Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 17
As ordens que levava não cumpri




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A canoa oscilava, como se desconhecesse o caminho da corrente do rio.

Anna vacilava no rumo a tomar, numa vibração que se traduzia num remo que tremia no contacto com a água.

A melhor forma de esconder uma árvore é no meio de uma floresta. A espia inglesa queria desaparecer no leito das margens verdes, se obliterar num nada reconhecível à primeira impressão.           

A noite a tinha levado para longe, mas a fazia perdida perante o rumo procurado. Ela não queria ser levada, mas sim sentir chão firme debaixo dos pés.

Sem raciocinar, Anna encostou a ligeira embarcação a uma das margens e procurou um caminho marcado.

Esquerda? Direita? Escolher entre um de dois sentidos possíveis não devia ser uma tarefa tão complicada.

Quantas escolhas existem num único dia? Pequenas, gigantes, insignificantes ou capazes de alterar uma vida; são incontáveis.

Ela estava limitada a um único desejo apertado.

Salvar. Anna queria ser origem de vida e não de morte.

O senso de moralidade apertada da britânica lhe ditava que se entregar voluntariamente a Pedro seria a única forma de terminar uma perseguição que iria causar fatalidades incomportáveis, mas ela tinha também uma boa razão para não o fazer.

Com o passar das horas, os cantares dos pássaros se repetiam e as árvores começavam a parecer todas iguais. A loira teve a consciência de que estava andando em círculos.

Uma linha reta a atravessou, antecipada pelo som de um tropel que lhe atropelava os sentidos.

Anna fincou os pés no chão e levantou o queixo. Uma árvore morre de pé.

O montador cansado quase caiu do cavalo, com a pressa em desmontar, carregando o peso da incredulidade face à falta de confiança da inglesa.

Em Ferrão, as narinas dilatadas competiam fortemente com as do animal de quatro patas, bem como a respiração resfolegante, profunda nos dois seres vivos.

O pirata recordava ainda na sua frente o susto de voltar a casa para encontrar um curto bilhete de despedida que usava como peso uma solitária medalha de São Dimas.

Nesse momento, Piatã quase se transformou numa ave depenada atravessando a aldeia pelo ar quando os punhos cerrados do seu Capitão procuraram um alvo fácil em quem descarregar a sua fúria.

Independentemente de se encontrarem numa situação de desvantagem perene perante a vida, nada justificava uma fuga precipitada a solo.

Tiago ficou parado diante da inglesa, os dois braços caídos do lado do tronco e a expressão desfigurada pelo tremor da mandíbula retesada que deixava escapar recriminações mastigadas:

— O que é que te fez pensar que a sua luta não era a minha também? O que é que te fez me abandonar e desistir de nós?

Os círculos escuros em volta dos olhos dele ecoavam nos dela, confissões físicas das horas longas de espera desesperada. Também Anna era toda emoção e falta de racionalidade:

— Como é que me posso sentir? Destruí tudo o que o meu pai lutou para manter. Quase contribuí para a morte de quem amo. Já não tenho para onde ir.

Ele cedeu, escorrendo o sal interno em lágrimas cadentes. Não era possível que ela se tivesse escondido num local tão negro que não conseguisse agarrar a mão que ele lhe estendia:

— Tudo tem solução. Juntos, vamos encontrar uma.

Ela abanou a cabeça em descrédito. Qualquer via de fuga seria apenas temporária:

— Isso nunca vai acabar. Vão estar sempre surgindo novos inimigos. Agora, eu sei. Tanto sacrifício, tanta morte… e tudo em vão. E a minha pobre Leopoldina envolvida nisso. O que vai ser dela e das crianças, Tiago?

A vida replicava a crueza de uma selva de pedra. Ela tinha acumulado bem mais do que um único pecado capital no seu passado. Anna se recusava a somar outra vítima à pilha funerária:

— Eu vou resolver o problema que criei.

— Sozinha?

Olhos nos olhos com Tiago, a inglesa engoliu a vibração interna que se manifestava à flor da pele num frémito agradável e sorriu. A solidão não a alarmava porque agora lhe parecia impossível:

 – Quem disse que eu estava sozinha?

Ferrão ficou diminuído a olhos apertados pela incompreensão.

Inquieto, ele olhou em volta, antes de a voltar a encarar com a esperança de uma notícia feliz.

Ela o puxou pela mão, a encostando com força contra a própria barriga, o que confirmou as suspeitas de um futuro pai.

Anna já não seria o ponto final dos Millman. Dentro dela crescia forte o capítulo seguinte daquela saga familiar, ou, talvez, o primeiro capítulo de uma nova história.

Ferrão sorriu, explodindo com a boa-nova que transformava aquela hora em feliz. Já não esperava da vida a ventura de ter aquele filho desejado para chamar de seu.

Se, por Anna, ele estava preparado para enfrentar três impérios ou até mesmo o mundo inteiro, aquele anúncio inesperado o fez esquecer tudo o resto e rodá-la nos braços, gargalhando em ondas sonoras que fizeram mexer as folhas das mais altas copas de árvores.

A loira o puxou de novo à terra, fazendo força nos ombros largos do pirata para que ele a pousasse, numa censura pela alegria desmesurada:

— O mundo desabando nas nossas cabeças e você fica rindo like an idiot!

Ele ignorou deliberadamente o comentário. Nem que lhe anunciassem naquele preciso momento que teria que lutar sozinho contra todo um exército, deixaria de perder aquela exultação. Finalmente, tinha um motivo para viver que suplantava todos os outros:

— Eu vou ser pai!

Anna segurou com as duas mãos na face do pirata ladrão. Ferrão não parecia entender as consequências de a manter junto dele e dos seus:

My love, Pedro não vai desistir de me procurar. Ele vai acabar achando a aldeia e destruindo tudo o que você construiu. Você vai acabar me culpando por isso e com razão.

Ele desmentiu esse futuro com gestos e com manifesta certeza da promessa:

— Nunca!

Para a antiga espia, a força do querer não bastava. Estava limitada nas possibilidades de escolha.

 Não se podia entregar para ser julgada por Pedro para preservar o filho e não podia pedir ajuda à maior parte da sua rede de contatos, pois eles seriam fiéis ao Conde que ela tinha traído. Desaparecer para emergir bem longe era uma das poucas opções a tomar.

Com o carinho que lhe era possível manifestar sem ceder ao desejo de ficar, ela tentou a despedida:

— Tente entender, Captain. Tenho que me afastar enquanto é tempo.

— E desaparecer no mundo com um filho meu na barriga vai resolver alguma coisa?

Como uma moeda rodando num movimento de rotação repetida em torno de um eixo, onde ela via os problemas, ele encontrava soluções:

— Algures por esse Brasil existe uma gruta escondida cheia de ouro e pedras preciosas e um barco carregado de gente que nos vai ajudar. Essa criança e a mãe dela não vão passar necessidade, mas a gente tem que achar o padre Olinto o quanto antes.

Anna ficou desorientada, não só pela recusa em a deixar partir, mas também pelo comportamento de Ferrão. Ele a fazia chamar por Deus muitas vezes, mas, pelas suas ações, ela nunca teria achado que Tiago era assim tão católico:

— Para que é que você quer um padre?

Ele ficou satisfeito ao constatar que a mudança repentina no rumo da conversa a fazia relaxar, comentando em tom zombeteiro:

— Ficou achando que eu ia ser pai solteiro? Você me levou para a cama e me fez promessas. Agora vai ter que casar e eu vou passar a ser o Mister Millman. Exijo um anel no meu dedo.

Ela não conteve o riso. Com aquela declaração tosca, Tiago selava um destino a dois. Seriam o par de fugitivos mais procurados por vários impérios, mas não se separariam:

— Isso não funciona assim, seu tonto.

Ferrão a segurou com força contra ele. Nem que tivesse que a amarrar a ele, a deixaria ir embora:

— O mundo funciona como a gente quiser que funcione, Anna. É por isso que lutamos. Por uma vida de liberdade.

Ela compreendeu que já não teria forças para fugir de outros e de si mesma:

— E se conseguirmos vencer, você vai deixar de ser pirata e vai passar a ser what: pai?

— E marido, se você me deixar. Mas, acima de tudo, vou finalmente ser feliz.

Tiago antecipava a realização do sonho simples de ter uma família e apertou o abraço, pressionando abdómen contra abdómen. No centro estaria sempre o filho, protegido pelos dois.

Quando a brisa passou, empurrou para dentro da inglesa o que Ferrão lhe sussurrou ao ouvido:

— Tem muito mais gente que vai lutar do seu lado do que aquilo que você pensa, Anna Millman.

Pela primeira vez em dias, ela fechou os olhos, pronta para aceitar a ajuda oferecida e arriscar a vida de quem lhe era caro num amanhã com desfecho desconhecido.

Mais tranquilo, o Capitão libertou a Marquesa de carne e osso e puxou o cavalo pelo freio, esticando os braços para a incentivar a montar:

 – Vamos para casa?

Ela ficou parada, os fios loiros de cabelo levantando voo, única manifestação de movimento no corpo congelado e expressão reflexiva.

Depois do que lhe pareceu muito tempo, Anna abanou a cabeça em tom de negação, virando o quadrúpede no sentido contrário.

Pensar no sentido da unidade em tempos de crise lhe tinha provocado uma epifania interna e o atrevimento de a tentar colocar em prática:

— O único caminho para a liberdade é a verdade.


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Notas finais do capítulo

Mrs Song acertou na mouche. Não deve existir maior clichê do que o famoso…”Tô grávida!”, mas eu estava devendo uma cria aos leitores desde há algum tempo. No próximo capítulo: Anna Millman vai salvar o império brasileiro porque…óbvio ;). Beijo para todos!



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