Ninguém e todo mundo escrita por clarissa


Capítulo 5
Pai


Notas iniciais do capítulo

Doeu



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   Como eu posso querer morar em outro estado se não sei cozinhar? Como posso querer morar sozinha se não sou organizada? Como posso querer a independência se não sou boa o suficiente?

    Mas uma pergunta que não sai da minha cabeça, pai, é a seguinte: como você pode ser pai (não só uma, mas duas vezes) se você não sabe o suficiente sobre amor, atenção, carinho e paciência? E, na verdade, não é só disso que você não entende. Eu poderia continuar a lista por várias linhas, mas me poupo do trabalho e te poupo o tempo, que você provavelmente precisa usar pra trabalhar e pagar as coisas desnecessárias que você compra, com o pretexto de que está apenas se dando “um agrado” e seguindo seus sonhos. Sonhos sempre são bons, mas a realidade é necessária. Pai, não se pode viver no mundo encantado das crianças pra sempre: tá na hora de crescer.

    O senhor não sabe o quanto me dói ter que escrever isso. É impossível não chorar. Mas eu preciso te dizer tudo o que eu nunca conseguiria te falar pessoalmente, porque você me conhece: eu acabaria em lágrimas antes mesmo de terminar uma frase. O senhor tem esse efeito sobre as pessoas quando a voz fica grave demais e as palavras saem repetidas da sua boca de um jeito que dá medo. E eu acho (na verdade tenho certeza) que você gosta da sensação de poder que isso te traz. Gosta de saber que te respeitam. Mas na verdade não é respeito, pai. É temor. E o senhor precisa saber que nenhum amor se sustenta quando há medo.

    O senhor me ensinou muita coisa boa, me pôs na linha diversas vezes quando necessário, eu reconheço isso tudo. Mas eu não consigo contabilizar o número de vezes que você já me magoou, que me fez soluçar como se meu mundo inteiro estivesse acabando. É a pior sensação do mundo, porque na maioria das vezes em que isso aconteceu, a situação inteira poderia ter sido evitada se o timbre da voz fosse outro, se houvesse mais tato, mais consideração com a sua própria filha, mais carinho, mais amor.

    Essas coisas te faltam em proporções gigantescas, pai. E agora, mais do que nunca, eu percebo. Eu percebo que eu não preciso ter meu emocional desestabilizado só porque o seu não está no lugar. Eu não preciso ter que aceitar as suas indisposições com as quais eu não tenho nada a ver, só porque eu estava por perto naquele momento. Eu não quero ter que repetir os vários momentos em que a gente briga, eu saio mal de todas as formas e me sinto culpada (mesmo quando a culpa não me cabe) e depois de um tempo fingimos que nada aconteceu.

    Mas tudo aconteceu durante esses 17 anos. E em todas as brigas eu ficava calada, torcendo pra que “ai meu deus, tomara que isso não aconteça de novo. Vou tomar mais cuidado da próxima vez”. Até porque ai de mim se eu ousar interromper o senhor enquanto você fala. Ai de mim se esquecer de tomar bença. Ai de mim se mudar o tom de voz. Ai de mim se desligar a ligação antes que ele permita (mesmo que ele tenha o horrível hábito de desligar na minha cara sempre que a coisa fica séria).

    Pai, acho que já deu pra perceber como isso não é algo aleatório. Não foi um texto que veio do nada, não foi uma coisinha só. Foram anos de frustrações que eu nunca pôde colocar pra fora. Mas agora tá tudo aqui.

    Eu não sei quanto tempo isso vai durar, mas o que eu sei é que por hora não te quero por perto. Não quero que me ligue, não quero que me leve pra canto nenhum, não quero nem que responda isso. Tudo o que eu quero é distância. Não quero estar perto do que me desestabiliza.


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Notas finais do capítulo

E ainda dói.



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