou seu rosto com as mãos – não tenha medo: Aaron e eu vamos protegê-la tanto quanto seu próprio povo o fará.

— E eu tomarei mais cuidado. Tenho sido leviana e irresponsável, crendo que posso me safar sempre... Mas agora trata-se de proteger a todo vocês. – ela esfregou o rosto – prometa não contar a Aaron o que eu lhe contei.

— Eu pareço querer causar um surto de raiva que o fará tomar as atitudes mais estúpidas e suicidas possíveis? – perguntou Gringoire, com um sorriso. – Bem, vamos descer.

Chegaram ao chão coma cigana de olhos ainda cerrado fortemente, soltando um suspiro de alívio ao sentir o chão sob seus pés; o sineiro se voltou para ela e perguntou:

— E então?

— E então o quê?

— Viu que ele sonha com uma vida ao seu lado. Com o seu povo. O que pensa disso?

— O que eu penso disso? – ele estava esfuziante, a despeito de todos os motivos para estar apavorada, e pulou no pescoço de Gringoire – você é o melhor amigo que poderia existir! Achei que ele nunca... Que não iria... Ah, Mãe Terra! Pode haver um futuro para nós! Obrigada, Gringoire, obrigada!

— vejo que o segredo já não é secreto. – a voz de Aaron soou divertida, enquanto galgava os últimos lances de escada – pelo que ouvi, já descobriu sobre meus planos de tentar ganhar a confiança de seu clã e, talvez um dia... – ele sorriu quando sua menina correu para ele e o abraçou com força, sussurrando:

— Eu te amo, meu lindo cigano! – ia beijá-lo nos lábios, mas preferiu não o fazer na frente de Gringoire, depositando um beijo no rosto de seu amado.

— cigano? – riu-se ele. – não sou um.

— quem sabe? Talvez seja, e nem faça ideia disso – sorriu ela, misteriosa. – com certeza será um, quando nos casarmos!

O Gajô sorriu, meneando a cabeça, e perguntou ao amigo sineiro:

— o que estavam fazendo, para que revelasse meus segredos?

— tentando enfiar um pouco de juízo na cabeça dessa menina, que teve o bom-senso de voltar e evitar os guardas que patrulhavam a entrada para os túneis. – Aaron desconfiou do motivo, mas não o contradiria. – Bem, agora, se me dão licença, vou para meu quarto: tenho livros a terminar, e uma noite de sono pela frente. Divirtam-se com este bizarro e inusitado pedido de casamento – ele sorriu e abraçou seus amigos, antes de ir para seus aposentos. Sua felicidade por ambos era genuína: sabia que seu amor por Aaron não era apenas proibido, como perigoso para o alvo de seu sentimento. Apesar de todas as diferenças culturais e da ameaça de Frollo, Esmeralda era uma caminho mais seguro e feliz para o artista, então, o inteiro ficava sinceramente feliz pelo modo como as coisas se haviam desenrolado.

Enquanto Gringoire fora cuidar de seus livros, Aaron continuou a ensinar Esmeralda a ler; ela, em retribuição, ensinava-lhe as cantigas de seu povo e a falar o Romani, assim como o espanhol. E o francês poderia passar toda uma noite apenas ouvindo a encantadora voz de sua amada...

Finalmente, já um pouco tarde, foram dormir nos aposento do organista, felizes e, ao menos naquele momento, sem lembrar da guerra travada nas ruas. Para ambos havia apenas seu amor, mas nem mesmo suspeitavam que proporcional a sua alegria era a obsessão e as trevas na alma de outra pessoa, não muito distante dali...

*

Sentado de frente para a lareira, Claudius Frollo sentia as chamas do inferno arderem em seu corpo ao se lembrar do modo como ficara próximo de Esmeralda, do calor do corpo dela quando a empurrara contra a parede... Lembrava-se também do desprezo e asco nos olhos verdes, e agora dois pecados mortais – Ira e Luxúria – ardiam dentro de si. Aquele demônio o perseguia, piorava mais e mais as trevas que surgiam em seu interior...

Revirando nos dedos o punhal cigano que ela deixara cair em sua fuga, ele fitava as chamas em desespero: orar já se mostrara completamente inútil, então começava a suspeitar que só haveria uma forma de se livrar: aniquilar o mal pela raíz. Destruir Esmeralda completamente para se livrar afinal de sua influência perniciosa e retornar ao homem que fora, até o fatídico dia em que a vira dançar.

Exausto e atormentado, já nem mesmo conseguia pensar nas pilhas de relatórios que chegavam a sua mesa acerca dos assassiantos contínuos nas ruas, pois sua causa era bem clara, na mente do juiz: era a cigana. Ela começara tudo aquilo, causara o caos entre a lais à qual pertencia e a gentalha das ruas francesas... Tudo por culpa dela. Não apenas sua mente, mas sua cidade ameaçada de ruir por causa da maligna feiticeira. Finalmente, deu voz a seu desespero numa canção grave:

Beata Maria, (beata Maria)

Mon cœur a bien plus de droiture, (Meu coração tem mais retidão)

Qu'une commune vulgaire foule de traîne-misère (Que um comum tolo vulgar e mendicante)

Mais pourquoi, Maria, quand elle danse l'insolente, (Mas por que, Maria, quando ela dança, a insolente)

Ses yeux de feu m'embrasent, et me hantent (Seus olhos de chamas me abraçam e me assombram?)

Quelle brûlure, quelle torture, (que ardor, que tortura)

Les flammes de sa chevelure, (as flamas de seus cabelos)

Dévorent mon corps d'obscènes flétrissures (devoram meu corpo em obsceno definhar)

Infernale, bacchanale (infernal bacante)

L'Enfer noircit ma chair, (o Inferno queima minha carne!)

Du pêché, de désir, (de pecado, de desejo)

Le Ciel doit me punir (O Céu deve me punir!)

Est-ce ma faute ? Pourquoi ce blâme ? (É minha culpa? Por quê condenar?)

C'est cette sorcière gitane, (É esta cigana bruxa,)

Par qui mon cœur s'enflamme (Por quem meu coração se inflama)

Est-ce ma faute, si notre Père, (É minha culpa, se nosso Pai)

A fait les hommes moins (Fez os homens menos)

puissants que Lucifer ! (fortes do que Lúcifer!)

Par pitié, Maria, (Por piedade, Maria)

Protège-moi du mauvais sort, (Proteja-me do vil feitiço)

De cette fleur du mal et de son corps (Desta flor do mal e de seu corpo)

Détruis Esméralda, (Destrua Esmeralda)

Qu'un rideau de feu soit son linceul ! (Que uma cortina de fogo seja sua mortalha!)

Ou faites qu'elle soit à moi et à moi seul ! (Ou faça com que ela seja minha, e minha apenas)

Infernale, bacchanale, diabolique Sorcière (Infernal bacante, diabólica feiticeira)

Sois mienne, ma passion te mènera en Enfer (Seja minha, minha paixão a levará ao Inferno!

Seigneur, pitié pour ele (Senhor, piedade dela)

Seigneur, pitié pour moi (Senhor, piedade de mim)

Fais qu'elle s'offre à moi, (Faça-a oferecer-se a mim)

Ou elle mourra (Ou ela morrerá!)

Na mente do juiz, um plano se formava. Envolveria mais derramamento de sangue, e talvez precisasse fazer algo que nunca fizera: forjar evidências. Mas Deus haveria de perdoá-lo, uma vez que livrasse o mundo daquela filha do mal, cria das profundezas que viera à Terra disseminar o caos e a vilania. Fitou o punhal cigano e sorriu maliciosamente: sem perceber, Esmeralda lhe dera tudo de que precisava para montar a pira na qual a bruxa haveria de queimar. Bastava um pouco de paciência, e logo tudo voltaria ao que costumava ser.


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Notas finais do capítulo

E então? Mereço reviews?