Admirável Novo Mundo escrita por Joana Guerra


Capítulo 16
Só do Preste João não vi sinais


Notas iniciais do capítulo

Muito obrigada a MalucaPorHumbelle por ter favoritado! Muito obrigada também pelos comentários! Por vezes, penso que não o reforço o suficiente, mas eles são muito importantes para mim e para o seguimento da história :).



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Ferrão abriu um olho apertado pelo sono, num momento da madrugada morna suspensa no ar, e se soergueu apoiado no cotovelo, elevando ligeiramente o corpo para que sobrevoasse o da sua sempre presente companhia.

Na única hora do silêncio, ele gostava daqueles momentos contemplativos solitários.

Fazia pouco menos de dois meses que Tiago estava completamente recuperado do suave veneno, mas nem ele, nem Anna tinham pressa em partir. Finalmente, podiam fazer uso do seu tempo conforme lhes aprouvesse.

Na altura em que o dia ainda não era luz, ele esticava o seu pescoço, fascinado com a forma como o peito da inglesa subia e descia sem esforço enquanto dormia profundamente e com os sons do ar entrando e saindo pela sua boca de rosa florescida entreaberta.

Ele se inclinou ligeiramente, diminuindo o espaço ao mínimo indispensável, movendo o corpo da loira como se ela fosse uma boneca articulada.

 Ferrão sabia que Anna gostava de sentir o calor do bafo de uma respiração pesada, que a tocava num compasso sincrónico na pele sensível do pescoço, e isso o fez sorrir.

No jovem homem, o estado de felicidade lhe trazia o arrepio do medo de perder o instante.

Tiago aproveitava cada dia como se fosse único, porque, de fato, o tempo era como um vaso de barro construído sem molde, impossível de ser replicado, mas suficientemente frágil para se quebrar inevitavelmente após pouco tempo de uso.

Que Anna nunca viesse a saber daqueles pensamentos, porque não o deixaria esquecer aqueles acessos de sentimentalismo louco, nem de os esfregar com frequência e intensidade na ponta do seu nariz.

Tiago deixou escorregar o braço e se encaixou novamente contra o pequeno corpo de pele tépida, deitado de lado, e o ultrapassou com a mão, abrindo os dedos para enlaçar a mão britânica, ainda que Anna não desse mostras de entender tanta movimentação em seu redor.

Nos últimos dias, ele a vinha sentindo com uma docilidade exagerada que não lhe era característica, como se tivesse um segredo no olhar e só estivesse à espera que ele o desvendasse.

Ele trincou o lábio inferior com força para combater a vontade urgente de a acordar com beijos. Aquela seria uma guerra que ele perderia sem reclamar, mas ainda era cedo e ele teve pena de a fazer despertar.

Teria muitas outras oportunidades para iniciar uma batalha amorosa da qual sairia, sem sombra de dúvida, vitorioso.

Colados como uma só entidade pelo calor que emanava da cama, ele esqueceu tudo o resto que era e se deixou adormecer novamente.

Antes que a noite cedesse à existência do dia, Anna e Ferrão se sentiram despertados por outras mãos que não as deles, extremidades que levaram um dedo aos lábios a pedir silêncio e os puxaram para fora da cama.

Entorpecidos, eles acordaram por fases enquanto seguiam tia Idalina pelo percurso familiar até onde floresciam pétalas brancas fertilizadas pelos cantos celestes.

Ferrão se deteve um momento para escolher o espécimen perfeito, que cortou pelo pé, sendo, de todos, o que mais graça encontrou no pequeno gesto.

Devagar, ele colocou a flor por detrás da orelha da inglesa, explicando à tia a gentileza aplicada com um sorriso:

— É a favorita da minha senhora.

Anna riu enquanto esfregava os olhos para espantar o resto de sono que a acossava, mas ainda não tinha compreendido o motivo para aquela incursão matutina.

Idalina os posicionou frente a frente e tocou nos braços que se levantaram em resposta.

Anna e Tiago pressionavam as palmas das mãos levantadas ao de leve, esperando novas indicações.

As dele, maiores, abarcavam e sobravam em torno das dela. As da inglesa, ligeiramente ásperas pelas tarefas diárias que partilhava com os restantes habitantes da aldeia, se friccionavam de uma forma agradável contra as dele.

Tímido, o sol dava um ar da sua graça antes de impor a sua majestade. Idalina estendeu o mesmo colar de sementes que abraçava os dois apaixonados e lhes entregou uma taça de vinho, dando a indicação de que a deviam partilhar.

Eles aquiesceram, envoltos numa tradição que era de todos e de nenhum, porque tinha nascido da mescla e da junção entre a história de muitos.

A Tia recordava vocábulos desconhecidos, cânticos antigos, palavras de criança, ensinamentos de mulher adulta e preces para o futuro, num tom aprazível que quase os hipnotizou.

Eles se encaravam, se viam, os seus olhos falando de votos inalteráveis, as almas se entregando aos poucos, se elevando à medida que o sol também subia no céu.

A distração da atenção exagerada os tornou cegos para o desaparecimento insonoro de tia Idalina e dos paramentos daquele altar improvisado, do qual já não havia mais rastro.

Ferrão tomou a iniciativa de movimento, os rodando até encontrar um ser sólido que os amparasse, e Anna se sentiu agradavelmente encurralada entre dois troncos: o estreito de uma jovem árvore e o largo do pirata.

A fricção entre seres vivos e seres dotados da capacidade de marcha atingiu um limbo, enquanto duas bocas abertas permaneciam na mesma posição, esperando saber qual dos dois seria o primeiro a ceder à tentação e à admissão de derrota.

Mexendo na gola da camisa do pirata, Anna conhecia a regra do jogo e estava decidida a vencer, se insinuando ao se inclinar perigosamente sobre uma boca faminta:

— Isso foi um casamento e eu nem percebi? É suposto saltarmos diretamente para a lua-de-mel?

Ele riu, com uma vibração de tórax que ecoou agradavelmente no da loira, explicando o contexto da cerimónia íntima:  

— Não. Isso foi apenas uma bênção para o nosso futuro. O casamento vem depois.

Sem a oportunidade de pedir a padre Olinto para beijar a noiva, Ferrão voluntariamente perdeu o jogo de provocações e agarrou a futura esposa.

 Se fosse anatomicamente possível engolir Anna, a inglesa não teria hipótese contra o vigor com que era tocada.

Tiago ironizava a sua boa sorte, virando o jogo a seu favor:

— Vai ter que agradecer, todos os dias, a sorte de me ter encontrado, Marquesa. Vai ter que agradecer pelo resto da sua vida.

Ela revidou, mordiscando a língua que ele retraiu e rindo enquanto o abraçava:

— Você se acha uma fina estampa, mas está mais para ilustração cómica, Captain.

Anna correu para longe, certa de que Ferrão seguiria atrás dela e a apanharia de novo, nem que ela tivesse que diminuir a velocidade para o auxiliar nesse objetivo.

Ele o fez e rodou com o corpo da loira pelo ar, como se fossem crianças que desconhecessem o conceito de gravidade.

Ferrão experimentava um estado pleno, imbuído de certezas. Se as sentia todos os dias, tinha também a necessidade de as extravasar antes que elas se acumulassem inutilmente dentro de um coração feliz, ainda que elas nunca viessem a perder a validade:

— Eu te amo muito, Anna Christine Millman.

— Não mais do que eu te amo, Tiago Ferrão.

Ela quebrava o que lhe tinham ensinado e as palavras deixavam de ser escolhidas a dedo para que obtivessem uma determinada reação na procura da informação.

Miss Millman deixava o peso do passado de espionagem para trás, se sentindo suficientemente completa para deixar mente e corpo voarem com transparência.

No seu novo mundo, aproveitava o tempo oferecido para dar asas às vontades tranquilas que lhe tinham sido negadas.

Em paz, ela lia a vasta coleção de livros e de ensinamentos de padre Olinto, escrevia um diário que se enchia de diferentes impressões e pintava aquarelas do Brasil, numa versão diversamente colorida do país. Estava inspirada.

Tiago tinha também ideias originais quando saiu sozinho da aldeia carregando arco, flechas e a promessa de um jantar especial.

Quando o latido de cães denunciou a chegada de um grupo de homens, Anna brincava com as crianças da povoação e lhes ensinava pequenas palavras em inglês.

Os adultos encarregues de guardar o perímetro regressavam acompanhados por um outro, um habitante ausente fazia muito tempo.

Piatã se esqueceu de demonstrar a sua saudade quando Anna correu até ele. Fazia meses desde a última vez que se tinham visto.

A expressão séria do índio era encarada por todos como um traço da sua normalidade, mas, daquela vez, a apreensão e senso de urgência com que ele encarou a inglesa a fizeram tremer de frio.

— Onde está Tiago?

A inquirição angustiada do braço direito de Ferrão a assustou na hora de responder:

— Foi caçar, mas volta em poucas horas.

Piatã não podia perder tempo precioso e a agarrou pelo braço, ignorando quem queria saber de notícias atuais do mundo em redor, a puxando até ficarem fora da vista de olhos humanos.

— O que é que aconteceu?

Ele ignorou por momentos a questão da inglesa e organizou pensamentos. Tinha muito para contar e pouco para decidir:

—Teu Pedro cortou os laços com o pai. Se proclamou Imperador abençoado pelas águas do Ipiranga. O Brasil não é mais terra de Portugal e tudo virou de cabeça para baixo.

Ela ficou feliz. Pedro e Leopoldina teriam que ultrapassar muitos desafios, mas não teria escolhido melhor solução para o futuro do país que era agora o seu.

Piatã lhe desfez o sorriso dos lábios que desmaiaram e desanimaram com notícias pesadas:

— Tem mais. Faz semanas, apanharam Charles Johnson e sabem que ele sempre foi fiel aos ingleses e ao ouro com que lhe pagavam. Prenderam o maldito e ele foi torturado até cuspir a verdade. Ele te denunciou, Anna. Pedro não vai desistir até te capturar!

O índio a encurralou. Não podia sair dali com meias verdades, ou com falsas esperanças. Não, quando tinha uma quase certeza sobre a dupla identidade de quem dera início aos acontecimentos que iriam comprometer a segurança de toda a aldeia:

— A acusação contra Johnson chegou através de uma carta anónima que apareceu nas mãos de Leopoldina. Foi você, Anna!

Ela confessou o que já era óbvio, aceitando as implicações que iriam surgir na sua própria vida:

— Eu sabia do risco que estava correndo, mas não podia arriscar que conseguissem chegar perto de Pedro. Ele ia acabar morto.

Piatã conteve um resmungo que lhe ficou aprisionado no peito. A inglesa ainda não tinha compreendido que, independentemente da mudança de quem envergaria o título de Imperador, ela não seria a única a pagar pela traição à Coroa.

Com o coração pesado, o índio suspirou. A ocasião pedia um sacrifício que não podia ser escolhido por ele:

— Tem muitos soldados vindo nessa direção. Eles vão revirar tudo até te levarem de volta para o Rio! Olha em volta. Eles vão encontrar a todos nós muito antes de conseguirem chegar perto de você.

Anna pagava o preço por achar que podia ter êxito como senhora do destino.

Desde pequena, o pai a tinha alertado para o perigo dos boatos propagados. Um dos seus antepassados longínquos era um Cruzado inglês que, regressado a casa da Terra Santa, tinha registado e distribuído a história de um poderoso Imperador de uma terra mágica nunca alcançada.

A primeira lenda do reino do Preste João dava conta da existência de um país de paz e de harmonia onde a pobreza, a miséria e o sofrimento eram apenas memórias antigas. A inclusão do relato sobre a presença de bestas fantásticas e tesouros incalculáveis tinha sido feita em cima da história original.

Muitas gerações se tinham iludido na busca de um mito de riqueza inatingível, mas Anna, sem o pretender, tinha tropeçado numa realidade que ultrapassava em muito os limites da ficção.

Não eram unicórnios alados ou o Eldorado que seriam colocados em risco pela confissão velada da inglesa. A ameaça pesava sobre seres humanos inocentes.

Ela estava consciente de que iria colocar toda aquela gente em perigo se continuasse ali, mas nem podia permanecer, nem podia pedir a Tiago que fosse embora com ela.

O tempo se esgotava, mas Piatã esperava que a inglesa se conseguisse decidir em sã consciência:

— Tem mais uma coisa, Anna. Pedro mandou enforcar Johnson. Você não pode esperar clemência.

Ela deu mostras de compreender o que ele queria dizer e abanou afirmativamente a cabeça, deixando que a boca contorcida fosse o recetáculo das lágrimas que escorriam:

— Sei que não posso esperar o que não mereço.

No momento em que Piatã partiu em busca de Tiago, Anna correu sem destino, até deixar de sentir forças e se deixar parar bruscamente, ofegante pelo esforço físico e com a visão embaciada pelas gotas de choro que fugiam.

Nesse instante, tudo em volta começou a rodar em torno dela e Anna sentiu uma ânsia de vómito que lhe subia pelo estômago, trepava pela garganta e já lhe tocava nas cordas vocais fechadas antes de a fazer tonta.

Um barulho de folhagem sendo movida contra a vontade da Natureza fez com que a loira se voltasse na direção do ruído, mas nada havia, fora uma conversa, a temer.

A tia que também a tinha adotado como sobrinha se aproximou silenciosamente de Miss Millman e, vendo uma face angustiada, a examinou, colocando uma mão que lhe apoiou a lateral do rosto para melhor conseguir observar a esclera em torno das pupilas dilatadas e lhe adivinhar os pensamentos. Idalina a conseguia ver por dentro.

O contato do carinho familiar confortou a ambas e as fez sorrir momentaneamente.

Mais uma vez, Anna Millman sentia as dores de uma traição consciente ecoando no seu interior, mas, compreensiva, a matriarca da tribo lhe colocou apenas uma única questão:

— Tiago sabe?

Abanando negativamente a cabeça, a antiga espia continuou chorando e abraçou a mulher, escondendo a face no ombro que a amparou.


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Notas finais do capítulo

Coragem. A história vai terminar no 19º capítulo :). Espero que o próximo capítulo seja curto. Espero conseguir escrevê-lo na próxima semana. Espero muito da vida kkk. Beijo para todos!



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